terça-feira, 9 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25729: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte I: De Bissau ao Olossato, comandando um pelotão de infantaria



Foto nº 3


Fot0 nº 4

Guiné > s/l > s/d (c. meados de 1963) > O alf mil art José Álvaro Carvalho (que ainda não conseguimso identificar nas duas fotos) com o seu pelotão de infantaria, de uma companhia de intervenção, sediada em Bissau,  para onde ele foi em rendição individual, e  que já tinha um ano de comissão (ou seja, era de 1962).... Na foto de cima, um exemplar do "famoso granadeiro"...

Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José Álvaro Carvalho,
Angola,  ponte do rio Cuanza
(em contrução),
c. 1971
 

1. O alf mil José Álvaro Carvalho, embora sendo de artilharia, cumpriu os primeiros meses (basicamente o ano de 1963), comandando um pelotão de infantaria de uma campanhia de intervenção, de caçadores, sediada em Bissau. 

Recorde-se que ele entrou recentemente para a Tabanca Grande, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*)

Ainda não descobrimos a companhia onde ele foi colocado, por volta do  1º trimestre de  1963, em rendição individual, nem ele se lembra apesar da sua notável memória aos 85 anos... 

No princípio de 1963, havia 9 Companhias de Caçadores no CTIG: CCaç 74, 84, 90, 91, 152, 153, 154, 273 e 274. Temos representantes, no nosso blogue,  das CCAÇ 84,  CCAÇ 153, CCAÇ 274... O que é pouco. 

A CCAÇ 273 (açoriana, tal como a CCAÇ 274, mobilizadas pelo  BII 17, Angra do Heroísmo,  e BII 18, Ponta Delgada, respetivamente) esteve  no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses).  Sabe-se que teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas demos-lhe a palavra ao Zé Álvaro (*):

 "Meu pai sempre me chamou por C. Sendo esse o nome que dei ao livro. (...)

"Estava no 2º ano do serviço militar em África [ou seja, em 1964] . O primeiro não tinha sido passado como artilheiro, mas como alferes duma companhia de intervenção, para onde tinha vindo em rendição individual. 

"Na altura,  essa companhia já tinha um ano de serviço em África e quando após mais um ano acabou a comissão e se retirou para a metrópole (...),   [ o alferes Carvalho ou Carvalhinho, como ficará conhecido mais tarde no decurso da Op Tridente] ficou a aguardar funções no QG, oferecendo-se para o grupo de comandos, em formação nessa altura,  por já conhecer as condições duras e difíceis do mato e parecendo-lhe preferível entrar em operações arriscadas mas ter a sede na capital  e o consequente conforto".

(...) "Entretanto foi requisitado um alferes artilheiro para comando dum pelotão de soldados africanos com dois obuses de 88mm e,  quando menos esperava, foi parar ao Sul com ele, operando como independente, junto dum batalhão de cavalaria
 [BCAV 490] .

"Os soldados, indisciplinados, deram-lhe algumas dores de cabeça logo na 1ª operação e as coisas só começaram a funcionar normalmente com a ameaça de prisão ou mesmo fuzilamento dos mais rebeldes.

"Bebiam quase todos demais e na 1ª operação só levou cerca de metade porque os outros bêbados não se tinham de pé" (...)

Em maio de 1965, foi louvado e agraciado com a cruz de guerra de 3ª classe, pelo desempenho como oficial de artilharia, em campanha, em diversas operações, incluindo a Op Tridente (a mais longa operação realizada no CTIG, entre janeiro e março de 1974);

(...) "Louvo o Alferes Miliciano de Artilharia, José Álvaro Almeida de Carvalho, da BAC, porque, durante o período de catorze meses em que esteve destacado no Batalhão de Caçadores nº 619, foi sempre um Oficial zeloso, dedicado e muito competente, salientado-se a sua acção, principalmente, no campo operacional, em que foi utilíssimo o apoio, sempre eficaz, que soube dar com o seu pelotão em todas as operações em que interveio, nomeadamente, nas "Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate", contribuindo assim, dentro do seu âmbito, para o prestígio da Arma a que pertence. (...).

Mas antes de irmos com ele para a região de Tombali, vamos acompanhar as andanças do Zé Álvaro, como "infante", por Bissau, Mansoa e Olossato...  

No texto a que tivemos acesso ("Livro de C", versão manuscrita, revista, melhorada e aumentada) (*), o autor apenas refere os topónimos pelas iniciais: (C de rio Cacheu, B de Bigene,  O de Olossato, etc.). Não sabemos em data precisa em que esteve no Olossato, mas deve ter sido já em meados de 1963.

 
Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, cmdt, Pel  Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) 

Parte I:  De Bissau ao Olossato


A pequena festa na Messe de Oficiais da Marinha decorria alegremente. Eram quatro e só ele do exército. Outras tantas raparigas tinham sido convidadas para jantar e dançar, e, coisa rara, tinham aceite, apesar da opinião das respetivas famílias, que por principio não confiavam em militares, o que é natural.

Os efetivos da marinha eram ainda muito poucos, pelo que o ambiente nesta Messe era simpático e agradável.

A certa altura alguém o informou de que o Oficial de Dia ao Quartel General o mandara procurar. Tinha havido nessa noite a primeira emboscada no Norte. Até esse dia a guerrilha só atuara no Sul.

Resolveu aguardar pelo final da festa para se apresentar. Pareceu-lhe desculpável não ter pressa de enfrentar uma realidade preocupante. Por outro lado, era miliciano, indisciplinado, e pouco vocacionado para militar.

Talvez o Oficial de Dia o viesse a contatar antes do fim da festa. Se assim fosse, paciência. Continuou a divertir-se mas agora sempre a pensar no que o esperava. Era o alferes mais novo da Companhia de Intervenção e o seu pelotão seria o primeiro a avançar em qualquer caso de emergência.

Penso que esta regra tinha como justificação enviar primeiro os menos aptos, os mais novos, os mais inexperientes, a carne para canhão e só depois os mais aptos, os mais sabedores,  caso os primeiros falhassem. Mas em situações de guerra como esta os mais aptos, os mais experientes e sabedores, deviam avançar primeiro, não os mais novos. Era uma guerra ainda mal conhecida que caminhava à margem dos conhecimentos militares tradicionais.

Havia uma semana que a guerrilha iniciara operações no Norte (**). No Sul já há muitos meses que se estabelecera, sendo para lá que todo o esforço militar se dirigira até essa altura.

Aí já se tinha algum conhecimento da sua forma de actuar.

No dia em que tinha ocorrido a primeira emboscada no Norte,  a cerca de 120 kms da capital (dia da festa na messe da marinha) tinha avançado para o local um outro pelotão da companhia, em lugar do seu,  e cujo comandante, por essa razão, durante algum tempo deixou de lhe falar.

Passada uma semana recebeu ordens, para preparar uma coluna a fim de avançar com o seu pelotão como primeiro elemento da transferência de toda a companhia para o Norte do território. Deveria em seguida apresentar-se na Repartição de Operações do Q.G. para receber mais ordens, o que aconteceu alguns dias depois.

Tendo-lhe sido entregue um envelope lacrado com a indicação "Confdencial" ( a abrir após o incio da marcha na direcção Norte que deverá ter inicio 24 horas após a entrega deste documento).

Iniciou a marcha a partir do QG, nessa direcção, às seis horas. Levava um jipe, um todo o terreno Unimog e 3 camiões GMC a abarrotarem de equipamento de primeira necessidade e armamento médio, munições, combustível e géneros. O pessoal tinha sido distribuído pelas viaturas e arrumado com dificuldade. 

Este pessoal que já tinha um ano de operações, era constituído por um pelotão desfalcado de quinze soldados,  reforçado por um cozinheiro e ajudante e pelos condutores do Unimog e dos três camiõesde guerra da marca americana GMC.

A primeira coisa que fez já em andamento, foi abrir o envelope lacrado da Repartição de Operações do QG conforme instruções que recebera. Confirmou assim o conhecimento que já tinha, baseado na troca de impressões que tivera com o comandante da companhia.

No dia anterior tinha jantado com um oficial da marinha seu amigo, que comandava a lancha patrulha do rio C[acheu], o mais importante do Norte, e tinha-lhe dito que em breve avançaria com o seu pelotão para essa zona, possivelmente para uma povoação de valor estratégico a defender nas margens desse rio.

- Amanhã também devo regressar à lancha (a lancha era um pequeno navio de guerra bem armado e preparado para patrulhar os rios, em todos os principais havia uma) e, se souber que estás em B
[igene, frente a Ganturé, na margem direita do Rio Cacheu], quando lá passar, convido-te para jantar. Tenho agora um cozinheiro de primeira.

Depois da partida, ainda na cidade, cruzou-se com o Wolkswagen negro que levava este seu amigo para o cais, e, mesmo com os carros em andamento, conseguiu confirmar-lhe a conversa que tinham tido.

Os camiões roncavam no único troço de estrada alcatroada da região (60 kms), no fim do qual se encontrava uma pequena cidade 
[Mansoa] , onde chegaram cerca das nove horas. Nesta cidade, junto ao aquartelamento da companhia aí estacionada, o capitão que a comandava esperava a coluna. Mandou-o parar e disse-lhe que a missão fora alterada e tinha de se dirigir para a povoação de O[lossato] .

O pelotão para aí destacado, não conseguia não só defender o povoado, como até impedir que o inimigo, encurralando-o de metralhadoras apontadas a cada porta do edifício do quartel, um antigo celeiro de amendoim rodeado de arame farpado a distância conveniente, se passeasse impunemente na aldeia, entrando nos dois estabelecimentos comerciais existentes, abastecendo-se do que bem entendia, em troca de requisições supostamente válidas, após ganha a guerra e exercendo junto da população civil branca ou africana as mais variadas formas de propaganda e intimidação.

Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de
O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente (***) e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si.

 O piso, na maré vazia era formado na sua maior parte principalmente por lama de alguma profundidade, coberta por uma mata cerrada própria que é costume chamar por mangal. Na maré cheia todo o território era inundado em cerca de 1/3 da sua dimensão.

Chegaram já de noite ao seu destino. O destacamento que ia substituir,  já tinha partido, deixando uma secção para reforçar o seu pelotão desfalcado pela doença e combates.

A companhia já andava naquele território havia mais dum ano. Por esta razão quando viera para África substituir um alferes, a companhia já tinha um ano de comissão.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, parênteses retos: LG)

_______________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 26 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (890): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BCAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

(**) Vd.  CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, 2014). pp.91/92

(...) "Também ao norte do rio Cacheu as NT actuaram contra elementos inimigos que, provindo do Senegal, realizavam incursões no território da Guiné. Em 25mar63, após um forte ataque inimigo ao aquartelamento de Susana, o destacamento local, acompanhado da população de raça Felupe, perseguiu o inimigo até à fronteira causando-lhe numerosas baixas. Devido aos frequentes ataques, a população da região a norte da estrada de S. Domingos-Sedengal foi evacuada, passando essa área a ser considerada "zona interdita", procedendo-se ali à colocação de numerosas armadilhas e à montagem de frequentes emboscadas nas principais linhas de infiltração, verificando-se uma redução da actividade inimiga na área e o regresso da população à vida normal, a partir de Julho." (...) (pág, 91)

Enquanto decorriam as operações no Sul, verificaram-se algumas acções ln no Sector Oeste, entre a fronteira e o rio Geba. Assim, em 21abr63, o ln atacou a povoação de Canjandi (S. Domingos) não causando baixas à população e sofreu I morto, em face da reacção da população; no dia 26 atacou Brengalon (Sedengal) tendo explodido uma armadilha colocada pelas NT.

Mais tarde, em 5mai63, o aquartelamento de Bigene foi atacado de noite, tendo o ln causado 4 feridos ligeiros às NT; no dia 13, o ln atacou e incendiou uma viatura de passageiros que seguia de S. Domingos para a fronteira e na noite de 17/18 queimou a tabanca de Panta (Sedengal).

Neste Sector a actividade inimiga decaiu no mês de junho; no dia 07, incendiou, na região de S. Domingos, um camião dum cabo-verdiano, que foi encontrado morto e no dia 30 danificou a jangada de Barro, dirigindose depois a uma tabanca, próxima da estrada para Bissorã, queimando a
morança do chefe. (...) (pág. 92)

(***) Vd.CECA (2104):

(...) Diretiva n° 5 do Comandante-Chefe, de 27 de Agosto de 1963:

"Foi elaborada para a Operação 'Dardo' (...)

"Inimigo

a. A região de Olossato-Bissorã-Talicó-Mansabá, desde princípio de julho, é objecto de uma intensa actividade terrorista que tem como núcleos principais as matas do Dando, Fajonquito, Cã Quebo, Cai, Morés, Talicó e pretende: 

- mediante ataques à população civil, coagi-las a tomar o seu partido ou pelo menos facultar apoio;

- posteriormente, conseguir o controlo da região e cortar as nossas comunicações para o norte e leste.

b. O ln dispõe de bom equipamento, no qualb. O ln dispõe de bom equipamento, no qual se incluem metralhadoras e é constituído por seis grupos com a seguinte localização:

- Fajonquito;
- Cã Quebo;
- Mansodé:
- Morés:
- Região de 2 pontes (Mamboncó);
- Dando." (...) (pág. 117) 
 

Guiné 61/74 - P25728: Parabéns a você (2288): Adriano Moreira, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70) e Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto da CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)


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Nota do editor

Último post da série de 4 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25712: Parabéns a você (2287): Jorge Ferreira, ex-Alf Mil Inf da 3.ª CCAÇ (Nova Lamego, Buruntuna e Bolama, 1961/63)

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25727: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (2): "Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça que queria ser padre"



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) 
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, 
Colecção: Bíos, Género: Biografia).



Dedicatória autografada: "Para o Luís Graça, com muita amizade. 
A.Marques Lopes, 17.09.15"



Beja  > Penedo Gordo > 30 de setembro de 1951 > O A. Marques Lopes, 
aos sete anos, com a mãe e um "canito" ao colo.


"Lembranças de Julho de 1995. Eduardo, era o meu pai, avô do Francisco, morreu há 26 anos: Hélder António, meu sobrinho, filho do Fernando Vale, morreu há dois meses; Fernando Vale, meu cunhado, morreu há 13 anos. Francisco, meu filho, está vivinho da costa com 29 anos." (A. Marques Lopes, página do Facebook, 24 de dezembro e 2023, 18:57)

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


"O MEU HISTORIAL", por A. Marques Lopes (Lisboa, 1944-Matosinhos,2024)

(i) 1944-1951 – Nascido em Lisboa, na Mouraria, acabou por ir viver no Alentejo, até aos 7 anos (Penedo Gordo, arredores de Beja), por razões de saúde da mãe;

(ii) 1951/1955  – Instrução Primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa;

(iii) 1955/1964  – Seminário;

(iv) 1964/1965 – Trabalha nos Armazéns da AGPL (Administração Geral do Porto de Lisboa) e frequenta a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v) janeiro 1966/julho 1966 - COM (Curso de Oficiais Milicianos) na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, onde tiru a especialidade de atirador de infantaria ( o seueu instrutor foi o tenente Chung Su-Sing);

(vi) julho 1966 /  dezembro 1966 – Aspirante no RI1 (Regimento de Infantaria nº 1) na Amadora;

(vii) dezembro 1966 / abril 1967 –  Instrutor de um pelotão da CART 1690 (Companhia de Artilharia nº 1690) em Torres Novas e Oeiras, unidade mobilizada para o Ultramar;

(viii) 15abril1967  – Chegada à Guiné como alferes da CART1690; a companhia foi colocada, logo no dia seguinte, na zona do Oio (Geba, Banjara, Cantacunda e Camamudo);

(ix) agosto 1967 – Ferido por uma mina AC/: nesse período tinha participado, como comandante de um Grupo de Combate, em oito operações: numa delas (24 de junho de 1967) foi dado como “desaparecido em combate”;

(x) setembro1967– Evacuado para o HMP (Hospital Militar Principal), de Lisboa por ferimentos em combate;

(xi) maio1968 – Reenviado para a Guiné e colocado na CCAÇ 3 (Companhia de Caçadores nº 3, de naturais da Guiné) em Barro, a 3 kms. do Senegal; participou em 36 operações como comandante de um Grupo de Combate;

(xii) março 1969  – Regresso à Metrópole e passagem à disponibilidade; depois disso e até ao 25 de Abril teve participação em acções contra o regime e a guerra colonial;

(xiii) reingresso no Exército por disposições estabelecidas após o 25 de Abril (Decreto-lei 43/76 do Conselho da Revolução); passagem à Reforma Extraordinária como Coronel em 2000;

(xiv) Membro da Direcção da Delegação do Norte da Associação 25 de Abril.

Fonte: Adapt. de A. Marques Lopes (página do Facebook, 2 de abril de 2024, 17:15)

  

O melhor de... A. Marques Lopes (1944 - 2024) (2) > 

Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça 
que queria ser padre


O pai e a mãe, bem como os seus avós, bisavós e trisavós nasceram todos no Alentejo, no Baixo, e talvez os de antes também, mas isso não sabia ao certo. Já falara sobre isso, sobre as raízes e a árvore genealógica da família, mas o pai riu-se dizendo-lhe que essa árvore era um chaparro com raízes fundas, como há muitos nos montados. 

Lembravam-se dos seus antepassados diretos mais chegados mas não conseguiam ir muito longe. A mãe foi ceifeira que andava à calma , lembrava-se bem desta canção, e o pai foi tratorista nos campos dos latifundiários, rasgando-os com aivecas . Pensa que foi por isso que lhe acrescentaram a alcunha Aiveca ao nome próprio, sendo conhecido lá na terra como Eduardo Aiveca. 

Mas a vida era má, contaram-lhe da miséria e da fome passada, razão por que tinham vindo para Lisboa na tentativa de encontrar melhor. Foi por isso que nascera na maternidade Magalhães Coutinho, ali para os lados da Estefânia. O pai quis pôr-lhe o nome de António Aiveca mas o registo civil do Socorro não deixou acrescentar Aiveca,  pois não era o apelido que ele tinha no bilhete de identidade. Mas a família sempre o tratou assim e assumiu esse nome toda a vida. 

Até porque, após o nascimento, só passara um anito na Rua da Mouraria. A mãe adoeceu dos pulmões e o médico disse-lhe para ir apanhar ares para o campo, lá para baixo. Fora com ela, ainda bebé, e ali ficou sete anos. Lá na terra sempre foi tratado por António Aiveca, o filho do Eduardo Aiveca. Não desgostava do nome.

Quando tinha seis anos metera-se-lhe na cabeça que queria ser padre. Não havia pároco a residir no Penedo Gordo, devido à extrema miséria dos assalariados rurais que constituíam a grande maioria da população da aldeia e porque a maior parte deles não ligava grande coisa às questões da religião. Só aos domingos é que o seminário de Beja mandava um padre para que os crentes pudessem cumprir os seus deveres dominicais. 

Nessa altura ia à igreja com a avó Rosário. Os avôs Salustiano e João, materno e paterno, não ligavam, nem os tios, a mãe não ia porque estava doente, dizia ela, mas sempre lhe pareceu a ele que também não ligava muito àquilo. A avó Violante, a mãe do seu pai, nunca a vira na igreja. Mas ele gostava de ver o senhor prior com aquelas vestes bonitas, as campainhas, a solenidade, e o respeito de todos os que lá estavam impressionavam-no muito. Todas aquelas cores, luzes e sons eram uma maravilha. Os revérberos do sol através dos vidros coloridos das janelas exerciam o mesmo efeito que qualquer coisa extraterrestre poderia exercer, encantamento, espanto e redobrado respeito. 

Era bonito, também queria ser padre. Tanto insistiu com a mãe que esta, num dia que teve de ir a Beja, levou-o ao seminário para lá ficar. O reitor ficou encantado, sorriu e afagou-lhe a cabeça. Mas recomendou-lhe, depois, com ar sério que tinha primeiro de tirar a 4ª classe e deu-lhe uma mancheia de rebuçados. Deixou-o contente e muito esperançado de um dia poder igualmente viver no meio de tantas maravilhas, numa casa enorme e bonita como aquela e ter sempre à mão quantos rebuçados quisesse.

Estas lembranças ainda agora eram agradáveis e o faziam sorrir. Mas queria ver mais algumas páginas.

A. Marques Lopes, quando 
jovem

Quando completara sete anos regressou a Lisboa. No período seguinte, até completar a instrução primária, andou pelas ruas da capital. O seu fascínio e bulício substituíram o anterior encantamento das luzes e colorido da igreja da aldeia alentejana. Não foi, no entanto, porque deixasse de estar em contacto com padres e igrejas. Pelo contrário. Através de umas senhoras protectoras dos pobrezinhos entrou para uma escola dirigida por padres. O contacto com as coisas sagradas passou a obrigatório. Missa diária, oração diária, e grandes castigos para quem faltasse. 

Mas o contacto com a cidade foi mais forte. Grandes e belas gazetas deram-lhe muitas tardes de brincadeira no jardim da Estrela, no Parque Eduardo VII, no Castelo de S. Jorge, por toda esta Lisboa, enfim. Com outros gazeteiros mais afoitos foram grandes caminhadas para tomar 
banho, em cuecas, na praia de Algés.

Na altura, os pais moravam numa parte de casa em Campo de Ourique. Sempre que conseguia uns tostões enfiava-se no Paris ou no Europa para ver filmes de aventuras. Mas o ambiente preferido era o jardim da Parada , aquele jardim era maravilhoso. Pequeno, mas cheio de gente, de rãs, de peixes e de carros a abarrotar de gelados era um jardim enorme para os miúdos. Permitia brincadeiras de índios e cowboys, polícias e ladrões, provas de resistência em corridas à volta do jardim, torneios de caricas nas bordas dos passeios, sessões de anedotas picantes promovidas pelos mais espigadotes, histórias de bruxas e lobisomens. Havia também jogos mais suaves com as miúdas da mesma idade, o jardim da Celeste, mais um par de jarras que na roda entrou, a vida do marujinho é uma vida amargurada, jogar aos casados…
 
Tinha saudades disso. Muitas recordações deixara naquele jardim. Célia, Maria João, Maria Emília, não conseguia esquecê-las. Nem queria. Principalmente a Célia com aquela trança caída sobre o peito, vestido de fantasia e olhos gaiatos. 

É triste ver tudo isso já atrás sem poder voltar, principalmente nos momentos em que a tristeza e o desalento ferem o coração e em que a vida real, com as suas vicissitudes, tortura o pensamento. Quem lhe dera voltar a ser criança como fora naquela altura, para não ser atormentado por pensamentos em luta, como estava agora.

A. Marques Lopes

(Seleção, revisão/fixação de texto, negritos, para efeitos de publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)

PS - António Aiveca é o protagonista do livro "Cabra Cega", um "alter ego", do autor, que usou outro "alter ego", João Gaspar Carrasqueira, para "assinar" a obra... 

O recurso a pseudónimos literários é muito frequente entre militares: Carlos Vale Ferraz (cor cav 'cmd' ref Carlos Matos Fomes), Manuell Andrezo (ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, 1933-2024), João Gaspar Carrasqueira (cor inf DFA António Marques Lopes, 1944-2024)... E tantos mais, militares e civis: Carlos Selvagem (maj cav Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos, 1890-1973), Miguel Torga (médico Adolfo Correia da Rocha, 1907-1995), Júlio Dinis (médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho, 1839-1871), etc.

Nos últimos meses de vida, o António escreveu imenso no seu Facebook, e retomou algumas das melhoras páginas do seu livro autobiográfico, "Cabra Cega", entretanto publicado também no Brasil, com o seu nome verdadeiro, A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (São Paulo: Paperblur, 2019).
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25720: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (1): O meu cruzeiro no N/M "Ana Mafalda": ficámos contentes por saber que era só até à Guiné, e não até Timor...

Guiné 61/74 - P25726: Notas de leitura (1707): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Mais um empréstimo feliz da Biblioteca da Liga dos Combatentes, encontrar-me com homem corajoso mas discreto, de escrita luminescente, agradado com a vida, que abre o seu livro com uma citação de Churchill: "Um otimista vê uma oportunidade em cada calamidade. Um pessimista vê uma calamidade em cada oportunidade", passou escrito peripécias com aviões atingidos, avariados, vamos assistir a crianças nascidas a bordo, e haverá um momento em que não podemos deixar de rir a bandeiras despregadas, uma viagem de Arnaldo Schulz a Bafatá, vai acompanhado da mulher e do seu Oficial de Operações às ordens, mal o avião aterra, a multidão agarra na mulher do governador e este desata aos gritos, "Agarrem-me a velha!", o Governador a correr atrás da multidão, eufórica, era a mulher do governador a correr às cavalitas de um possante, ninguém prestava atenção ao governador, que corria por ali, esbaforido. Este segundo sargento-piloto Rogério Lopes vai-nos ficar no coração.

Um abraço do
Mário



Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Rogério Lopes, (2.º Sargento Piloto, Guiné, 1963-1965), nascido em 1939, tirou a primeira licença de piloto civil em 1959 através da Escola Aeronáutica da Mocidade Portuguesa e nesse mesmo ano entrou na Força Aérea. Durante 3 anos esteve colocado na Base Aérea de S. Jacinto, parte para a Guiné em 1963. Passou à reserva em 1970 e foi trabalhar para a aviação civil. Das suas missões em dois teatros de guerra deixa-nos este relato que já vai em 3.ª edição, "Missões de Um Piloto de Guerra", 2019.

São narrativas versáteis, revelam memórias de um espírito otimista, entusiasta, dotado de grande espírito de corpo, de muitas coisas nos falará, desde o seu batismo de fogo, a missões de socorro, o seu apreço pelos heróis do ar, avarias que não acabaram em desastre, bombardeamentos noturnos, evacuações de uma atmosfera de tempestade, crianças que nasceram a bordo, episódios picarescos, vale a pena contar um pouco de tudo, são os primeiros anos da guerra da Guiné.

Chega a Bissau em novembro de 1963. Foi atingido a bordo de um avião desarmado, ia queimar capim perto da Ponta do Inglês, no chão do avião e em frente levava 50 granadas de fósforo. No regresso, já com o capim a arder, sentiu o impacto de uma bala debaixo do avião. Na aflição, chamou pela rádio a patrulha de F-86, começou a viagem de regresso, voo em direção a Bafatá. Pensava levar um pneu vazio, agiu com prudência para a aterragem: desligar o motor, cortar o fuel, os magnetos, aterrou suavemente com a roda direita sob a pista, tudo correu bem, os oficiais que o acompanhavam não ganharam para o susto. Na inspeção do avião, descobriu que uma bala tinha cortado a base da soldadura da longarina (tubo fino que liga a base triangular da perna do trem à fuselagem). Procurou uma solução expedita para viajar até Bissalanca. Instruiu três soldados para que o primeiro segurasse e levantasse a asa esquerda, o segundo tinha que se pendurar na direita e o terceiro agarraria no comprido barrote de madeira que travava as rodas dianteiras do Auster. A peripécia correu bem, pôs o motor a trabalhar, quando a cauda do avião levantou, mandou tirar o barrote de madeira, o avião rolava pela pista ladeado por um soldado correndo muito, tentando aguentar uma asa com tendência a cair para o chão, e o outro soldado, empoleirado na outra, tudo fazia para que a sua asa fosse direita. Já no ar, acenou aos seus improvisados ajudantes. A moral da história é que depois desta missão foram proibidas as largadas das granadas de fósforo em Auster, era uma operação demasiado perigosa.

Depois de nos contar uma história de como lhe apareceu uma cobra verde no sapato, narra um pedido de socorro de forças terrestres que estavam emboscadas numa picada perto de Buba. Conseguiu contactar a tropa e só ouvia gritos de socorro. Lá em baixo estavam todos numa aflição, mas ainda o avisaram que estavam a fazer fogo sob o avião. Fez fogo sob que o estava a emboscar, apontou à base, na inspeção descobriu que um dos tanques de fuel estava quase vazio. Ficou intrigado, o avião podia ter explodido. Mais tarde, na reparação do avião em Alverca do Ribatejo, foi encontrada a bala. “O bizarro era que a dita bala era de 9 mm, o calibre usado pela nossa tropa! Do outro lado do conflito, as munições eram de 7,62 ou 12,5 mm!”

Narra um caso de sabotagem que fora feita por um cabo especialista de armamento, cabo-verdiano e dá-nos, depois, uma boa explicação sobre bombardeamentos noturnos. Fala de missões num T-6 Harvard, armado de metralhadoras 7,62, foguetes de 37 mm, bombas de 12 ou 50 kg. “Em 1963/65 já havia reação antiaérea por parte do inimigo, principalmente de metralha tracejante 7,62 ou canhão 12,5, havia zonas de intervenção livre de fogo real pela nossa parte, zonas em que os nossos soldados já não conseguiam entrar sem sofrer grandes baixas, com intensíssima reação do inimigo. Foi decidido que nós, os aviadores, no princípio da noite, teríamos que apagar as fogueiras dos terroristas infiltrados nessas áreas (…). Os voos eram feitos com luzes apagadas, exigindo um enorme esforço de acuidade visual. Para fazer bombardeamento a picar no T-6, era preciso meter o alvo no bordo de ataque da asa com a a fuselagem, depois, subir o nariz da aeronave e, voltando para o alvo, mergulhar até alcançar a velocidade de cerca de 180 milhas. Ora isto de dia era uma coisa… de noite era algo muito mais difícil. Não tínhamos radar, nem piloto automático e não tínhamos um avião para bombardeamento noturno. Mas fazíamos!”
E dá-nos conta da natureza destes combates, quem estava em terra despejava fogo, o inimigo passava a saber que também se sujeitava a bombardeamentos noturnos.

Não se pode ficar indiferente à sua narrativa de uma evacuação na tempestade. Vai num Auster buscar uma mulher gangrenada em Gadamael Porto, que ele descreve como uma pista ao longo de um rio perto da foz e que ficava alagada sempre que a maré estava cheia, tinha apenas 600 metros de comprimento e cerca de 40 metros de largura. Já no ar, começou a ver a tempestade que se deslocava do mar para o interior, viam-se cúmulos-nimbos gigantescos, apercebeu-se que iria ter um regresso bem acidentado, como aconteceu. O cheiro nauseabundo da gangrena era de tal maneira intenso que ele foi obrigado a abrir as duas pequenas janelas do avião, nisto rompeu a tempestade em forma de peão gigante, fechando-lhe a rota para Bissau, chovia imenso, baixou o teto de nuvens, diminuiu a visibilidade apressadamente. Viu-se forçado a desviar a rota para fugir ao tornado gigante que se aproximava, apontou para a pista mais próxima, Catió, procurou pedir auxílio através do rádio, não obteve resposta. E estacionou o avião, ninguém apareceu, calçou as rodas do avião com pedras. “Ficámos dentro do Auster umas três horas, debaixo de trovões, relâmpagos, chuva e rajadas de vento, que faziam oscilar o pequeno avião como se fosse uma borboleta.” Quando o vento amainou e o negrume desapareceu, voou para Bissau, a mulher doente foi descarregada e metida numa maca.

“Despedi-me dela com lágrimas nos olhos, desejando-lhe as melhoras com um gesto de envio de beijo nas pontas dos dedos, que ela retribuiu com um doce sorriso.
Nem os soldados da ambulância nem os mecânicos ficaram insensíveis àquele estado de degradação, e a emoção tocou-nos a todos, homens da guerra.
A geração do após 25 de Abril que fique bem ciente que não foram só bombas que largámos em África, mas também salvámos muitas vidas de pretos e brancos, sem preconceitos de raças ou credos, pondo em primeiro lugar a sua sobrevivência.”
Cruz de guerra, 3.ª classe
T-6 em pleno voo
O Do-27
O Auster

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 5 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25719: Notas de leitura (1706): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1865 e 1868) (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25725: Os bravos que foram esquecidos (1): Pelotão de Canhão s/r 3080 (Catió e Gadamael, nov 71 / set 73), comandado pelo alf mil inf Mário João Almeida Rocha




Fonte: Manuel Vaz (2019) (**)


I. Dois comentários, já antigos, ao poste P1877 (*)

(i) Anónimo:

O pelotão de canhões s/r 5,7 nº 3080 esteve em Gadamael em 1973,  comandado pelo alferes Rocha, tinha 2 furriéis, um o Arinto,  de Coimbra,  e o Milheiro, de Idanha A Nova; tinha 5 cabos, o Justo, o Caetano, o Lucas, o Costa e o Balbino. 

Tinha mais 31 soldados. Destes elementos nenhum fugiu, quando foram os dificeis dias de maio de 1973 em que quase todo o pessoal da aquartelamento fugiu para a bolanha e para Cacine. Estes mantiveram~se ao fundo da pista com os seus canhões virados para a estrada da fronteira da Guiné Conacri. 

Sentiram-se magoados com o esquecimento a que foram votados pelos elementos que depuseram no episódio da guerra do Joaquim Furtado (Documentário, " AGuerra", Episódio nº 10, de 18,  2012, 70 minutos), e que tinham vindo de Guilege, e que certamente não se aperceberam daqueles que estavam ao fundo da pista de aviação.

9 de janeiro de 2013 às 19:01

(ii) António Arinto:

Como o meu nome foi mencionado num comentário no vosso Blogue, tenho a dizer o seguinte:

1- O Pelotão de Canhão  s/r 5,7 3080 esteve em Gadamael,  vindo de Catió,  com 18 meses de comissão,  desde abril de 1973, onde instalou 3 canhões.

2- A missão era também instalar 2 canhões em Guilege, não foi feito por falta de tempo, pois entretanto começaram as flagelações em Guilege e depois em Gadamael com os resultados catastróficos e traumáticos conhecidos.

3- Que os nossos homens aguentaram tudo, nenhum fugiu, corremos o risco iminente de ficarmos isolados e sozinhos, não tendo acontecido, pensamos nós, devido à chegada do capitão 'comando' Ferreira da Silva que  teve uma actuação muito boa, orientando as evacuações dos feridos e mortos e acalmando os poucos que não tinha fugido. Depois chegaram os paraquedistas (o BCP 12, o batalhão completo).

4- Que a disciplina,união, coragem, espírito de sacrifício, e disponibilidade total dos nossos homens,já na parte final da comissão, fartos de levar porrada em Catió,  se deve especialmente a um Homem,  alf mil Rocha. Educado, humilde, bem formado, simples, camarada, bom condutor de homens. Com o seu exemplo, soube incutir, em todos nós, as qualidades necessárias para conseguirmos chegar ao fim sem qualquer baixa mortal, de consciência limpa, com a certeza absoluta que fizemos muito mais do que nos treinaram para fazer.

5- Que revolta, tristeza, ingratidão, toda esta mistura de sentimentos senti, ao ouvir declarações de militares que estiveram em Gadamael no programa da RTP1,  "A Guerra", não referindo uma só palavra sobre estes homens dos Canhões que tudo aguentaram.

6- Que as Companhias tanto a de Gadamael como a que veio de Guileje passados uns dias foram substituidas e os homens dos Canhões só foram rendidos em setembro de 1973,  com 23 meses de comissão.

7- Fomos levados para Cacine só com a roupa que tinhamos vestida, mais nada, estivemos quase um mês em recuperação alimentar e de saúde (tal era o estado em que estávamos).

8- Fomos para Bissau e embarcámos para a Metrópole no Navio (não me lembro o nome) em outubro de 1973.

Este é o meu desabafo e revolta que sinto depois de tantos anos

Abraço, António Arinto.

11 de janeiro de 2013 às 03:10

II. Comentário do editor LG:

Com mais de 102 mil comentários no nosso blogue, em 20 anos, estes dois, que aqui reproduzimos, estavam "esquecidos", na caixa de comentários, na "montra traseira", do poste P1877 (*). 

Fui relê-los ontem, depois de descobrir que o alf mil Rocha, era nem mais nem menos do que um velho conhecido meu, com família aqui na minha terra, Lourinhã.  De seu nome completo, Mário João Almeida Rocha, costumava passar as férias grandes, na infância e adolescência,  na Praia da Areia Branca. Estava longe de imaginar que também tinha "penado", como eu, na Guiné, e que é um dos heróis da batalha de Gadamael (maio, junho, julho de 1973).  É hoje arquiteto (, licenciado pela Escola de Belas Artes de Lisboa, tendo trabalhado como arquitecto na Administração Pública, no Ministério da Justiça,  e na acividade privada, e estando hoje reformado, segundo a imformação nos deu o irmão mais novo, o dr. José Rocha).

É mais que justo dar a devida visibilidade ao desempenho daqueles homens naquela batalha medonha que fez parte dos 3 G (Guidaje, Guileje e Gadamael) (maio / junho / julho de 1973)..E é para isso que o blogue serve: para partilhar memórias (e também afetos) entre os antigos combatentes daquela  guerra,  já praticamente esquecida por todos, portugueses e guineenses.

Quem me levou a reler aqueles dois comentários foi o irmão do Mário João, o José Gabriel Almeida Rocha, advogado, e que últimamente tenho reencontrado mais vezes, na associação a que ambos pertencemos, o VIGIA - Grupo do Amigos da Praia d Areia Branca. O José Gabriel tem casa aqui e em Paço de Arcos. 

O dr. José Rocha colega e amigo do João Seabra, membro da Tabanca Grande, ex-al mil, da CCAV 8350, os "Piratas de Guileje" (1972/74). Temos também como amigo comum o novo membro da Tabanca Grande, José Álvaro Carvalho (ex-alf mil art, Pel Art / BAC, 8.8, 1963/65, que esteve adido 14 meses adido ao BCAÇ 619,  Catió, 1964/66).

Temos mais duas referências ao Pel Canh S/R 3080: postes  P19559 (**) e P23403 (***).

É particularmente elogiosa a referência que faz o nosso historioógrafo de Gadamael, o Manuel Vaz (**) a esta subunidade de armas pesadas de infantaria, aos seus homens e ao seu comandante, o alf mil Rocha, que esteve em Gadamael desde abril a setembro de 1973.



Fonte: Excertos de Manuel Vaz (2019) (**)

Sabemos que o Pel Canh SR 3080 foi aumentadado ao efetivo do CTIG em 24 de novembro de 1971, fazendo parte em 1 de julho de 1972 do Grupo de Artilharia n° 7 (GA7), e estando localizado em Catió. Um ano depois, em 1 de Julho de 1973 continuava fazer parte do GA7, mas estava já colocado em Gadamael (desde abril).

Após a retirada da guarnição de Guileje (22Mai73), a guarnição de Gadamael Porto (Sector COP 5) tinha a seguinte constituição:

  • CCaç 4743/72 |  2 GComb/CCaç3520 |  Pel Canh SRc 3080 (5 armas) | e Pel Mil 235. 
  • Vindas de Guileje: CCav 8350/72 | 15° Pel Art (14 cm) a 3 bocas de fogo | Pel Rec "Fox" 3115, apenas com 1 VBTP "White" e 1Sec (+)/Pel Mil 236 (o restante pessoal estava ausente ou havia sido baixa em combate).
 O capitão inf "cmd" Manuel Ferreira da Silva assumiu o Comando do COP 5 em 31 de Maio de 1973, em substitiução do maj art Coutinho e Lima (1935-2022).

Sobre Gadamael temos 418 referências:

E Guileje tem 581:

Retomaremos oportunamente esta série "Os bravos que foram esquecidos".Infelizmente, estas subunidades ( Pelotões de Canhões S/R, mas também Pelotões de Caçadores Nativos, Pelotões de Morteiros, Pelotões de Artilharia,etc.) não tempo de elaborar as respetivas "histórias de unidade" (composição orgânica, atividadade operacional, baixas, louvores, etc.)... E depois tinham poucos graduados metropolitanos, sendo as praças, em geral, do recrutamento local. 

Agradeço ao dr. José Rocha ter-me oprotunamente abordado, ontem no VIGIA,  e falado do injusto esquecimento a que foram votados os bravos do Pel Canh s/r 308, na batalha de Gadamael. 

Por sua vez,  o seu irmão (e nosso camarada) Mário Jorge Almeida Rocha está à vontade para nos contactar e usar o blogue para esclarecer tudo o que bem entender. Ele e a malta do seu antigo Pelotão. Um especial alfabravo para ele e para o António Arinto (Coimbra).

(Seleção de excertos, edição de foto, revisão / fixação de texto dos comentários, negritos e itálicos: LG)

Guiné 61/74 - P25724: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte VI: Uns com tanto, e outros com tão pouco








 Timor Leste > Um país montanhoso, de paisagens luxuriantes... A muitos sítios no interior, só se consegue chegar de "motor" (motorizada), mesmo que o "pendura", em muitos troços, tenha que ir a "penantes" (como é o caso, aqui, do Rui Chamusco, na primeira foto de cima)



Fotos: © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Escola Portuguesa Ruy Cinatti > Festa final de ano 2024/25 (vídeo, 5' 40'') (com a devida vénia...).


 (A Escola Portuguesa de Díli - Centro de Ensino e Língua Portuguesa Ruy Cinatti, fundada em 2002,  é um estabelecimento de de ensino pré-escolar, primário e secundário localizado em Díli, Timor-Leste., frequentada por alunos timorenses, portugueses e de outras nacionalidades)



1. Rui Chamusco, membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último, é cofundador e líder da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015 e com sede em Coimbra.
 
A ASTIL fundou e administra a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá, Manati / Boebau (pré-escolar e 1º ciclo) e tem também em curso um programa de apadrinhamento de crianças em idade escolar. (Havia, então, em Boebau, 150 crianças sem acesso à educação.)

Professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, o Rui tem-se dedicado de alma e coração a estes projetos solidários no longínquo território de Timor-Leste.

Desde a sua primeira viagem a Timor-Leste, no 1º trimestre de 2016, que ele vai escrevendo umas "crónicas" para os membros da ASTIL e demais amigos de Timor Leste. Temos estado a recuperar essas crónicas, agora as da segunda estadia, em 2018 (*).

O Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o seu amigo, luso-timorense, Gaspar Sobral, cofundador também da ASTIL. Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975) (tinha "apenas" 14 anos...).




Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral, casado com a Glória Lourenço, professora do ensino secundário, conterrânea e amiga do Rui. A família Sobral tem um antepassado comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra. A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui.

Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)


1. Esta segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, em missão solidária, culminaria com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, nas montanhas de Liquiçá, evento já aqui relatado.

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vamos conhecendo melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje:

Estas crónicas têm um enorme interesse para se perceber melhor o que é hoje a República Democrática de Timor Leste, país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia.

Enfim, estas crónicas, que o Rui Chamusco partilha connosco, acabam por ser um privilégio, para os nossos leitores, amigos de Timor Leste e/ou promotores da lusofonia.  



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte VI - Uns com tanto, 
e outros com tão pouco



06.04.2018, sexta feira - Investimento ou desperdício


Hoje estive de novo na escola Rui Cinatti, uma escola verdadeiramente portuguesa num contexto timorense. Os créditos que este estabelecimento de ensino foi granjeando ao longo dos anos são sobejamente conhecidos. Frequentar esta escola é motivo de orgulho para qualquer aluno e família. 

Com programas e funcionamento do calendário escolar português, aqui são administrados conhecimentos, saberes e atitudes que muito dignificam mais de mil alunos, respetivos professores e auxiliares de ação educativa (mais ou menos sete dezenas). As condições físicas deste estabelecimento fazem inveja a muitas escolas de Portugal. Tudo é tratado com muito respeito; tudo parece bem. Mas por detrás de todo este cuidado está o zelo, a competência e a dedicação da sua direção, concretizada na pessoa do Dr. Acácio.

Perante os números astronómicos indicados em investimentos à vista, fala-se quase sempre em milhões, quase instintivamente perguntei: “quem paga isto tudo?” A resposta foi pronta e clara: “ O ministério da Educação e a embaixada de Portugal”. Se acrescentarmos a tudo isto os gastos mensais com o pagamento a professores e auxiliares de educação poder-se.á ter uma ideia do bolo mensal que aqui é investido.

Tudo bem. Dão-se os meios e atingem-se os fins. Dito de outra maneira,  “as árvores conhecem-se pelos seus frutos”. Mas sem qualquer preconceito ou  acusação, dou comigo a pensar: “se nós dispuséssemos de uma ínfima parte do que aqui se gasta para apetrechar e fazer funcionar a nossa escola de São Francisco de Assis em Boebau.” 

Os restinhos que aqui sobejam matavam a fome à pobreza e ainda sobrava pão. Uns com tanto e outros com tão pouco, como cachorrinhos que ansiosamente esperam alguma migalha que caia da mesa dos seus senhores.


07.04.2018, sábado - Pedido de ajuda


A Delfina, uma moça de que já falei a propósito de ter acabado o secundário como sendo a segunda melhor aluna da turma, mas que estava em casa por a família de acolhimento não ter hipóteses de economicamente lhe poder garantir a continuidade nos estudos, veio até nós para nos informar dos seus primeiros dias na Universidade da Paz, onde frequenta o curso de Relações Internacionais. 

A rapariga conta, com um ar de felicidade bem visível no seu rosto, episódios relacionados com o estudo das disciplinas (comunicação social, economia, filosofia, português, e outras). Fala-nos dos professores, dos colegas, do seu envolvimento em ações culturais. Até parece que ganhou uma nova vida. 

No seu ar de simplicidade, próprio das terras donde provém, Boebau, promete-nos que se irá esforçar muito para aproveitar ao máximo o apoio que lhe estamos prestando. Com uma prestação de contas ao pormenor, a Delfina explicou-nos como, para poupar algum dinheiro, se desloca para a universidade. Em percurso normal teria de apanhar duas microletes que, a quinze cêntimos cada viagem, daria 60 cêntimos por dia. No fim do mês teria gasto dezoito dólares, o que para ela e muitos timorenses é incomportável. Então resolveu fazer uma parte do trajeto a pé e reduzir assim a despesa a metade.

É difícil hoje em dia encontrar jovens com este querer e esta força de vontade. Claro que se a Delfina fosse filha de gente rica ou gente notável, não haveria qualquer dificuldade em prosseguir os estudos. Mas a Delfina perdeu o pai e a mãe está muito doente. Por isso recorreu a uma família de acolhimento, onde vivem neste momento 14 pessoas. Os seus estudos na Universidade da Paz só são possíveis graças à benevolência do seu reitor, Dr. Lucas, que compreensivelmente atendeu o nosso apelo, libertando-a do pagamento de propinas e graças ao apoio de outros amigos sensíveis a casos como este.

A Delfina pediu-nos timidamente um telemóvel a fim de poder desenvolver com mais competência os seus trabalhos de investigação. Entretanto conta com a ajuda de colegas, com trabalhos de grupo, e claro está com a ajuda dos professores. Talvez apareça algum anjo portador deste meio de comunicação, com acesso à Internet...


09.04.2018, segunda feira - Mundo Mágico


Estamos a falar, claro está, do mundo das crianças, onde a fantasia é rainha e os seus habitantes são príncipes e princesas. “Mundo Mágico” é o nome de uma escola creche e jardim infantil que hoje visitei em Motael / Dili, no intuito de aprender alguma coisa que nos possa servir de exemplo para a nossa escola de Boebau. 

Mais ou menos 40 crianças povoam o espaço agradável que as responsáveis procuram com muito carinho proporcionar aos seus utentes. Em funcionamento há cinco anos, de melhoria em melhoria, um local onde a língua portuguesa é o veículo principal de comunicação. A decoração, os jogos, o ambiente transportam-nos para este mundo de sonho e de fantasia em que o presente e o futuro se constrói com fadas, castelos, músicas e canções infantis que nos empolgam para horizontes ilimitados, para campos cobertos de arco iris sem alcance mas que encantam e fazem sonhar. 

E, ao me lembrar daquela frase perdida “cada criança que nasce é um sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade...”,  fico a pensar e a concluir que, aqui em Timor, Deus está bem presente graças ao número tão elevado de crianças que nascem e crescem nestes mundos mágicos mas reais. Os seus sorrisos contagiantes são a prova provada de que este Deus existe e se manifesta com abundância nestas crianças. Remato com a letra de uma velha canção: “ Se Deus é alegre e jovem / Se é bom e gosta de sorrir / Porquê andar tão triste / Porquê andar sem cantar e sem rir.”


14.04.2018, sábado - Rumo a Boebau


Até que enfim! Depois de tanta espera, lá vamos nós, o Eustáquio e eu, bem assentados no “motor” a caminho de Boebau. Não foi preciso muito tempo para nos aprontarmos. Mochila às costas e uma mala com os materiais da exposição “Lameta”, e toca a andar que se faz tarde. 

Até Liquiçá tudo bem. Depois começa o calvário até Boebau. Quem já fez este caminho de carro ou de motorizada sabe bem do que estou falando. As dificuldades do caminho são tantas que, só por sorte, a gente não tem de parar para se safar dos buracos ou de algum ser vivo (vacas, cabras, porcos, galinhas que instantaneamente se cruzam na estrada). 

Mesmo assim, a vontade de chegar é tão forte que tudo aguenta. À chegada, com o corpo todo partido, as pernas mal se aguentavam em pé, e só depois de alguns momentos de recuperação foi possível dar alguns passos. Refeitos do desgaste, começam as visitas e os contactos. 

Como o dia seguinte era domingo, tivemos algum tempo para falar do porquê desta pequena estadia. E logo à noite em casa do AbôZé travamos algumas conversas importantes que deram o mote para colóquios do dias seguintes. E “vamos para la cama, que hay que descansar. Para que mañana possamos trabajar”.


15.04.2018, domingo  - A contemplar as montanhas


Talvez por ser domingo, passei uns bons momentos a contemplar as montanhas e o mundo que nos rodeia. Aqui a natureza é pródiga na oferta que nos faz. Um sem número de paisagens deslumbrantes, com o sol a fecundar todos os sinais de vida. Coqueiros, mangueiras, madre cacau, bananeiras, e tantas outras árvores de fruta e de flores. Aqui é fácil e agradável contemplar e agradecer ao criador que dá a vida e a sustenta. Cabe-nos a nós cuidar dela.

Neste contexto, deparo com a Escola de São Francisco de Assis, com o padroeiro e amante da natureza que, na sua simplicidade, chama mãe à terra e irmãs a todas as outras criaturas: irmão sol, irmã lua, irmã água, irmão vento, irmão fogo, etc,etc... Sei que a sua proteção nunca nos vai falhar, saibamos nós ser reconhecidos.

À tarde, tive uma das experiências que irá acompanhar-me para sempre: plantação de coqueiros nas traseiras da escola. O Abô Zé surgiu com a ceira (espécie de cesta feita em palapa) cheia de cocos já com rebentos, e foi então que me ofereci para o ajudar na plantação. As dificuldades de equilíbrio eram tantas, que me lembrei da técnica para dançar o tango, a saber: dois passos lentos para a frente e três passos rápidos para trás. Ou seja, demorei um tempo enorme a subir o que já tinha descido. 

Missão cumprida, ficou a satisfação de ter plantado algo que quero ver crescer, à semelhança de outras coisas menos visíveis.


Histórias que são verdade


À noite depois da ceia, começam as conversas de sobremesa. Sentados nas cadeiras de encosto ou em qualquer lado, vão se contando cenas do dia a dia que foram acontecendo. Passo a relatar as duas que mais me impressionaram.

Na semana passada foram encontradas duas raparigas mortas, uma de treze anos e outra de dezoito, trazidas nas enxurradas da ribeira Laoeli. Segundo contam, uma delas já meia comida por alguns cães ou bichos carnívoros que por ali passaram. As vítimas que não são conhecidas,  são provavelmente do concelho de Ermera, do outro lado que divide a ribeira.

Já tinha ouvido dizer as dificuldades e riscos que estes habitantes das montanhas correm quando têm que atravessar, a pé porque não são navegáveis. Alguns contam, já do tempo da guerrilha e da ocupação indonésia, que a melhor maneira de passar de uma margem para a outra é em corda, de mãos dadas, mas que de vez em quando a corrente é tão forte  que algumas pessoas se desprendem e são arrastadas pela força das águas, sem possibilidade se serem apanhadas.

O Abô Zé descreve também com um realismo impressionante, em que os gestos tudo dizem, como durante a guerrilha armavam emboscadas aos soldados indonésios. Faziam grandes buracos nas veredas e caminhos, levavam a terra para longe a fim de que não desconfiassem, lá dentro colocavam canas de bambu bem afiadas, disfarçavam com ervas e mato na esperança de que por ali passassem e fossem desta forma eliminados ou apanhados. 

Imaginem a crueldade e o sofrimento das pobres vítimas. Mas, como diz o ditado “em tempo de guerra não se limpam armas”.

O que mais me impressiona é o realismo que os protogonistas destes relatos revelam ao contar estas histórias.

(Continua)

(Título, seleção de excertos, revisão / fixação de texto, inegritos: LG)

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Nota do editor:

domingo, 7 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25723: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (25): "Será que não aperto bem?"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Será que não aperto bem?

Sentei-me. A meio da refeição, uma senhora idosa, dos seus oitenta anos, que me pareceu muito bonita, entrou na sala e sentou-se na mesa em frente à minha. Tinha um rosto vincado e sofrido, uma daquelas caras que parecem estar sempre prestes a chorar. Os nossos olhares cruzaram-se duas ou três vezes durante a minha permanência na mesa, o suficiente para eu achar, com efeito, que aquela senhora deveria ter sido muito bonita.

Paguei a conta, levantei-me e, quando passava junto à senhora, coloquei-lhe suavemente a mão no ombro e disse:
- A senhora desculpe o meu atrevimento, não leve a mal, mas eu gostava de lhe dizer que a senhora deve ter sido muito bonita.

Ao contrário do que eu esperava, ela não se mostrou surpreendida. Calmamente, poisou o talher, colocou serenamente a sua mão direita sobre a minha, que eu havia apoiado na mesa, e respondeu:
- Pois era. Era, de facto, muito bonita. Meu caro senhor, muito obrigada pelas suas palavras, que me souberam melhor do que a refeição e, já agora, meu caro e desconhecido senhor, deixe-me fitá-lo bem nos olhos porque não quero esquecer a sua cara.

Fiquei meio paralisado. Com o melhor sorriso de que sou capaz e com uma inesperada sensação de estúpido, voltei a pedir desculpa e afastei-me.

Sentei-me no carro, com a porta aberta, e em voz alta atirei para o ar: Porra! Eles têm razão, eu não devo bater muito bem!

Mas no fundo, bem no fundo, senti-me feliz. Que belo momento, pensei! E quase senti uma lagrimeta no canto do olho. Não sei o que ganhei com o meu gesto. Não sei o que perdia se o não tivesse feito. Sei que há momentos tão subtis na vida real como os milhões de subtis mecanismos que geram o nosso mundo interior e dos quais não nos damos conta. Há momentos cuja grandeza vai dos escaninhos da nossa alma à dimensão universal.

Que se apresente aquele que seja capaz de os medir.

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Nota do editor

Último post da série de 30 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25703: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (24): "A tolice por um fio"