Queridos amigos,
Confesso que este dia de itinerância me trouxe imensas recordações, não é impunemente que se percorre esta cidade com uma certa regularidade vai para 4 décadas, se assistiu a inúmeras transformações, se conheceu gente de quem se perdeu o rasto e se guarda as melhores memórias, tudo isso aflora sobretudo nos espaços e lugares públicos, caso do Monte das Artes, como aqui se sublinha. E como se deambula despreocupadamente, dá-se com uma exposição que conta a história de uma galeria onde é muito agradável passear em dias de chuva e frio e onde há uma livraria de referência, a Tropismes. O dia seguinte será dedicado a Malines, é uma situação absurda que não sei descodificar, estou há anos para aqui regressar, a cidade é muito aprazível, oferece muito ao visitante, aqui cheguei sem destino traçado, no turismo deram-me papelada que tudo alterou: o Museu do Holocausto e dos Direitos do Homem, o percurso de 8 igrejas históricas todas visitáveis em passeio pedestre e a exposição Joias Escondidas, Tesouros da arte de Malines ao longo de setecentos anos. Por esta última comecei, e depois lancei-me na rota das igrejas, e irei ter grandes surpresas pelo caminho, como contarei mais tarde.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (111):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (2)
Mário Beja Santos
Retomo contacto com o leitor no Monte das Artes, pretendo ser sincero, mais do que saudades sem conto deste lugar, não houve manhã ou entardecer, desde que o tempo permitisse, que não passasse por aqui rumo às instituições europeias ou reuniões com outras associações ou grupos com escritórios nas ruas transversais, bem acima. Sempre me deu comprazimento olhar para uma parte do centro histórico da cidade do alto do Monte das Artes, à esquerda está a Biblioteca Real Alberto I, aqui bati muitas vezes à porta para ver exposições de gabarito ou conhecer o seu acervo, enorme, exposto em diferentes salas, acervo permanentemente reatualizado. Ao fundo, à direita, funcionava o pavilhão dos congressos, conheci-o cheio de vida e depois, anos a fio, de portas fechadas, cercado de ervas daninhas. E um pouco acima, na rua Ravenstein funcionava o Conselho Económico e Social Europeu, aqui vim a algumas reuniões e até a uma celebração do dia mundial dos direitos do consumidor, hoje evento reduzido a uma conferência formal, a cidadania praticamente ausente. São muitas, muitas as recordações, peço a benevolência do leitor em estar sempre a falar da magia que esta cidade me provoca, mas é na verdade feitiço inextinguível
Ao descer as escadarias em direção aos jardins, chamou-me à atenção esta lápida, já a tinha esquecido, mas é sempre bom recordar estas homenagens a quem socorreu os judeus perseguidos durante a ocupação nazi, e tenho mais obrigação na medida em que no meu romance “Rua do Eclipse” Annette Cantinaux, a mulher muitíssimo amada de Paulo Guilherme, é filha de judeus entregue à guarda de uma família católica em Marolles, isto passou-se em 1944, uns bons meses antes do ocupante se ter retirado. Quem salva uma vida é um farol do mundo.
Uma nova surpresa, se é verdade que a cidade se tem embelezado com desenhos de grande apuro, acho que quem fez esta obra na face externa da Biblioteca Real Alberto I tem fulgor imaginativo, esta conjugação de braços numa figura intermédia entre o sobrenatural e o surreal é obra de arte a quem desejo longa vida.
Desci até à praça, cercada de estabelecimentos de cozinha rápida, venho sempre afagar a mão do burgomestre Charles Buls, deixou obra e a cidade fez-lhe reconhecimento com esta fonte que faz frente para as Galerias Saint-Hubert, que acolhem estabelecimentos comerciais luxuosos, sala de teatro, de cinema e uma livraria lendária, a Tropismes, de que em itinerâncias anteriores já dei notícia. À entrada da porta principal anuncia-se uma exposição alusiva à história da galeria, não hesito um só segundo, entro por um corredor ao lado do cinema e vou bisbilhotar, está na cave do edifício, por ali deambulam dezenas de visitantes a ver imagens e a ler as legendas.
Em 20 de junho de 1847, Bruxelas descobre que tem galerias equivalentes às existentes nas grandes cidades europeias. Quem concebeu as Galerias Saint-Hubert foi Jean-Pierre Cluysenaar que introduzira alterações ao modelo da passagem parisiense, insuflando-lhe uma dimensão nova: duas galerias totalizando 210 metros de comprimento com uma largura de 8 metros, tendo a 19 metros do solo um texto envidraçado, não só com a função protetora, mas de procurar oferecer o máximo de luminosidade. Encheu-se de boutiques, restaurantes, cafés e salas de espetáculo e criou uma imagem de um espaço de atividade comercial, cultural e intelectual. Tem vindo a conhecer sucessivas reactualizações, é um dos lugares mais procurados de Bruxelas, por aqui passam todos os anos cerca de 6 milhões de visitantes. Um dado curioso é de que foram construídas entre 1820 e 1880 sete galerias comerciais na cidade, só subsistem três, Saint-Hubert não perdeu nada da sua magnificência, o mesmo não se pode dizer das outras duas restantes, as Galerias Bortier e Passagem do Norte, estas não podem esconder a decadência
A Galeria Bortier tal como eu a conheci nos anos 1970, bem arrependido estou hoje de não ter comprado publicações que inseriam trabalhos de René Magritte, vendiam-se a preços abordáveis, agora… Este belo espaço está praticamente às moscas.
A Galeria Passage du Nord tem conhecido renovações, hoje é uma reminiscência de outros tempos, lá ao fundo está a famosa rue Neuve, tem tudo como a botica, desde o comércio mais sofisticado a estabelecimentos tipo Primark, nem mesmo as lendárias perfumarias aguentaram a presença das lojas de perfume barato.
A exposição faz referências a grandes eventos, vemos aqui uma imagem de algo que se terá passado nos anos 1950 no teatro, estiveram ali dois monstros sagrados do teatro francês, Madelaine Renaud e Jean-Louis Barrault, era o topo de gama do teatro francês.
Já perto do final da exposição não resisti de ver ao pormenor esta peça de terra-couta intitulada “A comédia humana”, toda ela carregada de símbolos, há um público como no teatro ou no cinema, vida e viventes parecem estar a ver vida e viventes no palco, assombrou-me esta obra engenhosa, saí regalado da exposição.
Quero informar o leitor que já estou em Malines, na Flandres, fica entre Bruxelas e Antuérpia. Naqueles anos 1970 e 1980 em que não me era possível medir com alguma segurança as distâncias, um dia, no final de uma reunião em que vinha em conversa animada com um colega belga, ele desafiou-me a vir jantar a casa, disse-me simplesmente que vivia na Flandres, que eu não me preocupasse com o regresso, havia comboios de 30 em 30 minutos, da terra dele, Malines (Mechelen, em flamengo). Ao princípio temi que me ia deitar a desoras, puro engano, eram 19 horas e já estava à mesa, não passava das 21h e este meu colega despachava-me de comboio para Bruxelas, onde cheguei antes das 22h. Foi assim que fui perdendo o medo às distâncias e me habituei a vários convites para estes inesperados fins de tarde.
É uma cidade rica, mesmo entre estas adaptações que metem estabelecimentos tipo Zara e Mango, encontram-se edifícios como este, extremamente cuidados.
Um dos propósitos da visita era visitar a exposição “Joias Escondidas, sete séculos de obras-primas de Malines” patentes no Museu Hof van Busleyden. Um bom número destas joias escondidas provem de museus e coleções privadas e são mostradas ao público pela primeira vez. Uma exposição constituída por 100 obras de arte de diferentes épocas e de diferentes disciplinas, tais como a pintura, a ourivesaria, a escultura e a arte gráfica.
Há um belo quadro na exposição de Rik Wouters, a fotografia saiu-me falhada. Dias depois, ao visitar o Museu das Belas Artes de Antuérpia encontrei este belíssimo quadro dele, substitui lindamente a imagem que eu estraguei.
Estou agora na Grand Place, fascina-me toda esta beleza amarela dos canteiros, tenho pela frente duas empreitadas: uma, seguramente a mais importante, é percorrer 8 igrejas históricas, de acordo com o programa que me entregaram no turismo; a segunda é visitar outra exposição, esta sobre o Holocausto que está no Museu do Holocausto e dos Direitos do Homem, aqui se encerra a história da perseguição e da deportação na Bélgica, as exclusões, as violações do direito do Homem; e recordar que neste espaço, de 1942 a 1944, esta caserna foi utilizada pelos alemães como espaço para juntar cerca de 26 mil judeus e ciganos que foram deportados para Auschwitz-Birkenau, apenas 5% deles sobreviveram.
Pois bem, vamos às igrejas e depois ao Museu do Holocausto.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 8 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24460: Os nossos seres, saberes e lazeres (580): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (110): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (1) (Mário Beja Santos)