Humor de Caserna - Um patrulhamentos no Pilão
por Abílio Magro
Durante os cerca de 30 meses em que permaneci nas fileiras do Exército, em cumprimento do Serviço Militar Obrigatório, muito enriqueci o meu vocabulário à custa da chamada "linguagem de caserna", particularmente na Guiné. E se, em relação aos vocábulos "ordinários", pouco tinha a aprender, confesso, já no que se refere a expressões mais "pacíficas", o ganho foi substancial.
Efetivamente aprendi e usei expressões (e ainda uso algumas) que, embora sendo consideradas calão, não são pejorativas e fazem, também elas, parte integrante da história de uma época e de um contexto onde todos nós, ex-combatentes, vivemos durante algum tempo da nossa juventude. Com o fim da guerra colonial, muitas daquelas expressões caíram em desuso e, para que se preserve este valioso património, tentarei usar e abusar, nesta Tabanca. de expressões usadas entre os militares em serviço na Guiné e que me ficaram na memória.
Dito isto, vamos aos "famosos" patrulhamentos no Pilão.
O Pilão (assim designávamos habitualmente o Cupilom) era o maior bairro negro de Bissau e situava-se perto das instalações militares de Santa Luzia, onde estava instalado o QG/CTIG. Era composto por numerosas tabancas, sem energia eléctrica, sem água canalizada e sem rede de esgotos. Era ali que vivia a maior parte da população pobre de Bissau. Era também ali que havia "manga de fudi-fudi" (1) e onde muitos militares iam "desenferrujar o prego". À noite era perigoso andar por ali sozinho.
Recordo-me de, ainda na Metrópole e terminadas as férias que antecediam o embarque, ter-me deslocado a uma barbearia para um corte de cabelo curto, e o barbeiro que me atendeu ter-me perguntado se ia para a tropa. Tendo-lhe respondido que não, que já lá andava há quase um ano, mas que ia para a Guiné, ele logo me avisou:
− Cuidado com o Pilão, um gajo entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!
Fiquei esclarecido.
Efetivamente, vim a constatar depois que, à noite no Pilão, havia constantes conflitos por variadíssimas razões, entre as quais o "fudi-fudi". Era também habitual o rebentamento de granadas naquela bairro e constava até que por lá havia muita gente simpatizante do PAIGC e que alguns guerrilheiros ali vinham passar os fins de semana, recolhendo informações.
Os patrulhamentos estavam a cargo do pessoal da CCS do QG/CTIG e eram efectuados em três turnos; 20h-24h, 24h-04h, 04h-08h e eram controlados por um Capitão do COMBIS (Comando de Defesa de Bissau).
E é neste contexto que este vosso camarada "operacional do ar condicionado", apenas com alguns dias de Guiné, é chamado a efetuar o seu primeiro patrulhamento nocturno ao Pilão.
"Piriquito"(2) como era, estava decidido a seguir à risca todas as instruções que me fossem transmitidas para o efeito.
Munido de G3, telemóvel matulão (já não sei como se chamava aquilo, talvez "banana") e um croquis mal-ajambrado, com notas escritas à máquina e envolto num plástico transparente, lá vou eu comandar uma patrulha de seis homens, transformados em guardas-nocturnos.
Vamos de Unimog e largam-nos no local indicado no croquis. Este, tinha aspeto de já ter cumprido dezassete comissões e apresentava-se com a farda toda esfarrapada. Isto é: o plástico estava a desfazer-se e o papel mal se conseguia ler. Então de noite, sem luz, era giro!
Mas eu estava determinado a fazer tudo certinho e direitinho (era mesmo muito "pira"!(2)... E esforço-me por estudar o croquis, quando um elemento da patrulha me diz que o télélé tinha lanterna, o que me levou a concluir que, afinal, a tropa portuguesa estava bem equipada.
Às apalpadelas tentei acertar com o botão respetivo, mas acabou por ser o tal elemento da patrulha a dar à luz. Logo pensei:
− Este deve ser engenheiro.
Os caracteres esbatidos daquele croquis já se me apresentavam mais legíveis e tratei de perceber qual o trajecto que teria de seguir para cumprir cabalmente a missão que me havia sido confiada, quando dou com o seguinte fragmento de texto: "(...) junto a um mangueiro com uma faixa branca (...)."
− Porra! Esta merda está toda rota, a luz é fraca comó caraças, um gajo num bê a ponta dum chabelho e, ainda por cima, estes gajos num sabem escreber, ou estom a gozar comigo?!... Como é que bou encontrar uma mangueira com uma risca branca, no meio desta escuridom?! Tá tudo doido!,,,
Em 1973, com 4 ou 5 dias de Guiné, sabia lá eu que existiam mangueiros!
Fartei-me de olhar para o chão à cata da tal mangueira! Resumindo: perdi-me completamente e, a páginas tantas:
−Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto!... Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto.
O télélé tinha acordado: era o Capitão do COMBIS!... Respondo:
− Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto!... Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto!... (Duas vezes, tinham-me dito que era assim).
Do outro lado respondem:
− Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto!... Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto.
E eu novamente:
− Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto! ... Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto!
Aquilo até estava a ser giro, mas o tal engenheiro diz-me:
− Meu Furriel, tem de carregar num botão aí ao lado!...
O tipo sabia mesmo daquilo!.. Carreguei no botão, mas a conversa continuava monótona como tinha começado:
− Kalar, kalar para cá, celta, celta para lá...
E já começava a chatear!... Então o engenheiro diz:
− Meu furriel, tem um botão de cada lado, tem de carregar nos dois ao mesmo tempo!
Aí convenci-me mesmo que o bacano era engenheiro, e dos bons! Talvez electrotécnico.
Bom, lá consegui chegar à fala com o Capitão que me perguntou onde é que eu estava, e eu lá tive de lhe dizer que me tinha enganado no autocarro, que era a primeira vez, etc. e tal... E ele lá me disse que estava junto à igreja, o que me deixou mais sossegado pois, provavelmente, estaria em meditação e dava-me algum tempo para lá chegar. Como não fazia a mínima ideia onde ficava a igreja, perguntei ao pessoal e um dos negros que compunham a patrulha lá nos encaminhou.
Chegados lá, nem Capitão, nem Padre, nem Sacristão, nem o raio que os parta! Recomeça a cantoria:
− Kalar, kalar...
A sério que me apeteceu mesmo mandá-lo calar, mas lá carreguei nos dois botões (a gente está sempre a aprender) e o Capitão pergunta-me:
− Então, onde é que você anda?!
O tom de voz dele já não me estava a agradar. Respondi-lhe com alguma sobranceria:
− Estou junto à igreja!
E ele:
− Junto à igreja estou eu e não vejo aqui ninguém!
Eu, afinal, estava junto a uma mesquita!!!
−- Ai meu Deus que desta é que eu vou parar a São Crincalho!... (Já me estava a imaginar no centro de Madina de Boé a fazer patrulhamentos com uma moca de Rio Maior na mão e uma fisga no bolso!)
Lá me explicou mais ou menos onde ficava a igreja e, como o pessoal mostrou conhecer o caminho, para lá avançamos a todo o vapor! Lá chegados, continuei com as minhas desculpas e não notei nele grande ressentimento. Julgo que era capitão miliciano. Assinei o mapa de controlo e lá me embrenhei novamente na "densa mata", até ser rendido.
Guiné > Bissau > Tabanca do Pilão > s/d (c. 1968/70)
Foto do álbum do ex-1º cabo mec auto, CCAÇ 2381 (1968/70)
Foto (e legenda): © Arménio Estorninho (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Eu era de rendição individual, estava há três ou quatro dias na Guiné e ainda não tinha tido tempo para conhecer todos os "cantos à casa". Vim mais tarde a saber como a "coisa" funcionava e, até ao fim da comissão, agi de acordo com as regras vigentes e..., "tá na mala!"(3)
Então era assim: o Capitão do COMBIS ligava para o Oficial de Prevenção, alferes miliciano, informando-o da hora e local onde seria efectuado o controlo. O Oficial de Prevenção avisava o Sargento de Ronda. Este seguia diretamente com a patrulha para perto do local de controlo e, minutos antes da hora marcada, avançava destemido para o "objetivo". Nunca falhava!
Eu nunca dormia (forte sentido de responsabilidade), mas algum pessoal era "tiro e queda!". Uma das vezes dei comigo a guardar seis bacanos a ressonar!
− Oh c'um carago, mas que é isto?! Tudo a ferrar o galho e eu aqui feito camelo, de sentinela, a velar por eles?!... Toca a acordar, pessoal, vamos dar uma volta que estou a ficar com frio!
Acordaram e lá foram, meio a resmungar.
Em setembro de 1973, vim de férias à Metrópole e, regressado a Bissau, "tugas, bora lá alinhar" numa rondazinha ao Pilão.
Era o turno das 20h às 24h, o pior em termos de conflitos. Eu tinha regressado no dia anterior e estava atarefado a tentar descansar da azáfama das férias. Sossegadinhos no canto de uma tabanca (do lado de fora, claro), fomos sobressaltados com o rebentamento de uma granada. Ouvi, registei e esperei. Logo de seguida, rebenta outra, depois outra...
− Mau, vim ontem de férias e ainda me sinto em convalescença e com pouca vontade de entrar em "festas"!... Continuam a rebentar - tenho de ir, pois vai aparecer o COMBIS de certeza.
Inicio, então, a deslocação das tropas exatamente em sentido contrário ao do som dos rebentamentos (cautelas e caldos de galinha...). O pessoal alerta-me, mas eu não ouço. É para este lado e "mai nada!"
Rebenta mais outra e aqueles "camelos" insistem:
− Meu Furriel é para ali!... (Militares impreparados!).
Lá tive de inverter o sentido da marcha. Aqueles gajos não estavam a facilitar nada.
− Calma, nada de pressas − ordenei eu!
Entretanto rebenta uma granada incendiária que provocou um grande clarão e pude ver que já lá se encontrava alguma tropa e, aí sim, acelerei a marcha. Não façam já juízos precipitados! Acelerei a marcha, não porque me sentisse mais seguro, mas porque estavam lá camaradas meus que podiam necessitar da minha ajuda (a isto chama-se altru~ismo!).
O Capitão da COMBIS manda-me fazer um cordão de segurança ao local (eu mais 6 homens, quando muito uma cordinha!), pois estava uma granada descavilhada junto à porta de entrada da casa de um 1º Sargento e era preciso fazer segurança aos homens que iriam tentar resolver o assunto. Aquela granada podia rebentar por simpatia a qualquer momento. Colocaram sacos de areia junto à entrada da casa.
Pensou-se em dar um tiro de longe à granada, mas não seria fácil acertar-lhe e, além disso, parece que havia uma determinação qualquer que não permitia tiros em Bissau.
Se algum tabanqueiro tiver informações acerca do assunto, seria interessante divulgá-las aqui na Tabanca, pois sempre me pareceu absurda a ideia, tanto mais que era frequente o rebentamento de granadas, mas realmente e apesar da quantidade de armas que por ali circulavam, nunca tive conhecimento de cenas de tiroteio em Bissau. Talvez eu andasse distraído, não sei.
Aquilo demorou uma eternidade. Toda a gente dava palpites e eu, experimentado como era no assunto, também dou o meu.
− E se se abrissem algumas munições e se fizesse no chão um carreiro de pólvora até à granada e se espalhasse em cima desta alguma pólvora ? !... Depois, era só chegar fogo à pólvora no início do carreiro e protegermo-nos.
A sugestão foi bem recebida, mas o pior veio a seguir. Era preciso um voluntário...
− Querem ver que estes gajos estão a pensar na minha pessoa para pôr em prática o meu plano?!...Estão doidos!