Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quarta-feira, 9 de abril de 2025
Guiné 61/74 - P26666: Parabéns a você (2365): Jorge Canhão, ex-Fur Mil Inf da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74) e Coronel PilAv Ref Miguel Pessoa, ex-Cap PilAv da Esquadra 121/GO 1201/BA 12 (Bissau, 1972/74)
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Nota do editor
Último post da série de 6 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26656: Parabéns a você (2364): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492; Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Xitole, Mato Cão e Mansoa, 1971/73)
terça-feira, 8 de abril de 2025
Guiné 61/74 - P26665: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (38): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula
Alcácer do Sal > 29 de janeiro de 2018 > Vista interior da pousada Dom Afonso II
Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Âs vezes este país quase perfeito e sem mácula
por Luís Graça
Às vezes este país quase perfeito e sem mácula. Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios, visto de um determinado ângulo.
Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário. Em 2004, por exemplo, no mês de Abril, em pleno Baixo Alentejo, de preferência ao pôr do sol.
Gostaste de experimentar ver este país, sentado no banco da frente do piso superior do autocarro. Ao sul, a 250 km ao sul de Lisboa, ao fim da tarde, ao pôr do sol.
Tu podias achar este país quase perfeito e sem mácula, numa viagem de regresso a casa, de Beja a Lisboa. Viajando sobre as planícies do Baixo Alentejo, podias observar o breve e oblíquo voo das cegonhas que, afinal, já não traziam os bebés de França.
Num certo troço da estrada número-não-sei-quantos que ia desembocar na A2. A tal, que era mais conhecida como a autoestrada do Sul, a que te levava ao Algarve, quando tu fazias férias de praia no Algarve, que já pertencera outrora ao reino de Portugal e além-mar em África.
Visão panorâmica, a dois metros e meio acima do solo, em voo raso de cegonha. Tomaste nota, no teu canhenho sem argolas, que a hora era importante para veres o teu país quase perfeito e sem mácula. Tal como o sítio e o ângulo de visão, ao fim da tarde, na primavera, no conforto relativo do teu autocarro da Rede Expresso. A televisão desligada, por favor. E o telemóvel. Só o barulho monótono do autocarro a rolar.Regressas vinte anos atrás e tomas a viatura número não-sei-quantos,
Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo, nada como um montado de sobro e um bando de cegonhas em formação de voo, de regresso a casa, também elas. O papo cheio de lagostins das albufeiras.
Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país. De tempos a tempos, tens de te reconciliar com o teu país. O mesmo é dizer, com a vida. Com os outros.
Na Festa de Nossa Senhora das Pazes, entre ficalheiros e azinheiras centenárias, todos os anos no domingo seguinte à Páscoa. Nesse ano de 2004 veio muito menos gente, que a morte batera, com mão pesada, a muitas portas de Vila Verde de Ficalho, terra raiana. Vinte e cinco mortes, disse-te o médico, desde janeiro.
Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa, quer faça chuva, quer faça sol. Chovia pouco por estas bandas. E cada vez menos, já diziam os antigos, de memória curta. E mesmo que os homens não se incorporassem na procissão da Santa que dava três voltas à capelinha, cada um rezava como podia e sabia.
A um tiro de distância da raia espanhola, Nossa Senhora das Pazes, rogai por nós, pecadores, soldados e marinheiros, cavaleiros e peões, nobres e plebeus...Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos que atraíam e repeliam os vizinhos separados pelas extremas de dois países do Al-Andaluz.
Mesmo que houvesse (sempre houve!) quem quisesse desistir da vida, ou dela se despedir com dignidade. ("Que, em passando a festa, doutor, eu dou um rumo à minha vida!"...)
E aí tu percebias a diferença entre ter e não ter um médico de família,
um equipa de saúde, um centro de saúde, ao alcance do tua mão que pede ajuda.
Para trás deixavas o verde das searas de trigo, do Alentejo que ainda dava pão (e que agora só dá vinho e azeitonas e cada vez menos cortiça e giesta), para trás deixavas gente fantástica, no mínimo, gente competente, boa e generosa, que trabalhava nos centros de saúde e suas extensões do Baixo Alentejo.
em Vila Verde de Ficalho.
em Serpa,
na Cuba,
na Vidiguêra,
em Aljustrel,
em Almodôvar e no Alvito,
em Barrancos.
em Beja,
de Castro Verde a Ferreira do Alentejo,
em Mértola e em Moura,
em Odemira ou em Ourique.
Dando consultas em insólitos lugares, como o Sporting Clube de A do Pinto. Ou fazendo SAP (serviço de atendimento permanente) em velhos conventos transformados em hospitais.
Gente remando contra a maré...
do cinismo,
da arrogância,
da gestão mercantilista da saúde,
da descrença,
da desmotivação.
as vítimas da aculturação médica,
os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas
do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais,
da indústria farmacêutica, dos lóbis,
do poder, da política politiqueira...
Gente que que trabalhava sem rede. E que às vezes era até agredida ou maltratada. Mal tratada sobretudo pela tutela. Gente que trabalhava num SNS sem rosto. No Ministério da Indústria da Doença.
Um dia quiseram trabalhar em equipa. Para prestar melhores cuidados de saúde, para trabalhar com outra motivação e satisfação. Um dia pensaram na perigosa utopia igualitária, nos idos anos de setenta.
Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo, que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários numa base cooperativa e tendencialmente igualitária. Fora da tradicional relação hierárquica chefe / subordinado ou especialista / leigo,
e pondo também na equipa o utente (mais o doente, o agudo e o crónico, a criancinha, o pai, a mãe, a avô e o avô, se a vida chegasse a netos e a filhos com barba)...
Subvertendo, enfim, a organização burocrática que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.
Em 2004 a utopia não tinha morrido ainda, mas estava mais velha e cansada. As utopias também envelhecem e morrem. E renascem como a Fénix da mitologia.
Há muito que as equipas nucleares de saúde haviam perdido o seu vigor ou se tinham desfeito. Ninguém as regava como se tem de regar a relva do jardim e os vasos de flores à entrada do centro de saúde. Mas acabaram por contaminar a cultura organizacional da Sub-Região de Saúde de Beja.
O bichinho estava lá e não morreu de todo, diziam-te. As ideias são como os vírus e os ursos, ficam em hibernação uma parte da vida. O problema é que a vida é curta e a arte é longa. Disse o Hipócrates há 25 séculos atrás.
Não acreditavas nos lugares perfeitas. Nem muito menos em santos nem em heróis. Muitos menos e nos heróis e santos de fancaria que te vendiam na infância.
apenas faziam alguma diferença. Tu dirias que era um certo modo de ser e de estar. Algo que não se ensinava ainda em escola nenhuma. Que não se aprendia nos cursos de formação do Fundo Social Europeu nem na Faculdade de Medicina, nem nas Escolas de Enfermagem, nem nas Business Schools das Novas e Velhas Universidades.
Um modo de ser e de estar, afinal, para o qual não havia ainda receitas de cozinha, muito menos algoritmos. Pequenos detalhes que faziam a diferença, a começar pela vontade trabalhar de outra maneira. Por isso, por tudo isso, gostaste de os rever, gostaste de voltar a encontrá-los. Em 2004. No seu Alentejo ainda profundo.
Eles eram portugas que mereciam as tuas palmas. As nossas palmas.
© Luís Graça (2004). Revisto em 11 de abril de 2025.
Último poste da série > 12 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga
Guiné 61/74 - P26664: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (6): Pelotão de Caçadores Nativos 56 - Primeira vez debaixo de fogo e Emboscada virtual

14 - PELOTÃO CAÇADORES NATIVOS 56
Quando chegamos a Nova Sintra não houve sobreposição com a companhia que lá estava, a CART 1743. Nós chegamos e eles partiram. Ficou o Pelotão de Caçadores Nativos n.º 56, constituído por quinze a vinte elementos. Foram eles que nos ensinaram a andar no mato, a conhecer trilhos e picadas e a indicar locais perigosos. Era malta fixe, de etnias diversas, com muitos anos de guerra.
Em reconhecimento da lealdade, o capitão Bernardo um dia chamou-me e lançou o repto de passarmos a dar-lhes alimentação gratuita. Disse-lhe que só fazendo uma experiência durante uma semana. Até essa altura adquiriam os géneros de que precisavam pagando-os.
Feita a experiência e as contas, verificamos que era possível e assim foi feito. A empatia entre nós subiu. O porta-voz deles era o Ansumame que tinha alguma formação escolar, veio ter comigo pedindo que eu fosse o fiel depositário do dinheiro de todos eles. Na secretaria havia um cofre pequeno que não estava a ser utilizado. Com a devida autorização superior passei a usá-lo. Criei envelopes individuais onde colocava o dinheiro e uma folha de conta corrente onde registava as entradas e saídas. Passei a ser banqueiro.
Aproximava-se a data prevista para nos deixarem e ir para outras paragens. Na véspera da partida, à noite, o Ansumame veio convidar-me para ir ao abrigo deles para a despedida. Quando lá cheguei, aqueles que não bebiam álcool, os muçulmanos, estavam sóbrios mas as outros nem por isso. Tive de os acompanhar ao beber um wisky e um copo de Drambuie.
No dia seguinte lá foram eles.
15 - PRIMEIRA VEZ DEBAIXO DE FOGO
O nosso batismo de fogo foi na noite de 22 de Março de 1969. Pela primeira vez ouvimos o matraquear da famosa costureirinha, espingarda automática com carregador redondo, bem como as granadas de morteiro e canhão sem recuo, que assobiavam ao sobrevoar o quartel e a rebentar para os lados da bolanha. Eles deviam estar, talvez a 1,5 klm de distância, mas na nossa ideia estariam a entrar pelo arame farpado. Dentro dos abrigos, através das friestas disparávamos a torto e a direito, o cheiro a pólvora e o fumo eram enormes. Passados alguns minutos começamos a ouvir o nosso capitão, percorrendo os vários abrigos, a berrar ordenando o cessar fogo. Provavelmente nessa noite ninguém dormiu receando nova investida.
Recordo que nesta data, dois conterrâneos faziam anos, a D. Maria Lucas e o Tonecas, tendo horas antes escrito ao amigo desejando um bom aniversário.
Nos vinte meses de permanência em Nova Sintra, fomos flagelados por dezoito vezes.
16 - EMBOSCADA VIRTUAL
No regresso de uma coluna a S. João a dado momento ouviu-se uma rajada. De imediato o pessoal saltou das viaturas e deitados na berma da picada, tomamos posição para ripostar.
Mais um fogachal dos diabos. Eu estava deitado ao lado do Bicho e os invólucros que saíam da sua G3 batiam na minha cara e sentia o quente do metal. Passados poucos minutos o alferes que comandava a coluna, apercebendo-se que o fogo era só nosso, mandou cessar fogo. Afinal o que se tinha passado? Só no quartel viemos a saber. O Xabregas afirmou que a tal rajada partiu da sua arma. Em cima da viatura com a arma destravada e com o dedo no gatilho, levou com um ramo de uma árvore na cara, provocando-lhe desequilibrio e o apertar do gatilho. Felizmente que a rajada foi na direção da mata, se fosse para o interior da viatura poderia ter atingido alguém.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 1 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26636: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (5): Jogos de futebol e voleibol - Natal e Fim de Ano de 1969 e Hotel Miramar e Pensão Xantra
Guiné 61/74 - P26663: (De) caras (230): Dois manos ribatejanos que passaram por Mansabá, o Ernestino e o Nelson Caniço, um alferes e outro furriel, ambos de cavalaria, e hoje médicos
Fotos (e legendas): © Ernestino Caniço (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem do Ernestino Caniço, ex-alf mil cav (*), hoje médico:
Data - quinta, 13/03, 17:31
Assunto - Nelson Caniço
Caros amigos
Votos de ótima saúde.
A propósito de Mansabá, levo ao vosso conhecimento, que também lá esteve um dos meus irmãos (c. nov 1970), já eu tinha saído para Mansoa: Nelson Caniço, ex-fur mil cav, tendo passado por Bula, Bambadinca e Hospital de Bissau.
Perguntais vós, porquê só agora? Porque ele tem mantido algum distanciamento desta temática. Obtida no entanto a sua anuência, cá estou a assinalar o facto.
Hoje médico, aposentado, continua a exercer clínica e vive em Cuba, distrito de Beja.
Anexo fotos de nós dois, no tempo da Guiné (no café Pelicano e no QG).
Um grande abraço,
Ernestino Caniço (**)
2. Comentário do editor LG:
Ernestino, já me tinhas falado do teu mano. Ao telefone. Do teu discretíssimo mano, o dr. Nelson Caniço. Pombas Caniço, devem ser os vossos apelidos, materno e paterno. Ribatejanos de Almeirim. Creio que ele de clínica geral / medicina familiar. Se for de saúde pública, tenho a obrigação de o ter conhecido, dos idos anos de 80...
Tu continuas fiel às tuas raízes ribatejanas. Ele decidiu descer mais para sul, para o Baixo Alentejo. É possível que já nos tenhamos encontrado. Nos anos, 80/90 andei por esses lados a ajudar a reorganizar os centros de saúde, com base nas equipas nucleares de saúde. Não sei se ele é desse tempo. Ao tempo da Região de Saúde de Beja, Administração de Saúde do Alentejo. Bons tempos. Mando-lhe um abraço e abro-lhe as "portas" do nosso blogue e da nossa Tabanca Grande... Aqui não falamos só de guerra.
Ernestino, foi um gesto bonito da tua parte. Há aqui uma terna cumplicidade entre irmãos. Qual dos dois é o mais velho? Imagino que sejas tu.
______________(iii) foi alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208;
(vi) mais tarde irá para Mansoa onde ficou cerca de seis meses com a outra metade do Pelotão, dependente do BCAÇ 2885;
(vii) findo esse período e desativado o Pelotão, foi coloacado na Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica (REp ACAP), em Bissau, até ao seu regresso em dezembro de 1971.(...)
Guiné 61/74 - P26662: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XXIII: Mais fotos de Mansabá, novembro de 1970
Foto nº 10 e 10A > Mansabá > Participação de militares na missa de sufrágio por alma do alf mil art MA, Armando Couto, da CART 2372, vitima de mina IN
Guiné > Zona Oeste > BCAÇ 2885 (Mansoa) > Mansabá >Novembro de 1970> Fotos do álbum do Padre José Torres Neves, capelão
Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Membro da nossa Tabanca Grande, nº 859, desde 2 de março de 2022, é missionário da Consolata, tendo sido um dos 113 padres católicos que prestaram serviço no TO da Guiné como capelães. No seu caso, desde o dia 7 de maio de 1969 a 3 de março de 1971.
Recorde-se que por Mansabá, na região do Oio, passaram diversos camaradas nossos, que fazem parte da Tabanca Grande (citamos de cor, são apenas alguns dos nomes que nos vêm à cabeça)...
- Carlos Vinhal,
- Inácio Silva,
- Francisco Baptista,
- César Dias,
- José Carvalho,
- Vitor Junqueira,
- Francisco Godinho,
- Hilário Peixeiro,
- Ernesto Duarte,
- Ernestino Caniço (e o irmão, Nelson Caniço),
- António Pimentel,
- Raul Albino
- António J. Pereira da Costa,
- Carlos Pinto,
- Jorge Picado,
- Manuel Joaquim,
- José Rodrigues, etc.
Não sabemos exatamente em circunstâncias é que o nosso capelão esteve em Mansabá, e por quantos dias. Ele frequentava todos os aquartelamentos e destacamentos do setor de Mansoa, a cargo do BCAÇ 2885. Terá deixado de ir a Mansabá quando esta passou a ser a sede do COP 6. (Reativado em 11 de novembro de 1970: abrangia os subsetores de Mansabá e Olossato, e a sua missão era assegurar a continuação e o bom andamento da construção da estrada Mansabá-Farim.)
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(*) Último poste da sé: 1 de de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26539: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XXII: Mansabá, novembro de 1970, por ocasião da missa de sufrágio por alma do alf mil art MA, Armando Couto, da CART 2372, vitima de mina IN
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Passando em revista os nomes sonantes do pensamento anticolonial, verifiquei que faltava nesta listagem uma referência a uma figura de primeiro plano, Aimé Césaire, hoje e ainda figura de proa surrealista, dos anos 1950 e 1960, alguém que, no primeiro Congresso dos Escritores Artistas Negros, em 1956, aludiu entusiasticamente às relações entre a situação colonial e a cultura, defendendo a necessidade militante de os intelectuais se comprometerem na luta popular de libertação nacional, a fórmula iria ser tomada à letra por líderes anticoloniais, como Amílcar Cabral, que reclamaram o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história.
Um abraço do
Mário
Libelo acusatório sobre o colonialismo como não se escreveu outro
Mário Beja Santos
A Martinica forneceu ao pensamento anticolonial duas figuras de referência: Aimé Césaire [foto à direita] e Franz Fanon, obviamente com características diferentes.
A obra que sujeitamos a análise, Discurso Sobre o Colonialismo, foi editada em 1955, (por coincidência, o ano da Conferência de Bandung, ponto de viragem para as lutas anticoloniais) o poeta lança-se num requisitório, como escreve Mário de Andrade, jamais um outro escritor negro proferiu, com tamanho talento, ao rosto dos opressores.
Procurou reverter toda aquela argumentação da civilização dita cristã e ocidental. Começa por observar o que não é colonização: nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tirania, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito. Colonizar é assunto de aventureiros e piratas, de comerciantes e de armadores, de pesquisadores de ouro e de mercadores. Tudo isto é uma hipocrisia recente.
O colonialismo não aspira à igualdade, mas sim à dominação. E Césaire lança a questão das raças ditas superiores e das inferiores. Civilizar, para certos apologistas do colonialismo, é não tolerar a “preguiça” dos povos selvagens. E o seu libelo acusatório sobe de tom:
“Onde quero eu chegar? A esta ideia: que ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente; que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização é uma civilização doente e a colonização é testa de ponte numa civilização de barbárie.”
Daí, ele enuncia as expedições coloniais e os seus cadáveres: o coronel de Montagnac, um dos conquistadores da Argélia, o conde d’Hérrisson, que veio com um barril cheio de orelhas, o marechal Bugeaud que dizia que se devia fazer uma grande invasão em África que se assemelhasse ao que faziam os Francos, ao que faziam os Godos.
Importa não esquecer os massacres e as execuções, as conquistas coloniais fundadas sobre o desprezo pelo homem indígena, e assevera:
“Bem vejo as civilizações em que a colonização introduziu um princípio de ruína: Oceânia, Nigéria, Niassalândia. Vejo menos bem o que ela lhes trouxe. Segurança? Cultura? Juridismo? Entretanto, olho e vejo por toda a parte por onde existem, frente a frente, colonizadores e colonizados, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque, e, parodiando a formação cultura, a fabricação apressada nuns tantos milhares de funcionários subalternos, ‘boys’, artesãos, empregados de comércio e intérpretes necessários à boa marcha dos negócios.”
Dirige-se em réplica de contraponto:
“Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de caminhos de ferro. Mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano. Falo dos que, no momento em que escrevo, cavam à mão o porto de Abidjan. Falo de milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem colocaram sabiamente medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo.”
Dentro do seu libelo acusatório, vai desmascarando posições racistas, posturas de superioridade cultural e questiona os tais intelectuais burgueses franceses:
Césaire também vai zurzir em missionários, etnólogos, amadores do exotismo, sociólogos agrários, a todos aqueles que, diz ele, desempenham o seu papel na sórdida divisão do trabalho, escarnece dos estudos sobre o primitivismo, os romancistas da civilização que negam os méritos às raças não-brancas, sempre para chegar à conclusão que todos os progressos da Humanidade acabaram por ser desencadeados pela raça branca, dirige-se mesmo a uma figura de proa do tempo, Roger Caillois:
“A inaudita traição da etnografia ocidental que, há algum tempo, com uma deterioração deplorável do sentido das suas responsabilidades, se engenha a pôr em dúvida a superioridade omnilateral da civilização ocidental sobre as civilizações exóticas”.
Acusa-o por favor parte do lote dos intelectuais europeus que se encarniçam a renegar os diversos ideais da sua cultura, isto quando no fundo, todos pensam pela mesma cartilha: o Ocidente inventou a ciência, só o Ocidente sabe pensar, no entanto, esses mesmos ocidentais esquecem certas verdades: a invenção da aritmética e da geometria pelos egípcios; a descoberta da astronomia pelos assírios; o nascimento da química pelos árabes; o aparecimento do racionalismo no Islão numa época que o pensamento ocidental tinha uma feição pré-lógica.
E despede-se na sua catilinária prevendo o que na prática veio a acontecer:
“Se a Europa Ocidental não toma de modo próprio em África, na Oceânia, em Madagáscar, isto é, às portas de África do Sul, nas Antilhas, isto é, às portas da América, a iniciativa de uma política das nacionalidades, a iniciativa de uma política nova fundada no respeito dos povos e das culturas, se a Europa não galvaniza as culturas moribundas ou não suscita as culturas novas, se não se torna despertadora de pátrias e civilizações, a Europa terá perdido a sua derradeira oportunidade.”
Eis, em síntese, um dos documentos de referência que levou ao conclave da liberdade dos povos colonizados, um conteúdo que chamou à atenção de futuros líderes anticoloniais, Amílcar Cabral seguramente que tomou em conta o princípio que Césaire enuncia, o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história, como Cabral escreveu:
“(…) a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica desse povo, é o seu regresso à História, pela destruição do domínio imperialista a que esteve sujeito.”
Césaire foi um notável poeta que nos deixou um poderoso lirismo de combate, como se exemplifica: “Vejo a África múltipla e una/vertical na sua tumultuosa peripécia/com os seus refegos, os seus nódulos/um pouco à parte, mas ao alcance/do século, como um coração de reserva.”
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Nota do editor
Último post da série de 4 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26651: Notas de leitura (1786): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2 (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P26660: Tabanca Grande (571): Armando Oliveira, ex-1º cabo, 3ª C/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 901
Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fotos do álbum do Armandfo Oliveira, ex-1º cabo. natural do Marco de Canaveses, vive no Porto.
1. Na passada sexta, dia 4, tive o prazer de atender uma chamada do Armando Oliveira, que pertenceu à 3ª C/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74), tendo integrado o 3º Pelotão, comandado pelo nosso amigo e camaradada Jorge Pinto.
Faz hoje 51 anos que na Secretaria da unidade do Regimento de Infantaria 15 em Tomar, e sem a menor cerimónia, foi me dito: "você está mobilizado"...
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Nota do editor LG:
(*) Último poste da série > 2 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26544: Tabanca Grande (569): Vilma Crisóstomo, esposa do nosso camarada João Crisóstomo, que se senta no lugar n.º 900 sob o nosso "poilão sagrado"