Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Contos com mural ao fundo (21) > O pão que o diabo amassou
− “Duque de Palmela”, imaginem!, foi a alcunha que me puseram na tropa.
Santos era o seu nome, um antigo 1º cabo atrador de infantaria, que se emocionava uando falava da Guiné: dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia; dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver: "da fome e da sede que raparam"; dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos, destacamentos e tabancas…
Ainda se emocionava, enfim, quando falava da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.
− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!... Pode escrever aí!
Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido "lá para as bandas da Serra da Estrela", em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde.
Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de "parceria pecuária": tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local nos anos 40.
No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.
Analfabeto, descobrirá, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz do seu distrito, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio (que só era de tantos em tantos meses, quando o barco lá passava).
Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…(Um em cada dois portuguesees ainda vivia na sua aldeia.)
O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo (como nase tabancas da Guiné!), paredes meias com o rebanho, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…
Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria privilegiada de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo.
O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade dos ricos e remediados, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.
− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu belo carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira ou coisa parecida.
Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.
− Roubar para matar a fome não é crime, camarada... Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.
E, em jeito de conclusão, acrescentou:
− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…
− Camarada Santos, quantas histórias iguais à tua (vamos lá tratarmo-nos por tu como camaradas que fomos, pode ser ?!) não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.
− Diz bem, ou dizes bem, camarada: pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…
Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam também moinhos de vento.
Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, fizesse sol ou chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.
Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.
Aos vinte anos foi chamado para a tropa. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.
Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.
Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino.
− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado… À bazucada ou com tudo o que tiver à mão!...
− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé, a varrer o capim… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos…
− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.
− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.
− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me deu bem com as alturas! – explicou ele.
Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e até para o Vietname.
− 'No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles, à despedida.
Para o “Duque de Palmela” era a sua independência económica, " o prémio da lotaria" que nunca lhe calhara, porque também "nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.
Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.
Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.
Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.
− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele.
Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:
− Para alguns deles era como ir para a forca! Outros iam com cara de enterro. Havia até quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e já com filhos… Eu até compreendia, Mas, para mim, não!... Solteiro, sem compromissos...
− Excitado ?!... Mas também com saudades, não ?!...
− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, a salto, e mandava-nos algum dinheiro.
E depois fez-me uma confidência:
− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça, um perdigueiro, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…
−És ou foste caçador ?
− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…
− Em suma, convenceram-te que eras um bom soldado e um grande português!
− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me.
A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão", para depois montar o seu negócio quando voltasse:
− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Juntava o pé-de-meia de soldado da fortuna e regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…
Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para a África do Sul ou para o Vietname”.
Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo para a Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guarda e… zarpar!
Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira, em Aldeia Formosa, e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri…
Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? …
O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era, afinal, virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito.
Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…
Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.
− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, depois do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para a África do Sul ou para o Vietname... Também me falavam da Legião Estrangeira’mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os sul-africanos e os americanos...
E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.
Era miliciano, teria pelo menos dez ou doze anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”…
Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem de comnboio, para o embarque no Cais da Rocha Conde de Óbidos, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…
Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Aldeia Formosa.
− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.
O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…
Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "maluco" ou "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…
− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’... – terá dito, na altura, o capitão.
Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção, um alívio. Mas, não, para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção…
− … Foi isso que acabou por me convencer... E no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, bem ataviado, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau…
De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir, fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...
− Comia-se mal e porcamente. Faltavam as batatas. E os frescos só os havia quando, uma vez por outra, vinha uma avioneta de Bissau. Massa com cavala era o prato do dia. O vinho era pouco e 'batizado'. Que não faltasse, ao menos, o pão nosso de cada dia…
O Zé Soldado era "pãozeiro", como qualquer bom português de origem rural. O padeiro, por sua vez, em conjunto com o vagomestre, responsável pelos géneros, tinha que saber gerir muito bem o “stock” de farinha (e fermento…), sobretudo no tempo das chuvas em que as picadas no sul da Guiné se tornavam autênticos rios. O abastecimento era então irregular e incerto.
Na realidade, ficavam isolados muitos aquartelamentos, destacamentos e tabancas. As colunas tornavam-se um pesadelo, às vezes chegava-se a andar um quilómetro por hora (!) e praticamente não se fazia mais nada do que tentar assegurar, a todo o custo, no final do tempo seco e no início do tempo das chuvas, a autossuficiência da tropa em matéria de abastecimentos (munições, comes & bebes, outros géneros de primeira necessidade, etc.).
O nosso homem tinha, nesse aspeto, um bom entendimento com o vagomestre e com o capitão. E nunca houve, até ao primeiro ano, falta de farinha para fazer o pão.
− No novo 'posto', eu tinha durante o dia tempo e vagar para ir passear à tabanca, fazer a 'psico', e, ao lusco-fusco, ir caçar galinhas do mato e lebres, na orla da bolanha. Arranjei uma espingarda de caça e ganhei um vício que não tinha…
− A caça ?!...
− Sim, a caça... Dava para fazer o gosto ao dedo e sempre se arranjava carne para o petisco. Matei a malvada a muita gente, incluindo alferes e furriéis… Uma vez por outra convidava o capitão, mas ele nunca aceitava… Acho que não se queria misturar com os subordinados, o que eu hoje entendo...
− Os gajos atacaram-nos, às tantas da noite, e usaram metralhadoras pesadas 12.7, com balas incendiárias. Acordei sobressaltado. Em pouco tempo, a tabanca, fula, com as palhotas muito juntas umas às outras, foi pasto das chamas. Nunca tinha visto um incêndio como aquele, a não ser quando se deitava fogo ao capim, no tempo seco. Valeram-nos as valas onde o pessoal se entrincheirou e resistiu até de madrugada. Eu, mais o capitão que teve o azar de lá estar nessa semana, agarrámo-nos com unhas e dentes ao morteiro 81. A companhia tinha apenas uma secção de morteiros. E dessa vez estava colocada, em reforço, noutro destacamento, não muito longe do nosso. Mas tínhamos, aqui, um morteiro 81. Foi o que nos valeu. Apoio de artilharia não havia.
O nosso padeiro conta que ia ficando com as mãos queimadas se não fora as luvas que apareceram no espaldão, "por milagre".
− Granadas não faltavam, graças a Deus. E foi a nossa sorte. Os gajos retiraram com mortos e feridos, a avaliar pelos rastos de sangue que deixaram nos abrigos individuais junto ao arame farpado. Até mioleira lá deixaram!... Por minha conta, devo ter mandado alguns para o inferno. Em contrapartida, tivemos dois mortos e vários feridos graves.
A descrição não poderia ser mais pormenorizada:
− A tabanca estava sobrelotada. Era pressuposto ficarmos ali temporariamente em reforço do sistema de autodefesa. Havia suspeitas, fundadas, de colaboração com o inimigo, por parte de alguns elementos da população, 'puta-fulas', e que por isso estavam de debaixo de olho do comandante do pelotão de milícias e do régulo.
− 'Puta-fulas' ?!... Queres dizer futa-fulas... Os fulas eram leais à nossa tropa…
− Nem todos, junto à fronteira, eram mais permeáveis à propaganda e às ameaças do PAIGC – respondeu-me o M. Santos.
− Quer então dizer que, dessa vez, vocês ficaram de tanga…
− Ficámos de calções e chanatas. Só com a G3 na mão, e as cartucheiras à cintura… Alguns ficaram só em cuecas!... A malta dormia prtaicamente nua, por causa do calor... A minha mala ardeu. Houve malta que perdeu tudo, tinham trazido os parcos pertences com eles, convencidos que iam passar ali umas ricas e merecidas férias… O tanas!...
De Bissau vieram, de helicóptero, trazer alguns reabastecimentos mais urgentes: caixas de munições, por exemplo. A coluna só chegou ao fim do segundo ou terceiro dia. E trazia alguns sacos de farinha. Mas como fazer pão se até o pequeno forno do destacamento, em adobe, também tinha sido destruído?
− Com bidões cortados ao meio, na vertical, improvisei um forno e fiz o milagre dos pães, para meia centena de homens esfomeados… mais a as milicias e a população. Tive um louvor do Schulz, e outro do comandante do batalhão, sob proposta do meu capitão. Mandei ampliar e emoldurar o louvor do general Schulz. Está no escritório. Ou estava, agora já passei a pasta ao meu filho mais velho. Reformei-me da Panificadora.
A padaria a que o “Duque de Palmela" se refere, foi a que ele criou, depois do seu regresso da Guiné em finais de 1967, e que ajudou a crescer, nos últimos 50 anos, "com mais algumas dezenas de colaboradores" (sic).
Com a construção e a inauguração da Ponte Salazar, unindo finalmente as duas margens do Tejo, entre Lisboa e Almada, o distrito de Setúbal conheceu um enorme surto de desenvolvimento, em termos urbanísticos, industriais, económicos e demográficos.
Hoje é uma empresa de referência, no seu ramo, faturando "manga de patacão" , e tendo uma razoável rede de clientes, incluindo superfícies comerciais, em todo o distrito de Setúbal. O “Duque de Palmela”, outrora o “pé descalço”, o 1º cabo que queria "ser mercenário e ir para o Vietname", tem hoje motivo de orgulho no legado que deixa aos filhos e netos.
− É sobretudo um exemplo de vida, tenho pena que o meu velhote já não esteja cá, há muito, para ainda poder ver a obra do filho. Ou dos filhos, há um irmão meu que também é sócio, minoritário.... O meu velhote e minha pobre mãe que ficou viúva tão cedo...
Enxuga uma lágrima furtiva… Pediu-me uns minutos para ir a casa, uma bela vivenda ali ao lado das instalações fabris da Panificadora, para ir buscar uma foto que tinha com o general Schulz e mostrar-me o louvor, emoldurado.
− Não conheci o Spínola, o meu comandante foi o Schulz. Só tenho a dizer bem dele. Visitou-nos por duas vezes. Esta é a foto dele comigo, eu a enfornar o pão. E chegou a levar do meu pão para o palácio do Governador, em Bissau. Em troca deixou-me uma caixa de cerveja “para os padeiros e cozinheiros”...
Infelizmente, o “Duque de Palmela” tinha enviuvado há dois ou três anos e lamentava não poder partilhar, com a “duquesa” (como ele, carinhosamente, tratava a sua alentejana de Santiago do Cacém), a alegria que fora a “transferência de poderes” para o filho, seu sucessor, e agora o maior acionista da Panificadora e seu administrador.
− Afinal, é a ela que eu devo tudo ou quase tudo. A ela e ao meu capitão. Foi, na Guiné, um pai para mim. Fiquei-lhe grato para o resto da vida. Vim a descobrir, entretanto, que trabalhava nas Alfândegas de Lisboa, há uns dez anos atrás, quando ele se reformou. Nessa altura, fiz-lhe uma grande homenagem. Fizemos aqui o convívio anual da companhia. Foi memorável. Faltaram muitos mas mesmo assim consegui juntar uns sessenta camaradas. Com as mulheres, filhos e netos, éramos quase um centena de convivas. Fiz questão de ser eu a oferecer o almoço. Arranjei uma empresa de “catering” e o borreguinho assado foi feito cá nos fornos da Panificadora. Por coincidência, comemorávamos também nesse ano os 40 anos do regresso da Guiné.
E acrescenta, com alguma euforia:
− Foi um dia de alegria, um dos maiores da minha vida. Esse convívio ficou na memória da malta toda. E quem não veio, ficou com pena… Infelizmente, o capitão morreria uns tempos depois, ainda a minha mulher era viva.
Falando do seu sucesso empresarial, disse-me em tom de confidência:
− Tive sorte nos negócios, não vou dizer que não. Mas fui sempre um homem decidido e determinado. Umas "furão" ... Tinha pouco a perder e tudo a ganhar. Se fosse alferes ou furriel, com estudos, teria arranjado um reles emprego, num banco, num escritório, nas finanças, nas caixas de previdência, aqui ou em Setúbal. Hoje sou patrão, ajudei a criar cinquenta postos de trabalho, são outras tantas famílias que dependem do bom andamento da empresa. Não tenho luxos, tirando a caça, que é a minha amante (mais cara que uma amante!), continuo a ser um gajo simples…
Curiosamente, eu conhecera este homem, não na Guiné, mas por ocasião de um estudo europeu sobre condições de trabalho e absentismo por doença, nos anos 90.
Já nessa altura eu gostava de dizer que o mundo é pequeno e que um dia voltaria a tropeçar na guerra da Guiné. Também eu, como muita gente, precisava de exorcizar os fantasmas do passado.
− Chegou a hora do repouso do guerreiro, camarada! – disse-lhe eu, da última vez que estivera com ele, já depois de enviuvar.
− Esse é um dos problemas da malta da nossa geração… Muitos nunca tiraram férias, passaram a vida a trabalhar e a poupar, não gozaram a vida… Falo por mim… Como saber que estamos a chegar ao fim da picada ? Ainda gostava de lá ir, à Guiné, antes de me dar uma macacoa, mas não sei se tenho força nas canetas…
− Mas já agora diz-me porquê e para quê voltar à Guiné?!... Se a pergunta, claro, não te ofender… – pedi-lhe eu.
Pesou a pergunta antes de responder:
− Porquê ?... O criminoso gosta sempre de voltar ao local do crime – respondeu-me com um misto de bonomia e malícia.
− E para quê, já agora ? – voltei a insistir.
− Olha, sempre ouvi falar do Saltinho e dos rápidos do Corubal, até se dizia que era a parte mais bonita da Guiné… Andei por lá perto, mas nunca lá fui, nunca vi sequer o rio Corubal. O rio Grande de Buba, o Geba também, mas não o raio do Corubal... Era um dos sítios da Guiné que gostava de visitar… E, depois, se conseguir fazer alguma coisa por aquela gente, tanto melhor.
Demos um grande abraço de despedida… e eu prometi a mim mesmo escrever a história de vida deste homem…
Soube depois, pelo médico do trabalho meu conhecido, que o Santos acabara por concretizar o seu sonho de voltar à agora Guiné-Bissau e ainda encontrara gente do seu tempo, nas tabancas por onde andara…
Faltou-me na altura, por lapso ou talvez por pudor, perguntar-lhe a origem da alcunha “Duque de Palmela”… Não tive lata ou faltou-me o tempo, se bem que ele nunca tivesse rejeitado, bem pelo contrário, a alcunha que lhe puseram na tropa e na guerra.
Um antigo camarada, furriel, da sua companhia, explicou-me, ao telefone, a origem da alcunha:
− Em Santa Margarida, no IAO, já toda a gente o tratava por “Palmela”… Acho que não havia mais ninguém daquelas bandas… Ao que parece, no barco, quando fomos para a Guiné, é que apareceu o “Duque”… Ele gostava de jogar às cartas, para passar o tempo, como boa parte dos militares embarcados. Mas não tinha sorte ao jogo… ‘Só me saem duques’, queixava-se sempre que perdia…
− E, olha, é uma figura ilustre da nossa história, o 1º Duque de Palmela, político, militar e diplomata, um patriota do tempo do liberalismo − acrescentei eu. − Não nasceu em Palmela, mas para o caso pouco importa. No tempo da nossa monarquia constitucional davam-se títulos nobiliárquicos honoríficos por razões nem sempre nobres... aos amigos e correligionários. Homenageavam-se homens e terras. Dizia o povo, com sarcasmo: "Foge, cão, que te fazem barão!... Mas para onde se me fazem visconde?!"...
Aqui para o leitor, que ninguém nos ouve: não me admirava nada que num próximo 10 de Junho a gente ainda vá a tempo de ver, na televisão, o nosso ex- camarada M. Santos a receber a Comenda da Ordem do Mérito...
Afinal, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, as honrarias e as mercês...
© Luís Graça (2019). Revisto em 10 de março de 2024.
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Último poste da série > 3 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25231: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (20): A abetarda que não é mais desastrada...