terça-feira, 18 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25654: Elementos para a história do Pel Caç Nat 51 - Parte VII: Notícias do Armindo Batata e fotos do seu tempo de Cufar (1970)



Foto nº 56



Foto nº 64 


Foto nº 65


Foto nº 66


Foto nº 60


Foto nº 57


Foto nº 63


Foto nº 62

Guiné > Região de Tombali > Cufar > Pel Caç Nat 51,  > 1970 > Álbum fotográfico do Armindo Batata, ex-alf mil, que esteve em Guileje (de jan 69 a jan 70), e depois em Cufar (de jan a dez 70), até acabar a comissão,como comandante do Pel Caç Nat 51.

Fotos  acima, nºs  56, 57, 60, 62,  63, 64, 65, 66

Fotos (e legenda): © Armindo Batata (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mensagem de Armindo Batata (foto atual à esquerda):

Data - segunda, 17/06/2024, 18:03
Assunto - Pel Caç Nat

Caro Luís

As minhas desculpas por não te ter respondido de imediato como devia ter feito, mas ... sempre alguma coisa (inventada) para fazer, cumulativamente com a crescente vontade de preguiçar.

Quanto ao Pel Caç Nat 51, pouco ou nada tenho para contribuir para esse louvável movimento de recuperação de memórias. Durante umas duas dezenas de anos, ou mais, após o meu regresso da Guiné, essas memórias foram atiradas para um qualquer pego bem fundo nos confins das recordações. Felizmente que por lá ficaram.

Prometo que vou ter o cuidado de ler tudo o que se publicar referente aos tais dois anos em que por lá estive (1969 e 1970) e pode ser que alguma coisa venha à tona.

Um abraço
Armindo Batata


2. Republicam-se, reeditadas, mais algumas fotos do álbum do nosso camarada, que esteve em Cufar, em rendição individual, durante o ano de 1970,  como comandante do Pel Caç Nat 51, depois de ter estado, durante o ano de 1969, em Guileje. 

Aproveita-se para recompletar as legendas com a ajuda de vários camaradas que passaram por Cufar em diferentes períodos:

(i) Mário Fitas (ex-fur mil, op esp,  CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/66);

(ii)  Eduardo Campos (ex-1º cabo trms, CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74);

(iii) António Graça de Abreu (ex-alf mil, CAOP1, Canchungo / Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)


Acrescente-se, da nossa lavra, que nas fotos nº 56 e 64 vê-se o pau da bandeira e, na sua base, um pequeno monumento de homenagem à CART 1687 (Cachil e Cufar, 1967/69). 
Na foto nº 57  é visível um posto de vigia no alto de uma árvore, com uma escada de acesso. Devia ter uma bom ângulo de visão.

 
(i) Mário Fitas
  • Foto nº 62 > À esquerda identifica-se a pista de Cufar em terra batida, inaugurada em 1957 pelo então presidente da Republica Craveiro Lopes na sua visita à Guiné. Esta pista tinha na altura mil e novecentos metros de comprimento. No começo da pista ficava a entrada principal do aquartelamento. Ao fundo vê-se a mata de Cufar Novo, de onde foram extraídas as palmeiras para construção dos abrigos do novo aquartelamento. Do lado direito, vislumbra-se a mata de Cufar Nalu onde existia uma importante base do PAIGC e que foi tomada em 15 de naio de 1965 na operação "Razia". É bastante visível no sentido descendente a estrada para o cais do rio Manterunga.
  • Foto nº 56 > É a parada com o pau de bandeira, que não consigo identificar, se é o cibe que nós lá colocamos. Ao lado direito a Capela construída pelos "Lassas" e que posteriormente por outra companhia foi transformada em armazém.
  • Foto nº 64 > Parada, vendo-se ao fundo a antiga fábrica de descasque de arroz do sr. Camacho, e que em seu redor em abrigos cavados no chão era o aquartelamento que existia. De março a maio de 1965 foi um trabalho de loucos, para não sermos apanhados pelas chuvas nos buracos.
  • Foto nº 65 > Esta foto foi tirada do varandim da habitação da antiga quinta e transformada em habitação e funcionamento do comando.
  • Foto nº 66 > Julgo tratar-se da fachada norte do comando onde existia a tabanca dos milícias do João Bacar Jaló.
  • Foto 60 > Varandim do comando, vendo-se ao fundo a casa do gerador. Na altura da CCaç 763, de permeio, existia o canil.  
(ii) Eduardo Campos (esteve em Cufar apenas 4 meses em diligência, ao serviço do Cop4 e adido a CCAC 4740.)

  • Foto nº 57 e 62 > "O que a foto 57 nos mostra, tenho a certeza que já não existia, no meu tempo, pois pela sua originalidade eu jamais poderia esquecer o engenho e obra de arte que a mesma transmite."
  • Foto nº 62 > É Cufar, mas quando lá cheguei em 1972 o 'aglomerado residêncial' era muito maior. Do lado esquerdo da foto, parecer ser a pista em terra (quando lá cheguei já era em alcatrão) e saída para Catió e Matofarroba. Lado direito, o que parece ser uma estrada, seria a picada que ia para o porto no rio Combijã.
  • Fotos nºs 56, 64 e 65 > Recordo, aqui sem dúvidas, que são de Cufar. As restantes fotos não me recordo. Quanto a boas recordações de Cufar, direi que sim foram mesmo muitos boas: manga de ataques com foguetões (...), dois ataques de armas ligeiras ao arame, dormir numa tenda de campanha em que o colchão foi feitas de folhas de árvores e ainda alguma fominha á mistura. 40 anos depois e podendo até ser irónico, tudo isso para mim hoje, são mesmo boas recordações. As restante fotos não consigo identificar (...), mas por breves momentos voltei a Cufar, o que por si foi bom.

(iii) António Graça de Abreu

  • Fotos nº 57, 63 e 65: Não é uma terra portuguesa, é Cufar, com certeza. Mas Portugal andou por lá. Cufar é, na Guiné o único lugar onde eu gostava de regressar. Sofri em Cufar tanta, tanta dor, coisas que não tenho vergonha de contar seja a quem for. Adiante, camarada, ávante. Sou tão português que ainda gosto de sofrer, como se está a ver. 
  • Na foto 63, a tabanca mais à esquerda foi a minha casinha durante uns quatro meses. Os bidons cheios de terra eram uma segurança nas flagelações, mas havia muitas valas. O poleiro alto na foto 57 já não existia em 73/74. 
  • Mas a capela lá estava  (foto  65) e foi usada, infelizmente com demasiada frequência para guardar corpos de militares falecidos em combate, antes de vir o cangalheiro para depois seguirem de DO ou Noratlas para Bissau.



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CART 2477 (1969/71) > O Jorge Simão, 
 residente em São João da Madeira, foi 1º Cabo Escriturário, CART 2477, Cufar, 1969/71. Aqui junto ao edifício da secretaria... Várias companhias por aqui passaram, além da CART 2477: CCAÇ 763, CCAÇ 1621, CART 1687...  Na foto de cima, uma vista aérea de Cufar...


Fotos (e legenda): © Jorge Simão (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

3. Comentários adicionais de Armindo Batata: 

(i) Olha o Jorge Simão !!! Um abraço,  caro Jorge. A secretaria era ao lado do meu quarto. Tinha de facto uma 'chaise long'  à porta. Seria aquela?


(ii)  Caros Mário Fitas e Eduardo Campos: Disseram tudo o que era importante. Deixem-me só acrescentar dois pormenores: Foto nº 60 > Do lado de cá do extintor é a porta da secretaria e do lado de lá, a do meu quarto; Foto nº 57 >  Era um posto de vigia, raramente ocupado, junto ao canhão s/r e do lado de Cufar Nalu.

13 de outubro de 2012 às 21:37



Comentário do nosso leitor Henrique Reis, um "cufarense":

Feliz por estar aqui a conhecer a história duma tabanca/aldeia onde cresci (por meu pai lá ter trabalhado 5 anos pós a guerra colonial), anos e anos depois da vossa vida lá.

Vendo os vestígios da guerra colonial mas sem poder interpretar ou melhor conhecer bem a história, claro, ninguém podia nos contar. Conheço bem a pequena tabanca/aldeia de Cufar, vi os vestígios (sucatas de carros queimados logo depois do quartel e atrás a casa de gerador tínhamos sucatas de carros queimados... de balas de armas pequenas e grandes por todo e quanto é lado em Cufar, os restos do barco queimado ainda até a data está lá a ponta do barco no pequeno porto...o quartel ainda lá está). E vou lá de quando em vez visitar e prometo ainda dentro de dias poder ir visitar de novo e, se possível, vos trazer fotos daquela pequena aldeia/tabanca de Cufar que conheciam.

Meus muito obrigado à todos vocês.
"Cufarense"
Henrique Reis

8 de agosto de 2019 às 03:56

Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros











Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 >  Alguns recantos e encantos do Parque.

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

 

Contos com mural ao fundo: Caminheiros

por Luís Graça


Às quintas-feiras encontravam-se no magnífico Parque da Cidade, no Porto,  havia lá um grupo de amigos e conhecidos que gostavam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas. Isto, ainda uns bons anos  antes da pandemia.  

“Duas voltas ao bilhar grande”, diziam eles e elas. "E tudo por mor da nossa saúde"... Desenferrujava-se as pernas, desentaramelava-se a língua, massajava-se os neurónios, tonificava-se o coração, estreitavam-se os laços sociais e afetivos, "limpava-se a vista" (com o azul do Oceano Atlântico, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultivava-se a boa disposição e o humor, desligava-se o malfadado telemóvel… Ah!, e não se fumava, pelo menos durante essas duas horas.

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dias, era quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, ou "pessoal engravatado" (os homens, no tempo em que ainda se usava gravata e fato completo, na banca, nos seguros, nos escritórios, nas repartições públicas... e as mulheres não vestiam calças). 

Enfim, reformados, gente com algumas economias no banco, e já poucos sonhos, mas que achava que ainda tinha  todo o  tempo e vagar à sua frente. 

No essencial, e em comum, tinham o gosto por conviver, cavaquear e andar a pé. Era a “Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade”… Até já eram populares entre os trabalhadores do Parque, demais utentes e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona. Eram gregários como os primatos, ruidosos como os adolescentes, e temerosos da solidão como são todos os idosos do mundo.

Nessa altura, passavas por lá, de vez en quando. Estavas a fazer um estudo de caso no Porto, no âmbito de um projeto de investigação sobre a promoção da vida ativa saudável.  Tinhas o estatuto de observador-participante...  Aparecias com a “Nucha” e juntavas-te  a eles e a elas, para  duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio. Eram, aliás, as tuas duas únicas horas de exercício semanal... ("Bem prega Frei Tomás!...", dizia-te a "Nucha", em jeito de piada.)

Havia de tudo um pouco, num grupo de trinta, no máximo (quando excecionalmente se vazia o pleno, no "almoço de Natal": professores, talvez a maioria, um ou outro engenheiro, bancário, magistrado, advogado; umas tantas secretárias, e domésticas; uma médica, uma enfermeira, uma jornalista; e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vinham do Porto, de Matosinhos, da Maia,de Vila Nova de Gaia e até de mais longe.

Era a primeira geração de portugueses de que se podia dizer que eram filhos da abundância,  relativa,  dos planos de fomento estado-novistas, e depois do Estado-Providência abrilista.  E que podiam aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (contrariamente ao que se passara com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número, sempre variável, dos que iam aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acabava por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formavam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuavam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não havia contemplações e muito  menos solidariedade para com os mais fracos das canetas  que vinham na cauda do pelotão. 

A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, fazia-se uma pausa, de dez a quinze minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. Invariavelmente cronometradas pelo "Mister". Era então que o pelotão se reagrupava, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa eram os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (havia já gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas (em geral organizadas pela agência Pinto Lopes), das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… 

Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se iam divorciando,  e os netos que lá iam trepando a montanha da vida, de degrau em degrau, da escolinha  de escolinha até à universidade final…, o doloroso  "home leaving" e o primeiro emprego, precário.

Vinham também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, primeiras comunhões, crismas, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos,  parentes, vizinhos, colegas e conhecidos)… 

Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se falava em sexo nem em dinheiro”. Percebia-se: muitos tinham tido uma formação religiosa, nortenha, puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor… O que não impedia, de vez em quando, a galhofa brejeira, típica das gentes do Norte:

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejava alguém dos rapazes.

O telemóvel e o tabaco eram, agora, então, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” era uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores eram, nesse ponto, os mais radicais,  intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!, a começar pelos que saíam de uma "igreja" para se meter noutra)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel era  “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”, por causa dos netos, na creche, ou  do gato ou do cão ao cuidado da vizinha.  E, tanto quanto tu te apercebias, quando por lá andavas, não havia fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” ia, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes,  o liceu, a Mocidade Portuguesa, os primeiros namoros, a descoberta do sexo, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império, ou a igualdade de género… Questões "fraturantes"... Alguns haviam passado por África e tinham memórias desse tempo, umas boas, outras más. Enfim, havia retornados e antigos combatentes…

Chegava-se, por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que era o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino” (termo que hoje, convenhamos, já não se usa no Porto), do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim gente nascida no Estado Novo, e que já era adulta no 25 de Abril. Gente com duas metades, e algo bipolar, como a lua, a luz e a sombra, a democracia e a ditadura, a esperança e a depressão...

No caso de um ou outro mais velho, quando nasceu, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

Eram quase todos portistas (ou "andrades"), mas também não se falava de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficavam lá fora as “redes sociais", a par da “política partidária”. Eram quase todos “desalinhados”, uns à esquerda e outros à direita, mas alguns/algumas tinham um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até era compreensível, olhando para as carecas deles e para as cabeleiras brancas ou horrivelmente pintalgadas,  delas.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidenciava-te a “Nucha”, uma mulher minhota de grande generosidade, que te introduzira no grupo.

Quando chovia (e aqui chovia mais do que no Sul…), ficavam a cavaquear no café até próximo do meio-dia e meia, altura em que cada um ia às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ? 
– pergunta alguém, a meio da caminhada.

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa a "Nucha", a caminhar ao lado do “Mister” e da “Natália”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio das duas:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Morcão,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Natália”.

Transmontana, a “Natália” era uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade era um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamavam-lhe a “Natália” porque dava ares, até no corpo e nos trejeitos,  da Natália Correia… E também escrevia… “versos” panfletários. Tanto quanto julgavas saber, fora professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciavam e toleravam o seu “génio”. Tinha fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gostava de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"... como se estivesse no Mercado do Bolhão.

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?!  

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as mesmíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… –  atreveste-te tu a completar, infringindo o teu estatuto que era mais o de observar do que o de falar...

− Ah!, o Portugal plural, sacro-profano,  no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e negro – ironizou a  “Natália”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e o lápis azul da censura– acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje eram mais  “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar um exemplo da sua própria experiência:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Natália”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu ex… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar, os quatro ou cinco do grupinho da frente.

− Conversa da treta, sabes como é! É preciso ocupar o tempo − diziam-te, à laia de desculpa.

Nesta tertúlia  tripeira quase toda a gente parecia ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que te disseram, fazia parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratavam por tu, o que ajudava a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores, os senhores e as senhoras, num terra burguesa em que os títulos, no passado,  sempre tiveram o seu peso, conta e medida...

E também te pareceu que, pelo convívio que ias  tendo (irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém levava a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, era mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da história de vida de cada um
.  

 Os novatos, que já eram poucos nos últimos dois ou três anos antes da pandemia, eram sujeitos, como tu, à incontornável praxe de integração. Se bem que tu, porque fosses investigador, tinhas o estatuto do marginal-secante, aquele que fica sempre mais fora do que dentro. Na realidade, não chegaste a ser "entronizado", porque regressaste à base, em Lisboa, acabaste o trabalho de campo e deixaste de frequentar o grupo.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-te a “Nucha”, essa, sim, uma tua velha amiga de há muito.

Em rigor, não havia regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, ia criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo, no início,  trabalho de um grupo de mulheres, de que restavam duas ou três, a quem chamavam carinhosamente as “abelhas -mestras”. Eram uma espécie de “mães-fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam-se umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas ?!,,,

− ... e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?! 

− Pois, já não temos o dia de pica-boi! − dizia uma delas, com graça.

Foi assim que nasceu a "Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade", com a intenção mais ou menos explícita (mas  nunca expressa, por escrito) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo te contou  a  “Nucha”, que fora professora de biologia, "noutra incarnação", como ela gostava de apontar no seu currículo… 

Eram mais as mulheres do que os homens, o que até era natural naquele grupo etário de gente sexagenária, com um ou outro já na casa dos 70… Em meia dúzia de anos (tinham começado pro volta de 2010), o grupo parecia ter-se aguentado e até renovado. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também havia a “Viúva Alegre” (que já despachara para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos), a “Rosa Mota (por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva), a “Feicebuqueira” (que se vangloriava de ter “cinco mil amigos” no Facebook), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, e o fotógrafo do grupo, sempre muito calado),  além do "Mandjor" (sic), amigo  ou conhecido do "Mister", do tempo da tropa... 

Enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequentava o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferavam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos verdejantes que, no passado, devem ter dado muitas carradas de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister”... Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – arrmetava, sarcástica,  a “Natália"

Mas o "Mister" tinha sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha hipótese de investigação 
− se calhar,  como piada a ti, que estavas a estudar o grupo. −  Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou alguém, ao lado, e
 que também quis "botar a sua teoria".

Segundo ele, havia  uma economia de meios, de energia, de recursos:   

− Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como li algures – acrescentou alguém  
–,   somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade…

E voltava à carga  a “Natália”:

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do Criador.  

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Para não dizer 
confrangedoras!... Repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nos "Black Fridays", ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

Um terceiro elemento retomou a sua teoria... Resumindo: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Natália"− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças…  "Grooming", dizem os antropólogos.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – atalhou  a “Nucha”.
– E quanto mais velhos, pior!.. Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Natália” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.

O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Era o líder do grupo... Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para motivar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol lá para os lados de Paços de Ferreira ou Penafiel.

Era natural de Baião, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguira formar-se. A “Natália”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…

− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Natália" e explicou:

− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô materno, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha frente uma eternidade de pasmaceira e ao meu lado uma múmia como eu…

− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…que é um sucesso de vendas!

− Vai-te,  Afonso, com essa ! 
[Queria ela dizer "não me f..." ]. Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras, sedutoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…

Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…

Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974… 

− "Ranger" ?!...Meu Deus!, de "ranger os dentes" ?!

“Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade, o "Mister". Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conhecera as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto, onde já vivia antes da tropa… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração… Aliás, nem grande nem pequena...

Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, em Lamego, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:

Djubi, gosse, gosse!

− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?

− É crioulo, toca a andar, míudo, que se faz tarde.

Juntara-se agora ao grupo da frente o amigo do "Mister",  o “Mandjor”, um que estivera no fim da guerra colonial, em Moçambique, nos paraquedistas.  Fora ferido, com alguma gravidade no planalto dos Macondes, e tivera direito a cruz de guerra. Era agora "sargento ajudante", mas no grupo chamavam-lhe o "Mandjor", talvez por ser alto e encorpado...

Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que  alguns embirravam solenemente.

− Guerra, só a das ideias!− defendia alguém,  que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado a Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pusera os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)

Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, no verão de 1974, matriculando-se  ainda nesse ano no curso de filosofia. 

Não escondia que andara em 74 e 75 "a sanear professores e patrões", ao mesmo tempo que se metera no negócio da edição de livros e panfletos.  Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima. 

Fora também durante vinte anos professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”. Já não te recordas da alcunha que o grupo lhe pusera. Mas era um "cromo" da cidade... Talvez fosse essa a alcunha, "Cromo"...

− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!...

E a "Natália" aproveitou a sua deixa para lançar a sua provocação:

−  Olhem, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada notinha de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates, o que é que vocês querem mais ?!

− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça ou o vinho do Porto… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…

− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do Portugal pequenino, o retângulo de 89 mil quilómetros quadrados,  a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Manjor”.
 
Desta feita era o militar a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota dos quatro costados, façanhudo e medalhado com cruz de guerra, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Cromo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de a ir defender...

E continuou o “Mandjor”, que lidava mal com “fujões”, agora com a autoridade do historiador com canudo passado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto...  (Um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”, por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):

− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821 (e agora o resto do Império de Quinhentos). A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…

− Eh!, “Mandjor", nessa altura, até eu, com esta fraca figura,  pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Natália”…

− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.

E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostavam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país. Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos, ia explicando ele.

− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Natália”.

− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma adeia, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.

A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos  de batalha do "Mister" nos últimos tempos, com o argumento de que as redes sociais reproduziam a estrutura e ampliavam a dimensão da aldeia, a aldeia virtual global. 

−  Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.

− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses… E até fazer sexo virtual!

− Pedimos amizade uns aos outros (gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, nem cheirado, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…

− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício... 


− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Manjor”.
− E, daqui a mais uns anitos, na pronografia.

− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”, o número de "amigos"… − comentou o “Cromo”.

Mais enfático, exclamou o “Mister”:

− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…

−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! Mas ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a  "Nucha". − E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais,  é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.

E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário” das suas equipas de futebol da III Divisão:

− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…

−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… − interrompeu a ‘desbocada’ da “Natália”…

No meio disto tudo, tu tinhas que desempenhar o teu papel, que era 
mais de observador do que ator, afinal um intruso no grupo,   mesmo todos eles sabendo que estavas a fazer sobre eles um “case study”  para um projeto europeu... A sugestão e o convite vieram da “Nucha”,  uma rapariga de Braga, de 60 e tais anos de idade,   e que sempre se interessara pela promoção da saúde, tendo estado ligada à Rede Europeia das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis... Foi aí, de resto, que se haviam conhecido,  vocês os dois.

Enfim, podias dizer que tiveras a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de te chamarem “Mouro” na brincadeira.    Sabias, por outro lado, que o grupo fazia alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal", e outro no "solstício do verão, antes das férias grandes”... E que se preparavam, em 2020, para "atacar" os caminhos de Santiago, numa verdadeira aposta de superação, individual e grupal: um caminho,  todos os anos até 2030 (para os..."mais otimistas").

No verão ainda gostavam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, eram circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer ser humano, em qualquer hemisfério…

A “Natália” costumava escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pudeste aparecer. Dizia-te a "Nucha" que eram versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adorava pôr sempre um pouco de picante no que escrevia e dizia... No  último Natal, de 2019, ela fizera um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só apareciam nesta data para “dar ao dente” e "manter as quotas em dia".  Mas também queria dar o mote para o novo projeto do grupo, os Caminhos de Santiago. 

No fundo, era um homenagem a este pequeno grupo  de gente gira do Norte que te surpreendia pela energia e alegria que punha todas as quintas-feiras nas suas "voltinhas" pelo Parque da Cidade... "por mor da saúde" (uma expressão  que tu achavas deliciosa, e  tão tipicamente nortenha).

A “Nucha” teve a gentileza de te mandar uma cópia do texto por email, com  autorização expressa para o usares no teu relatório   e, também, de algum modo, ficares com uma recordação pessoal dessas quintas feiras no Parque da Cidade 
 onde te chegaste a juntar a esses  caminheiros,  alguns dos quais infelizmente iriam arrumar de vez  as sapatilhas em 2020... 

Em Lisboa, soubeste pela "Nucha", da morte do "Mister",  logo no início da pandemia, o que chocou toda a gente, e deixou o grupo destroçado. Nem sequer ao funeral dele puderam ir. Era o mais novo, o mais ativo, o mais saudável, o mais entusiástico, o mais prestável...  Com a pandemia, o confinamento  e a morte do "Mister", a tertúlia acabou por desfazer-se...

− E, depois, sabes como é, a idade não perdoa!

Desfez-se o grupo, por falta de comparência,  motivação e liderança,  e com ele  o sonho de se fazer os caminhos de Santiago, a partir do início da década de 2020.  Ainda se chegaram a encontrar uns tantos, quando amainou a pandemia, mas nunca mais se reconstituiu o grupo.

− Não, não chegámos a Santiago de Compostela, mas também não morremos na praia.  Cumprimos a nossa missão!  − concluiu, resignada, a "Nucha".

E tu achaste que sim, que ficava bem esse soneto a rematar esta história, bonita e triste ao mesmo tempo,  destes  caminheiros nortenhos, com dez anos de caminhadas...   Infelizmente, o ano de 2020 foi mau para todos e tu acabaste também por perder o contacto deles, restou-te apenas a "Nucha". Eis o texto que ela te mandou, da autoria da "Natália" (e com a sua generosa permissão):


"Feliz Natal de 2019, caminheiras e caminheiros!

"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos companheiros.


"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, não tem desconto,
Que a quota é só a da amizade.

"Com as malas feitas p’ra viajar, 
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas com medo do mundo acabar.

"Esqueçamos, gente, os maus agouros,
Que o ano há de correr menos mal,
Valha-nos Santiago, o Mata-Mouros!
 

"Parque da Cidade, quinta feira, 19 de dezembro de 2019. Natália"...

© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. 
Última revisão: 9 de outubro de 2024.

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de maio de 2024 >  Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25652: Humor de caserna (67): O Spínola teria-se-ia desmanchado a rir, se fosse vivo, e tivesse lido esta história do cabo Abel, contada aqui, em versão condensada, pelo nosso Alberto Branquinho

 
1. Ó Alberto Branquinho, o Spínola deveria ter gostado de ler esta história... Não sei se ele tinha sentido de humor e se chegou a aprender o crioulo tão bem como tu. O seu biógrafo é omisso sobre isso. Mas ter-se-ia desmanchado a rir, como eu me desmanchei,  ao ouvir a resposta da moça que ia para escola, ao cabo Abel, que, armado em dono da guerra, lhe queria barrar o caminho no cerco ao seu bairro... Mais: teria ficado imensamente satisteito e até orgulhoso com a "lata" da bajuda, vendo na sua atitude e comportamento o triunfo da sua política "Por uma Guiné Melhor"... Não achas ?!

[ Para quem não sabe, o Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, foi alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69). "Por Portugal, um por todos, todos por um", era a divisa do seu batalhão. Chegaram a Bissau a 1 de maio de 1967 e regressaram a casa em 2 de março de 1969. Portanto, ainda "trabalharam" com o Spínola nove meses... Tem 140 referências no nosso blogue, é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo". ]


Noss’ cabo Abel bai na Bissau

por Alberto Branquinho


O cabo Abel nunca tinha estado em Bissau.

O batalhão a que pertencia chegou a Bissau no paquete que os transportava desde Lisboa, mas a sua companhia saiu do paquete sem pisar terra, passou, diretamente, para batelões rebocados e, assim, foram rio acima,deixando, ainda, a bordo as restantes companhias do batalhão. (…)

Nunca tinha saído de junto da companhia, nos vários aquartelamentos por onde tinha peregrinado. Nem sequer uns dias de férias em Bissau. Tinha-se afeiçoado ao periquito que tinha preso à barra da cama. (…)

Agora, passados vinte e três meses, em Bissau,à espera de embarcar para a Metrópole, também já com a cara verde-amarela azeitona que o impressionara nos velhinhos no dia da chegada, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez!  

Era um rio de vida que corria pelas ruas – tropa bem fardada, polícia militar, polícia naval, civis, muitos civis e, principalmente, mulheres, muitas mulheres! Todas bonitas. E, até, muitas mulheres brancas, que já não via há muito tempo. (…)

Em Bissau a companhia recebia, por vezes, instruções para fazer cerco aos bairros negros de Bissau. O bairro era cercado pelas quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completo o cerco, grupos de militares inspecionavam casa a casa, pedindo os documentos.

(...) Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco sentava-se no chão, com a G-3 entalada entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações de tensão que, em circunstâncias idênticas, tinham sido vividas, em emboscadas ou cercos no interior da Guiné,

De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca,trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se e,  com a G-3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:

Bajuda, bô cá pude passa!

A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:


− Porque você não fala comigo português direito ?

E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau. O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado, a vê-la passar. 

Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 141/43

(Título, excertos,  revisão / fixação de texto, parênteses curvos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

Guiné 61/74 - P25651: Notas de leitura (1701): Cuidado com o material em falta! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Andamos a ler as peripécias vividas por um engenheiro civil em Bolama, em 1928, era Governador o Major Leite de Magalhães, o sr. engenheiro tinha as contas no caos, ofendia gente e levava lambada, era sancionado pelo Governador em pleno boletim oficial, contestava sempre, e não esconde que tinha amizades em Lisboa. Nisto saltaram recordações de material em falta, a necessidade urgente de fazer processos de abate para ferros retorcidos de camas, colchões, fronhas e lençóis queimados, armas escavacadas. E logo um alferes na sede do batalhão, em Bambadinca, me pedia para em cada flagelação eu meter as faltas que ele tinha nos seus depósitos. Fatal como o destino, apareceu-me um coronel com cara de poucos amigos a perguntar como é que eu tinha mais abates que 2 batalhões juntos... Tudo se explicou, tudo se perdoou, mas isto do material em falta, deteriorado ou avariado, pode dar as mais inusitadas chatices, regressara a Portugal há bem 6 meses e bateu-me à porta um polícia, tinha que pagar um lençol rasgado (que, evidentemente, recebera rasgado, e com a calmante explicação que não tinha importância nenhuma) ou então teria que o acompanhar à esquadra.
Cuidado com o material em falta!

Um abraço do
Mário



Cuidado com o material em falta!

Mário Beja Santos

A situação de que vou falar foi vivida por muitos combatentes e relaciona-se com material deteriorado sobre o qual havia exigências severas de processo de abate. Imagine o leitor como o assunto sobreveio, lendo documentação manuscrita com um século ou mais que se encontra nos reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Folheando uma grossa pasta, dei com uma novela vivida por um engenheiro civil, diretor das obras públicas em Bolama, no primeiro semestre de 1928, era governador da Guiné o Major Leite Magalhães e o engenheiro chamava-se Caetano Marques de Amorim, recusou ir para o Estado da Índia, foi despachado para a Guiné onde teve muitíssimos problemas, desde ter levado forte pancadaria de deportados ofendidos, uma advertência feita pelo governador em pleno boletim oficial e ser dado como um diretor de obras públicas altamente negligente. O inspetor extraordinário José Manuel de Oliveira e Castro envia ao governador em 29 de agosto de 1928 o resultado da inspeção financeira que levara a cabo na Direção das Obras Públicas.

Escreve:
“A inspeção teve início em 14 de abril último, pelo balanço dado ao cofre e pela verificação dos documentos nele exigentes, representando despesas efetuadas.
E dada a forma irregular como se haviam realizados os pagamentos constantes da documentação ali encontrada, no montante de muitas centenas de escudos, foi necessário proceder a um estudo e confronto demorados com a escrituração da Direção da Fazenda.
Relativamente ao Depósito de Materiais e Ferramentas, não podia ter lugar qualquer exame à sua escrita, porque ela não existia. Existia, sim, um livro sem obediência aos mais rudimentares preceitos legais, mal escriturado e atrasado. Os materiais e ferramentas existentes no Depósito, encontravam-se aos montes, sem indicação de preços e sem referência a faturas.
Foi, portanto, necessário promover a regularização da escrita, o inventário de toda a existência e a organização do novo livro, por onde se pudesse conhecer as espécies dos materiais e dos artigos à carga desse Depósito. Tal serviço foi protelado por parte do respetivo Fiel, durante muito tempo, e, para a sua mais breve conclusão indispensável se tornou que a Direção da Fazenda lhe suspendesse os vencimentos até concluírem e apresentarem os respetivos trabalhos.
Só em 10 de julho do ano corrente, o Sr. Diretor das Obras Públicas, engenheiro Marques de Amorim, me comunicou que o Fiel do Depósito tinha regularizado a escrita. Mas, vista ela, notou-se-lhe a falta de vários elementos que verbalmente lhe foram pedidos e que não apresentou, até que os pedi oficialmente. Em 11 do mesmo mês, vieram esses elementos com a nota da Direção das Obras Públicas, e no mesmo dia estava ultimada a inspeção financeira, cujos resultados levei ao conhecimento daquela Direção.
Verificado está que a demora havida se deve ao caos em que se encontrava a parte financeira daquela Direção, que, é indispensável acentuar-se, a mim, como inspetor extraordinário me pertencia apenas verificar e não organizar e compor, como fiz, não só pelo natural empenho da regularidade de todos os serviços da colónia, como também para satisfazer às instâncias do engenheiro Marques de Amorim, abraços com as dificuldades resultantes dos mais processos adotados anteriormente ao seu exercício.”


Despede-se com os cumprimentos da época (Saúde e Fraternidade), continuei a ler o processo, Marques de Amorim tentou agredir o deportado político José Simões da Piedade, disse a quem o ouviu que se estava a “cagar na revolução”, os deportados ajuramentaram-se para lhe dar um corretivo, Leite Magalhães irá puni-lo por comportamento desrespeitoso, enfim, uma perfeita cegada. Enquanto tudo isto lia, ocorreu-me o que vivera em Missirá, corria o mês de agosto de 1968. Peripécias inesquecíveis, e como é próprio destes casos, com ameaças de punição à vista.

Estava acerca de 1 mês a comandar Missirá e Finete, vivi em Missirá mais tempo, e um dia o cabo-quarteleiro, de nome Veloso, de voz ciciante e sempre a retorcer para baixo a sua bigodaça me recordou que havia uma divisão que eu ainda não visitara, um depósito de material sem préstimo, que conviria urgentemente denunciar à CCS do novo batalhão que ia chegar em breve a Bambadinca. Lá fui visitar o dito depósito, emanava um cheiro nauseabundo a podridões várias, ali havia de tudo, ferros de cama enferrujados, capacetes que tinham perdido préstimo, umas estranhíssimas peças em couro a cheirar a mofo, restos de terrinas metálicas rachadas ou amolgadas, enfim, um mundo inesperado de sucata com que eu não sonhara. E começou uma aventura kafkiana: interrogado o furriel que estava encarregado da contabilidade e manutenção, declarou nunca ter feito autos de abate, nem lhe conhecias a fórmula; anotado como prioritário o assuno na minha agenda, vou a correr falar com o tenente da secretaria do BART 1904, entregam-me formulários, insistem que devo fazer rapidamente o preenchimento dessa documentação, partirão em breves semanas. E preencheu-se aquela burocracia, senti alívio de meter em sacos toda aquela traquitana nauseabunda.

Não tinha passado 1 mês desde a chegada do novo batalhão, sofro uma flagelação de monta em Missirá, na noite de 6 de setembro, fez-se o relatório e descriminaram-se as perdas, o novo alferes encarregado da manutenção do material pede-me para eu alterar os números: na flagelação perderam-se 2 camas, ele recomendou que eu pusesse 20; arderam lençóis, fronhas e colchões, “Epá, põe aí qualquer coisa como 30 pares de lençóis e fronhas e mesmo os colchões, fiz o inventário aqui do batalhão, nem podes imaginar o material que falta, tenho que pedir auxílio a quem sofre flagelações para não vir a ter chatices”.

E cada vez que eu tinha uma flagelação aquele brioso alferes da CCS avolumava perdas.

Até que um dia desceu um helicóptero em Missirá, dele saiu um coronel com ar de poucos amigos, depois de um seco aperto de mão pediu-me um ambiente reservado para conversarmos, foi direito ao assunto, em Bissau achava-se completamente inacreditável que naquele quartelzinho com um pelotão de milícias e um pelotão de caçadores nativos houvesse perdas que excediam à vontade as de um batalhão que estivesse permanentemente a ser atacado. Respondi-lhe sem hesitar que tinha perdas e não enjeitava a camaradagem, como o Sr. Coronel podia imaginar ninguém estaria interessado em levar para a metrópole cobertores malcheirosos, ferros de cama, pedaços de fronha, rolos de arame farpado, procedera com solidariedade e não estava arrependido. O Sr. Coronel então sorriu, deve ter considerado que era com aquela franqueza chamar os bois pelos nomes que valia a pena encerrar o assunto, como aconteceu, meses depois o tal inquérito que foi arquivado.

Enfim, enquanto lia na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa os infortúnios e os disparates de Caetano Marques de Amorim, veio-me à lembrança que não se deve descurar o material em falta, quem descura arrisca-se a muitos amargos de boca. E fica aqui a última lembrança. Já em Bissau, pronto para regressar, aboletado num dormitório infecto a que chamávamos “Vaticano III” entregaram-me um lençol esfarrapado, que não me preocupasse, entregava-o assim na data da partida, era material para abate, não havia mais. Acreditei e 6 meses depois, a viver na Avenida do Brasil, em Lisboa, bate-me à porta um polícia e mostra-me um documento em que eu tinha que repor uma maquia por ter esgarçado um lençol em Bissau, se não pagasse imediatamente teria de o acompanhar à esquadra. Mais uma vez se mostrava que é preciso ter muito cuidado em manusear material para abate…

Prestando-se assistência sanitária na Guiné, 1967, Arquivo Global Imagens, com a devida vénia
A messe em Missirá (Cuor) em 1966, imagem do blogue
A minha morança em Missirá, ardida em 19 de março de 1969
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Nota do editor

Último post da série de 14 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25639: Notas de leitura (1700): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1858 a 1861) (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25650: Elementos para a história do Pel Caç Nat 51 - Parte VI: A propósito do assassino do alf mil Nuno Gonçalves da Costa, o soldado Mutaro Djaló, que já em Cufar tinha má reputação, e que chegou a viver na Venda Nova, Amadora (Luís Mourato Oliveira, último cmdt do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)

Foto à direita: Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74); veio  da CCAÇ 4740 (Cufar, 1973). Tem cerca de 75 referências no nosso blogue.. É autor da notável série "Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira".

1. Mensagem de Luís Mourato Oliveira, com data de ontem, domingo, 16 de junho, às 19:57:

Olá, Luis

Tenho recebido por email, e por essa razão respondo na mesma via, alguma informação relativa à história dos Pelotões de Caçadores Nativos, uma delas deixa-me sempre alguma triesteza porque se trata do assassinato do Costa, comandante do Pel Caç Nat 51 com quem convivi em Cufar quando este pelotão estava ali colocado antes de se deslocar para Jumbembem. (*)

O Nuno Gonçalves da Costa era um companheiro pacato, sincero e alguém que podemos classificar como um homem bom, título que considero o mais ilustre para um ser humano.

Foi assassinado por um soldado que já em Cufar tinha má reputação e que se chama, se ainda viver, Mutaro Djaló. 

Num encontro que tive há cerca de um ano para entregar uma encomenda com destino à Guiné Bissau, encontrei-me com o portador nas Portas de Benfica e tivemos uma longa conversa sobre o passado colonial e falámos nas tropas africanas de que o guineense tinha feito parte e do assassinato do Costa.

Fiquei a saber que o assassino viveu na Venda Nova, Amadora, e que regressou à Guiné Bissau, não posso precisar quando.

Pela narrativa, o crime não foi devidamente punido e um assassino de um homem bom, oficial do exército português, viveu com impunidade e com as regalias que os antigos combatentes foram privados e muitos foram executados criminosamente pelo novo regime instaurado após a independência.

Portugal e PAIGC ficaram mal na fotografia que há-de ser um testemunho da História. 

Também, não sei se por coincidência porque muitos nomes há iguais em todo o Mundo, existe na Guiné Bissau pelo menos um Mutaro Djaló que deve ter a idade do assassino e que foi ministro do interior e posteriormente director geral da imigração e fronteiras. Há crimes com recompensa e, neste caso, quem sabe?

Grande abraço

Luís Oliveira
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