segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1410: Antologia (57): O Natal de 1973 em Copá, de Benigno Fernando

Excertos de Benigno Rodrigo, O Princípio do Fim. Porto: Campo das Letras. 2001. (Campo da Memória, 6). pp. 29-30 (1):

Estavam próximo do Natal de 1973. Num desses dias o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde atacou a povoação de Amedalaí, que ficava a 5 km de Bajocunda e a 17 km de Copá. A povoação era formada por população civil e pela milícia armada e o ataque aconteceu ao fim da tarde.

De Copá viam-se o fumo e as labaredas da tabanca que ardia, provocados pelos disparos, que duraram várias horas. De Bajocunda foram em socorro da povoação três pelotões que provocaram algumas baixas ao PAIGC, sendo forçado a retirar. No dia seguinte, ao fazerem o reconhecimento, verificaram que, no local do ataque, havia ligaduras ensanguentadas dos feridos do inimigo. Próximo do local, encontraram um macaco morto e confirmaram que por ali existiam minas, já que o macaco morrera por ter despoletado uma delas. O comandante da companhia tomou providências para desminar o caminho.

25 de Dezembro, dia de Natal de 1973. Eram 11 horas em Copá, o alferes Brás foi ter com o Rodrigues e disse-lhe:
- Recebi uma mensagem via rádio dizendo que o capitão Cruz ficou bastante ferido. Por isso, vais ter que me levar a Bajocunda.

Tentou recusar-se, porque pressentia que as coisas naquela zona não estavam nada boas, mas lá teve que dar início a mais uma das suas arriscadas viagens, acompanhado do alferes e de mais de meia dúzia de camaradas. Quando lá chegaram, o ambiente era desolador. Os camaradas foram ao seu encontro e com as lágrimas nos olhos disseram-lhe:
- Rodrigues, tu és maluco, não sabes o perigo em que te andas a meter ao fazeres viagens desta maneira; parece que não sabes o que aconteceu ao nosso capitão.

De facto, ainda não sabia o que na realidade tinha acontecido, embora soubesse que o capitão estava ferido; veio da boca dos camaradas a história do que aconteceu: nesse dia 25 de Dezembro, o capitão Cruz saiu de Bajocunda de manhã, com os homens necessários para desminar Amedalai. Chegados ao local, levantaram as minas sem problemas e quando se preparavam para vir embora, um dos soldados disse:
- Meu capitão, tenho a impressão de que ao pé do senhor está mais uma mina.

De facto era verdade, o capitão virou o pé ao lado e sem saber accionou a mina que lhe amputou uma das pernas. Terminava nesse momento a sua comissão, que durou apenas três meses na Guiné-Bissau. Regressaram a Copá, o Rodrigues jurou ao alferes que não voltaria a sair naquelas condições e ele respondeu-lhe:
- Deixa lá, se não quiseres ir, ensinas-me a conduzir e vou no teu lugar.

Os últimos dias de 1973 e os três primeiros de 1974 passaram-se relativamente calmos, embora o alferes Brás lhes tenha pregado um susto. Num desses dias, às 21 horas, fez um disparo de bazuca que os fez saltar fora da cama, apavorados. Na passagem de ano, fizeram uma festa, cantaram as janeiras acompanhados por batimentos em ferros.

A população também comemorou à moda islâmica, juntando grupos de pessoas vindas de fora, que cantaram em coro toda a noite. O alferes Fragata ficou a comandar a companhia como substituto interino do capitão Cruz.(...)
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1409: Bibliografia de uma guerra (16): Pirada, Bajocunda, Canquelifá, Copá: o princípio do fim (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1409: Bibliografia de uma guerra (16): Pirada, Bajocunda, Canquelifá, Copá: o princípio do fim (Beja Santos)

Capa do livro de Benigno Rodrigo, O Princípoio do Fim. Porto: Campo das Letras. 2001. 78 pp (Campo da Memória, 6). Preço: c. 15 €

Foto: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Texto, de recensão bibliográfica (1), enviado em 20 de Novembro de 2006 pelo Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), e actualmente assessor principal do Instituto do Consumidor.

Olá Luís, ando a rejuvenescer com a nossa escrita comum. Uma vezes a memória incendeia-se com imagens que estavam completamente diluídas ou hibernantes; recordo vultos, gente que se aproxima e parece que me quer ajudar naquelas vivências que aqui procuro registar. Ando pela Feira da Ladra e aos poucos compro, a pataco, livros que me marcaram na guerra. Por exemplo, Praias da Barbária, por Norman Mailer. Vou lendo e relendo, sôfrego e às vezes a sentir-me com 25 anos. As grandes dores vão começar esta semana com o Presépio de Chicri (2). Vê se marcas o nosso almoço no princípio de Dezembro, quando ainda estivermos com os olhos puros sem a poluição do comércio de Natal.

E correspondendo ao aviso do A. Marques Lopes, li O Princípio do Fim. Para quem amanhã quiser fazer a história da Guiné e conhecer o desmoronamento do Leste [da Guiné], de 1973 para 1974, é leitura obrigatória. Vou mandar-te hoje o livro para o nosso património. Recebe toda a estima do Mário.


Guiné, o desabar das ilusões da vitória militar
por Beja Santos


Não sei se existiu o soldado António Rodrigues que vivia em Gondizalves, a três quilómetros de Braga e que foi mobilizado em 1973 para a Guiné. O relato que nos dá Benigno Fernando (O Princípio do Fim, Porto, Campo das Letras, 2001) (3) goza de um aspecto singular, já que gere a ilusão de um depósito de informações que são transmitidos ao autor num tom coloquial, em que a memória rodopia de acordo com as necessidades da pertinência do testemunho. Os mancebos vão às sortes e no caso do Rodrigues foi apurado para soldado condutor.

Foi praxado, emocionou-se na carreira de tiro, jurou bandeira, foi escalado para fazer piquetes, correu meio país até formar batalhão em Estremoz e daí seguiu para a Guiné, em Setembro de 1973. Foi a Gondizalves despedir-se do pai e da mãe e dos amigos que o acompanharam à estação de Braga. A viagem no Niassa foi horrível, num porão sem higiene nenhuma. Os soldados procuravam referências por região e local.

Em Bissau fez um estágio sobre Berliett, mais propriamente no Cumeré. Segue-se uma viagem até Bolama, onde se simulou uma atmosfera de guerra (ali ouviam-se os canhões a funcionar sobretudo em Tite e S. João). Em Outubro seguiram para o Leste da Guiné, o batalhão ficou em Pirada, a companhia do Rodrigues em Bajocunda. Achou a viagem aborrecida até ao Xime, e daqui seguiram para Bambadinca e depois Bajocunda.

"Era uma povoação apenas com um troço de picada, ladeada por algumas tabancas e cercada de arame farpado". Começa a ouvir tiroteio todos os dias, entra na rotina das colunas militares, e vai para Copá.

Porventura, Benigno Fernando dá-nos aqui o melhor do relato com os ataques de fim de ano e os primeiros meses de cerco implacável do PAIGC. Copá é sistematicamente flagelada até soldados enlouquecerem e fugirem para Pirada e Canquelifá. Em Março um avião português é abatido, as estradas minadas, as pontes destruídas. Está organizado o inferno, a retirada é decidida por Bissau.

Quem amanhã fizer a história detalhada do desmoronamento do Leste precisará deste relato de Benigno Fernando: é uma água forte de violência , de delírio e de combate sem sentido. O relato culmina com o 25 de Abril, a abertura de negociações com o PAIGC, depois Bissau e depois Lisboa e Braga.

É um relato que não ilude a ternura e não guarda rancores. Para o António Rodrigues há saudades e também a tristeza dos seus mortos e feridos. Lembra-se da Guiné e "Só espera que aquele povo consiga encontrar a prosperidade que merece".

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Notas de L.G.:

(1) Vd. último post desta série: 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)

(2) Vd. post de18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1376: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (25): O presépio de Chicri

(3) Nota sobre o autor, de acordo com o que o vem na contracapa do livro:

Benigno Femando nasceu em Massarelos, Porto, em 1960. Começou a trabalhar aos dez anos de idade. Em 1975, iniciou a prática de futebol no Sport Comércio e Salgueiros, prolongando esta actividade durante treze anos em diversos clubes amadores.

Durante a década de 90, colaborou na secção desportiva dos jornais O Primeiro de Janeiro e O Portuense. Trabalha nos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento do Porto desde 1979. Reiniciou os estudos no final dos anos 80 e ewm 2001 estudava na Escola Secundária Alexandre Herculano.

O Princípio do Fim é o testemunho de um militar (o soldado condutor auto Rodrigues, da 1ª Companhia do Batalhão nº 8323) que esteve na zona leste da Guiné durante a Guerra Colonial:

"(...) Às 18 horas e 10 minutos, o barco dava o sinal de partida, ouviam-se os últimos gritos da multidão, a um canto encontrava-se o Banharia a chorar pela mãe, e fazia-o de tal maneira que parecia que o barco iria pelo ar. Passado pouco temnpo, já dançava e cantava; tinha uma pancada mas era castiço.

"Chegava a noite; os que tinham começado a enjoar deitaram-se cedo, a maioria só foi para as camaratas perto da meia-noite e a essa hora ainda se conseguia ver luzes na costa portuguesa. Essa vista começava a provocar-lhes uma nostalgia, e foi nesse momento que o Rodrigues começou a pensar: - É o princípio do fim. " (...) (p. 14).

domingo, 7 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1408: Vamos salvaguardar a(s) nossa(s) memória(s), apoiando a Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar (Luís Graça / Nuno Rubim)


Documento pessoal do ex-furriel miliiano de operações especiais, José Casimiro Carvalho (Guiné, CCav 8350, 1972/74). Abertura ao seu álbum de fotografias.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

1. Em-mail do Nuno Rubim, com data de 16 de Dezembro de 2006, e que só agora publico no blogue, devido aos atrasos provocados pelas miniférias da quadra natalícia. Ao Nuno, que muito estimo, as minhas sinceras desculpas:

Luís:

Faço agora parte dos corpos gerentes da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar (embora como membro suplente).

Entre os vários projectos que nos propomos, um refere-se à recolha, entre outros, de espólios documentais particulares com interesse para a nossa história militar.
Se assim o entenderes podes consultar:

http://www.anossahistoria.org/recolha.htm

Se porventura julgares oportuno poderias divulgar este projecto no teu blogue.

Um abraço
Nuno Rubim


2. Aqui fica o apelo da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar (LAAHM), criada em 2005 e ainda em fase de organização.

Este projecto deve merecer por parte de todos nós o maior interesse, atenção e apoio. Em próxima reunião da nossa tertúlia, teremos de decidir o que fazer com os materiais que são confiados ao editor do blogue. De um modo geral, a documentação que nos chega vem já em suporte digital (imagem, texto...). Mas vários camaradas têm-me feito feito chegar os seus originais (aereogramas, fotos, livros, relatórios...) para posterior digitalização. Tenciono mais tarde devolvê-los ou enviá-los para o Arquivo Histórico Militar, se for essa a intenção expressa dos seus proprietários. Enfim, este é um assunto que teremos de discutir com tempo e vagar.

Alguns tertulianos já me fizeram inclusive o seu 'testamento', como é o caso do Beja Santos que me tem confiado parte do seu arquivo pessoal relacionado com a sua comissão militar na Guiné. Em 18 de Agosto de 2006, escrevia ele: "Tu ficarás como fiel depositário de todo o material original que está a aparecer. Quando eu morrer, entregas tudo no Arquivo Histórico Militar"...

Quero apenas lembrar que este blogue, o nosso blogue, "tem como missão ajudar os ex-combatentes, de um lado e de outro, a reconstituir o puzzle da memória da guerra colonial, na Guiné". Nessa medida estamos solidários com a Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar e vamos, desde já, sinalizar o seu sítio nas nossas páginas. (L.G.)

Projecto Recolha

O Arquivo Histórico Militar tem em execução, desde há alguns anos, um Projecto Recolha visando localizar, recolher e guardar espólios documentais particulares com interesse para a história do Exército.

Agora, um grupo de cidadãos integrando a Liga dos Amigos do AHM (em organização) propôs ao Arquivo lançar uma campanha a nível nacional, de forma a recuperar essa documentação dispersa e muitas vezes em risco de perder-se. O AHM aceitou e apoia com muito entusiasmo o projecto e congratula-se por esta iniciativa de grande valor cultural.

De uma forma geral, a documentação que o AHM possui é documentação oficial, produzida e recebida pelas unidades do Exército. Tem também algumas dezenas de espólios pessoais, entregues por militares dos quadros permanentes. Infelizmente, o Arquivo não possui documentação de oficiais e sargentos milicianos ou soldados, a não ser raros documentos produzidos durante os períodos de campanhas militares – as Invasões Francesas, a I Guerra Mundial e a Guerra Colonial.

Todos sabemos que um grande número de homens (pode dizer-se uma geração inteira) esteve na Guerra Colonial, nos anos sessenta e setenta do século XX. Calcula-se que tivessem estado nos teatros de operações cerca de 800.000 homens. Muitos destes homens escreveram cartas às suas famílias e receberam as respectivas respostas (normalmente em aerogramas). Também fizeram muitas fotografias, slides e mesmo alguns filmes, com os meios que havia na época. Outros escreveram diários, memórias ou simples apontamentos. Podem ter na sua posse também outros documentos, como cartazes, postais, autocolantes, desenhos, documentos oficiais, etc. Podem ainda ter guardado jornais e revistas da época. Toda esta documentação interessa salvaguardar. Estes espólios, assim como outros semelhantes de outras épocas, constituem o objecto do Projecto Recolha.

Durante a I Guerra Mundial foram escritas, aproximadamente, trinta e dois milhões de cartas, das quais restam agora cerca de meia centena à guarda do Arquivo Histórico Militar. Perdeu-se irremediavelmente um canal privilegiado de observação da história dessa época: o contar dos acontecimentos na primeira pessoa.

Muitos destes despojos perdem-se nas casas sem espaço e com eles a memória de cada tempo. Pela consciência que temos desse destino e porque faz falta reflectir sobre a nossa identidade, não queremos deixar de estar disponíveis, como nos pertence.

Por isso aqui repetimos a mensagem da nossa campanha: “Para que nenhum detalhe importante fique a faltar à nossa História, o Arquivo Histórico Militar precisa da sua ajuda. Faça-nos a doação ou deixe-nos guardar as suas cartas, diários, fotos e filmes sobre Portugal no Século XX. Desde a Monarquia à nossa entrada na CEE, sobre questões militares ou não, preservar o máximo é o grande objectivo. Contrapartidas para si? A certeza de que as suas recordações ficam bem entregues e o orgulho de contribuir para que nada se perca. Contacte-nos pela linha verde 800205938 ou em www.anossahistoria.org

LAAHM

Comentários/sugestões: ajbranco@anossahistoria.org

3. Contactos disponíveis:

Arquivo Histórico Militar
Largo dos Caminhos de Ferro, 2
1100-105 Lisboa.

LAAHM
Estrada de Chelas,
Antigo Convento (Anexo) 1949-010 Lisboa

Remessa Livre (grátis)

Remessa livre 8802 EC Cabo Ruivo
1806-960 Lisboa

Linha Verde (grátis): 800 205 938
Fax:218842514
Telefone: 21 884 24 92
Endereços Electrónicos:
projectorecolha@hotmail.com
recolha@anossahistoria.org


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Consuktar também o sítio do



(1) Vd. post de 19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1294: Objectos de sutura da nossa memória ou... tudo é património neste blogue (Beja Santos)

sábado, 6 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1407: Tabanca Grande: Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola


Guiné > Bedanda > CCAÇ 6 > 1970 > Resposta do Obus 14 a ataque de foguetes Katiusha, de 122 mm. Foto gentilmente cedida pelo Cor Cav na reforma Ayalla Botto ao nosso camarada Hugo Moura Ferreira. O seu a seu dono...

Foto: © Carlos Ayala Botto, (2006). Direitos reservados.



1. E-mail do Coronel na Reforma Carlos Ayala Botto, enviado a 24 de Dezembro de 2006:

Soube do seu blogue e aqui estou a apresentar-me: Carlos Ayala Botto, estive na Guiné entre 1970 e 1973 e actualmente sou Coronel na Reforma. Na altura era capitão de Cavalaria mas mesmo assim fui nomeado Cmdt da CCAÇ 6 em Bedanda onde estive cerca de 20 meses.

Depois fui convidado pelo NOSSO GENERAL SPÍNOLA (a letra grande é de propósito, pois ele era um CHEFE MILITAR como não conheci outro) para seu Ajudante de Campo, e por isso fiquei lá mais um ano.

Há pouco tempo o Moura Ferreira – que não conheço pessoalmente – telefonou-me e eu enviei-lhe 2 fotos de Bedanda: uma com uma vista aérea e outra com um obus de 14 a disparar. Não sei o que é que ele fez delas.

Queria entrar no seu blogue, mas como oficial de Cavalaria básico que sou, não percebo nada disto e fico a aguardar indicações suas.

Até lá, um abraço e os votos de um Bom Natal.

Carlos Ayala Botto

2. Comentário do editor do blogue:

Meu caro coronel: Julgo que o Moura Ferreira já me tinha falado em si. E outros tertulianos conhecem-no, como é o caso do Paulo Santiago.

Todos os ex-combatentes da Guiné, independentemente do posto que ocupavam, e da opinião (político-ideológica) que tinham sobre a guerra, serão bem-vindos a esta caserna virtual que representa, ao fim e ao cabo, o nosso blogue. Pede-se-lhes apenas que aceitem e cumpram as regras que estão estipuladas para se ser membro desta tertúlia.

Como já deve ter lido, queremos apenas contar as nossas estórias, não queremos fazer História. Essa está feita, ou melhor, serão os historiadores a escrevê-la. Mas não queremos que a nossa valorosa geração desapareça sem deixar o seu testemunho aos vindouros.

Como camaradas que somos, tratamo-nos por tu. Julgo que se sentirá bem na nossa companhia... Também gostaria de ver aqui o meu ex-capitão (que comandou a CCAÇ 2590/CCAÇ 12). Chama-se Carlos Brito, e é hoje coronel de infantaria na reforma.

Boa saúde e longa vida. Luís Graça.

PS - As suas duas fotos relativas a Bendanda e à CCAÇ 6, e que são espectaculares, já foram reproduzidas no nosso blogue (1). O meu especial obrigado pela sua gentileza. Faço aqui hoje uma rectificação quanto ao seu autor. Por lapso, foram atribuídas ao Hugo Moutra Ferreira.

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de:

6 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1155: Álbum fotográfico (Hugo Moura Ferreira) (1): Bedanda, CCAÇ 6, 1970: O Obus 14 contra o foguete Katiusha

8 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1159: Álbum fotográfico (Hugo Moura Ferreira) (2): Bedanda, ontem (CCAÇ 6, 1970) e hoje

Guiné 63/74 - P1406: Blogoterapia (12): Morteiradas e... penachadas (Vitor Junqueira)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCav 8350 > 1973 > Os homens e as suas máquinas de guerra... falocráticas. O Carvalho (ex-fur mil, op especiais), o nosso herói de Gadamael, posando para a fotografia sob o Obus 11.4.


Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Mensagem do Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, que já assumiu publicamente que passou na Guiné dois dos melhores anos da sua vida...

Caro Luís,

Pelo tom ... as férias fizeram-te muito bem! Oxalá ( ou Inchalah, como queiras).

Quanto ao resto, não há pressa e o povo é sereno, como certamente ainda te lembras.

Continuo a achar que uma boa parte da nossa malta postante ainda está muito cacimbada.
É só mortos e feridos, angústia e tristezas. Então e as coisas boas, esqueceram tudo?

Pois eu, não! E a propósito disso mesmo, vou mandar-te dentro de dias uma croniqueta
acerca da minha puta. Na Guiné quase todos tivemos a nossa. Só que a minha era a
profissional mais famosa da margem direita do Cacheu até à fronteira do Senegal,

Vou falar-te dela.
Um abraço do

V. Junqueira

Comentário do L.G.: Na nossa caserna não há tabus. Aceito, com naturalidade e até com entusiasmo, a tua saudável provocação... Já tinha feito, há tempos, o desafio à rapaziada da nossa caserna, mas com fracos resultados...

Guiné 63/74 - P1405: Antologia (56): Marcelino da Mata, "o último guerreiro do Império" (João Parreira)

Lisboa > Belém> 10 de Junho de 2003 > Marcelino da Mata, tenente-coronel graduado na reforma.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.




Marcelino da Mata, ao lado de Almeida Bruno, Hélio Felgas, Rebordão de Brito, etc., depondo no livro Os Últimos Guerreiros do Império (ed. lit. Rui Rodrigues). Amadora: Editora Erasmos. 1995. (Colecção Memória do Tempo). 290 páginas.



1. Mensagem, com data de 26 de Dezembro de 2006, enviada por João S. Parreira, ex-furriel miliciano comando (Brá, 1964/65):


Caro Luís,

Depois de enviar recentemente alguns dados sobre o Marcelino, decidi pôr mãos à obra e começar a copiar algumas passagens da vida dele (e todos nós sabemos aquilo por que passámos, pois há sofrimento e sofrimento).

No caso dele, além da guerra e das condecorações, teve a paga final traduzida em injustiça e sofrimento, e que julgo que nenhum de nós poderá ficar insensível, independentemente do que pensa sobre a guerra do Ultramar.

A mim, pelo que lhe fizeram no nosso país, deixa-me ficar sempre com lágrimas nos olhos.

Um abraço
João


Caro Luís,

Com o intuito de dar a conhecer à Irene Rodrigues Marcelino (1), e não só, através do nosso blogue, mais pormenores de parte da vida de seu pai, transcrevo alguns extractos da vida militar do Tenente-Coronel Graduado Comando Marcelino da Mata (na reforma) que, de entre outros condecorados, foi publicado num livro intitulado Os Últimos Guerreiros do Império [Amadora: Erasmo, 1995].


2. Marcelino da Mata, o último guerreiro do império

[Texto seleccionado por João S. Parreira; subtítulos da responsabilidade do edior do blogue]


O Marcelino, da etnia papel, nasceu na vila de Ponte Nova, no distrito de Tite, em 7 de Maio de 1940 e tirou apenas o Ciclo Preparatório porque naquela altura, na Guiné, um preto não podia estudar no liceu.

O seu pai Martinho da Mata, e a sua mãe Marcelina Vaz tinham uma quinta e uma loja que vendia de tudo. Em Ponte Nova não havia brancos e só havia um cabo-verdeano que também tinha uma loja.


Fez a tropa, em 1960, em vez do irmão

Quando foi para Bissau matriculou-se numa escola particular onde tirou o 7º ano liceal. Na escola em Bissau andavam todos juntos, brancos e pretos e não havia discriminação – nunca a houve na Guiné, nem da parte dos brancos nem dos pretos.

De regresso a casa o irmão mais velho tinha um postal para ir para a tropa e mandou-o ir a Bolama ver o que se passava. O Marcelino lá foi com o postal e como resultado ficou incorporado pensando que estavam a incorporar o irmão – ficou assim com o nome do irmão.

Na altura não havia médico e quem fazia a inspecção era um sargento enfermeiro. 'A inspecção foi assim: ele deu-me um murro no estômago, eu encolhi-me e ele disse: é bom'... e como tal foi incorporado em 3 de Janeiro de 1960.

Quando acabaram os dois anos de serviço militar do irmão, feito por ele, foi à sua terra buscar uma certidão de nascimento e apresentou-a no Quartel e o Capitão de Artilharia que lá estava disse que ele tinha cumprido os dois anos do irmão e agora ia cumprir os dele.

Quando acabaram mais este 2 anos, estava-se no ano de 1964 altura que já havia guerra pelo que foi para a escola de Cabos.

Era condutor, mas como falava muitos dialectos, qualquer tropa branca que ia para o mato em operações levava-o como intérprete. Fala balanta, mandinga, fula, mandeco, mancai, um pouco de nalu e de diefaga, porque na vila onde nasceu havia gente de todas as etnias e ele tinha-as aprendido a brincar com os miúdos, cujos pais trabalhavam na quinta do pai dele.

Quando se apanhava alguém no mato, ele ou ela dizia logo que não falava português e então ele perguntava de que etnia era, e interpretava para o oficial comandante.



Voluntário para os comandos

Foi nessas operações em que servia de intérprete que se habituou a estar debaixo de fogo, e que começou a ganhar prática.

Nesse ano de 1964 apareceu um Tenente chamado Maurício Saraiva a pedir voluntários para formar um grupo de comandos e ele ofereceu-se.

Uma vez alistado voluntariamente no Exército Português,  foi de imediato tirar o curso de Comandos, em Angola - onde a preparação foi muito dura – e ingressou nos comandos.

O regresso determinou o início da sua marcante carreira militar, tendo embarcado para a ilha do Como, onde durante 75 dias esteve adstrito ao Batalhão de Cavalaria 490 (2).


A batalha da Ilha do Como


A ilha, diz ele, tinha árvores muito cerradas, com mais de 100 metros de altura (isso causava problemas com os bombardeiros, porque as bombas rebentavam nas copas). De dia, a um metro, não se via ninguém. Só davam conta do inimigo quando ele abria fogo. A ilha estava toda cheia de pântanos, de lodo até aos joelhos e de água até à cintura.

Conseguiram várias vitórias, numa delas ficaram junto a uma povoação, o IN atacou outra unidade à qual causou mortos e quando voltou à povoação estava lá a nossa emboscada – deixaram alguns mortos. Na noite seguinte voltaram lá, eles passaram, começaram a apanhar com o nosso fogo e começaram a retirar. 'Mas conseguimos limpar a Ilha. Nós sofremos bastantes mortos, mas eles sofreram três ou quatro vezes mais.

Foi durante esta operação que fizemos a preparação do IAO, que era à bruta, com tiroteio que até fazia suar'.



Herói do 10 de Junho

Foi condecorado pelo Brigadeiro Sá Carneiro com duas Cruzes de Guerra, uma de 1ª Classe e outra de 2ª. Foi recebê-las ao Terreiro de Paço, em Lisboa, em 1967. Quem o condecorou foi 'Salazar que lhe disse que era um herói nacional, e que por aquilo que tinha lido de mim, merecia as medalhas que tinha ao peito'.

Foi a primeira vez que foi ao Continente e não chegou a ver Lisboa (foi desembarcar no aeroporto, dormir, ir à parada e voltar a apanhar o avião)e isto porque estava em preparação uma operação de grande envergadura na Cumbamori, no Norte, com 3 companhias e o seu Grupo.


No Senegal, resgatando uma companhia inteira aprisionada pelo PAIGC

Quando chegou ao aeroporto de Bissau estavam á espera dele, pelo que vestiu o camuflado, meteu-se numa avioneta directamente para Farim, e como já estavam a arrancar para o mato foi com eles. Esta operação foi efectuada a 40 kms. dentro do Senegal, e o seu grupo sofreu 4 mortos, 2 pretos e 2 brancos.

Regressaram a pé para a Guiné tendo os 21 inimigos capturados carregado o material apanhado. Voltou ainda mais 2 vezes ao mesmo local.

A última foi em 1967 quando o Comandante o chamou e lhe disse que a Companhia do Capitão Caraça que estava a fazer operações de patrulhamento na zona da fronteira com o Senegal fora toda apanhada à mão pelo PAIGC na véspera – 150 homens apanhados à mão! – e que ele tinha que lá ir buscá-los.

Na vila para onde os levaram, além do PAIGC havia um batalhão de pára-quedistas senegaleses. Foram 19 homens, todos muito bem armados, menos ele que ia vestido
com uma tanga igual às que os senegaleses usam naquela zona.

Conseguiu resgatar a nossa tropa, que se encontrava apenas de cuecas, nem as meias lhes tinham deixado, pelo que foi difícil chegar à fronteira porque os brancos não estavam habituados a andar descalços.

A tropa senegalesa fugiu rapidamente mas o PAIGC vinha em perseguição. Iam nove do seu Grupo à frente a escoltar os nossos e dez atrás a aguentar o tiro do inimigo – foi assim até à fronteira e ainda eram mais de 40 quilómetros. Puseram os nossos na fronteira e ainda voltou com o Grupo para trás para repelir o PAIGC.



Torre e Espada e outras condecorações


Nesta operação ganhou a Torre e Espada.

Condecorações: 'Ganhei duas cruzes de guerra na ilha do Como, duas em Farim, uma em Quencum e uma em Conacri (foi o Spínola que ma deu) e outra na operação de Cumbamori'.

Mais tarde comandou um grupo de brancos e era a pessoa de quem os soldados mais gostavam. Se o Comandante lhe ia pedir para arranjar voluntários, ele ia à caserna
e toda a companhia se oferecia.

Quando construiu a sua casa foram quatro soldados brancos que foram fazer os trabalhos e no fim fizeram uma grande farra.

'Havia alguns brancos que não ligavam muito aos pretos; com os outros dávamo-nos muito bem; às vezes sabiamos que iam para operações em zonas arriscadas, iamos
com eles voluntariamente, faziamos as partes mais dificeis da operação, atacávamos o inimigo, apanhávamos armamento e entregávamos a essas unidades que depois faziam os relatórios a dizer que tinham sido eles – faziamos isto por camaradagem, para evitar que eles morressem. Quando as familias deles mandavam presuntos, chouriços, laranjas, fazíamos grandes farras, pretos e brancos'.

Na Guiné havia muita confiança entre pretos e brancos, até nos negócios. Se um branco tinha um estabelecimento e um empregado preto, era o preto que fazia as contas, fazia as compras, administrava e no fim do mês não faltava um tostão.



Grupos especiais: os Roncos e os Vingadores


Na Guiné, os Grupos que teve foram os Roncos, que eram 15 pretos e 15 brancos e davam-se todos como irmãos ('comigo tinha que ser assim' e os Vingadores, que eram só pretos. E depois foram sempre grupos de brancos integrados em companhias.

No dia 25 de Abril de 1974 estava na base do PAIGC em Kandiafara, que se situava em território da Guiné-Conacri, armado em enfermeiro para obter informações. Pensou atacar Kandiafara no dia seguinte, porque tinha desaparecido da base e eles iam começar a desconfiar rapidamente. E atacou.



Em Portugal, no Regimento de Comandos


Depois esteve no Palácio de Belém, como Adjunto do Chefe da Casa Militar do Presidente da República (foi o Almeida Bruno que o levou para lá) e em fins de 1974 foi para o Regimento de Comandos.

O Jaime Neves pô-lo a dar instrução, mas dois meses depois alguns tipos foram queixar-se que ele puxava muito por eles e assim deixou de dar instrução – passou a não fazer nada.

A instrução que pretendia dar, e que não existia, era de guerrilha urbana e guerra convencional de cidades.

Depois, passava os dias a jogar às cartas.



1975: Do RALIS a Caxias


Foi preso em Maio de 1975. Foram à sua casa enquanto andava a passear com a filha mais nova.

Num café ouviu dizer na rádio que estava preso o alferes Marcelino da Mata por estar ligado a um grupo fascista chamado ELP. Foi ao regimento e o Ribeiro da Fonseca ('que foi um bom combatente') que lhe disse que tinham recebido uma mensagem para o prenderem e para o levarem para o RALIS.

Disse-lhes que isso não se fazia assim, que devia ser preso e ouvido na sua unidade. O Ribeiro da Fonseca ligou ao Jaime Neves e na presença dele disse para o levarem para o RALIS para ser ouvido e trazerem-no de volta.

Quem o levou foi um Sargento (devia ter sido um tenente ou um alferes mais antigo) que tinha ordens do Ribeiro da Fonseca para assistir ao interrogatório e levá-lo de volta, mas que quando o entregou foi se embora.

Apareceu um aspirante e dois sargentos que perguntaram que ligação tinha com o ELP, e disse-lhes que tinha sido a primeira vez que ouvira falar nisso e que não sabia o que era e eles explicaram-lhe.

Depois, apareceram mais dois, e um deles, que tinha uma barba postiça, identificou-se como sendo o segundo-comandante do ELP. Mandaram-no despir a camisa e encostar à parede. Um deu-lhe uma bofetada, ele deu-lhe um murro e o tipo caiu.

Entraram soldados, agarraram-no, puseram-lhe três algemas nos braços e nos pulsos, encostaram-no à parede e começaram a bater-lhe com cadeiras de ferro. Partiram 13 e partiram-lhe a bacia e quatro costelas e aleijaram-no seriamente na coluna – 'às vezes não posso respirar nem urinar'.

A seguir mandaram-no para Caxias onde esteve sete meses. Primeiro, durante três meses, incomunicável. Uma vez, já estava com os outros presos fez qualquer coisa que eles não queriam e puseram-no num buraco muito pequeno e sem luz durante dois dias.

Quando o libertaram de Caxias, na mesma noite foram a casa dele – veio a saber depois que era para o raptarem e mandarem para a Guiné – mas quando eles perguntavam por ele desceu por uma corda do segundo andar até ao chão.

Em Portugal em 1980 fizeram-no assinar um documento a dizer que queria sair da tropa, houve algumas dificuldades com a percentagem de incapacidade que lhe queriam dar ('eu sou alferes graduado em capitão e nessa altura era preciso ter 60 por cento de incapacidade para se manter o posto de reforma), mas deram-lhe 64 por cento e veio-se embora da tropa'. A diferença de salários é muito importante quando se tem 14 filhos.



Instrutor militar ao serviço do MPLA em 1993


Em 1993 foi para Angola dar instrução à tropa do MPLA, e estava lá há seis meses quando o Expresso publicou uma notícia a dizer que o Marcelino da Mata que estava a dar instrução em Angola era o que tinha combatido contra o PAIGC.

O chefe dos serviços secretos militares foi falar com ele e disse-lhe que todos gostavam muito do seu trabalho, mas que não podiam continuar a tê-lo lá. 'O Expresso deu-me cabo da vida'.

Durante os seis meses formou duas companhias, uma em cada três meses. O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola foi lá visitá-lo três vezes e o Chefe do Estado-Maior do Exército, duas.

'As minhas companhias, como eles viram que eram boas, puseram-nas na guarda presidencial. No fim, quando me mandaram embora – pagaram-me tudo – levaram-me de carro ao aeroporto (se calhar também para terem a certeza que eu embarcava).

'Nessas idas a África, já voltei à Guiné duas vezes clandestinamente. Os ferimentos das torturas do Ralis doem-me menos em África'.



Abraço e até breve.
João Parreira

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1389: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (5): Comandos A. Mendes & João S. Parreira

20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)

(2) Vd. post de 20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1404: Um pequena estória dos Magriços de Guileje (CCAÇ 2617) (Tino Neves)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1970 > CCAÇ 2617 > O emblema dos valorosos Magriços de Guileje, "que pertenciam ao meu Batalhão" (1) (Tino Neves)


Foto: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.

Uma pequena estória dos Magriços de Guileje
por Tino Neves.

Estavam instalados em Pirada [, zona leste, junto à fronteira com o Senegal], mas em Março de 1970 (apenas 4 meses depois do início da comissão), foram substituídos pela CCAÇ 2571, e destacados para o Guilejee, por castigo. Na altura, Guileje era flagelada quase todos os dias.

Os Magriços ficaram famosos pelo facto de, enquanto estiveram no Guileje (10 meses e 18 dias, conforme, vi num gráfico) (1), limparam a zona, por 10 km ao redor do aquartelamento, e por esse facto, o restante tempo de comissão foi passado em Bissau, como prémio desse feito.

Tiveram um único morto e não foi em combate, foi electrocutado, agarrado à lâmpada da caserna, após ter tomado banho.

Vivam os Magriços !

Um abraço
Tino Neves
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1146: Constantino Neves, ex-1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Lamego, 1969/71).

(2) A CCAÇ 2617 esteve em Guileje desde 20 de Março de 1970 a 7 de Fevereiro de 1971). Vd. post de 11 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P864: Unidades aquarteladas em Guileje até 1973 (Carlos Schwarz / Nuno Rubim)

Unidades aquarteladas em Guileje (1964/73). Gráfico elaborado por Nuno Rubim.

Fonte: © Nuno Rubim (2006). Direitos reservados.

Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). É médico e vive em Pombal.

Texto enviado pelo Vitor Junqueira, em 15 de Novembro de 2006.

Luís,
A continuação de um excelente trabalho nesta tarde chuvosa e triste, são os meus votos.

Tenho reparado que a nossa tertúlia foi até agora capaz de elaborar excelentes textos sobre a participação das respectivas unidades nas campanhas do Ultramar. Mas de uma maneira geral, pouco ou nada se tem dito sobre os antecedentes pré-mobilização dessas unidades, cuja existência começou muito antes da chegada ao teatro de operações. Parece-me importante que se fale dessas origens e dos laços que a elas nos ligam, assim como do papel que desempenhamos na sua formação.

De facto, e exceptuando os casos de rendição individual, à data de embarque a nossa Companhia já era para muitos de nós uma espécie de segunda família. Tínhamo-nos conhecido meses antes e o treino daqueles rapazes fora responsabilidade nossa. Então, haverá certamente muita história para contar, montes de peripécias ...

Neste sentido, mando-te um texto que poderás editar e publicar no Blogue se achares que tem qualidade para tal.

Um abraço

PS - Eu não esqueci a receita do cabrito-pé -di-rocha (1). Mas antes, ainda quero falar-te do leitão de S. Tomé e do rato que andava à boleia!


A Tropa e o Direito de Opção

A História da formação da Companhia a que tive a honra e imenso orgulho de pertencer, merece ser contada. Até onde o meu conhecimento pode chegar, tratou-se de caso único no longo rol de treze anos de mobilizações com o envolvimento de perto de um milhão de homens.

Esta unidade, como centenas (ou milhares?) de suas irmãs, terá sido concebida num Estado Maior qualquer lá para os lados de Lisboa. Mas foi numa bela ilha açoreana (2) que viu a luz do dia, mais concretamente no Batalhão Independente de Infantaria nº 17, sediado em Angra do Heroísmo, ilha Terceira.

Consta do seu BI que foi oficialmente registada a 9 de Maio de 1970, no Anexo VI à Ordem de Serviço Nº 110 daquela unidade, tendo-lhe sido atribuído o nome de Companhia de Caçadores nº 2753 e o apelido OS BARÕES (3). No crachá, viria a ostentar a legenda NOBLESSE OBLIGE.

Da sua meninice, pouco há a dizer. A não ser que foi educada com mais duas irmãs gémeas, por uns estarolas a quem as famílias açoreanas entregaram os filhos na incorporação de Janeiro de 1970. Para o efeito, aspirantes e cabos milicianos, foram os senhores de serviço. Era pessoal que se dava bem, e de uma maneira geral já se conheciam do COM e CSM [ Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos]. Haviam chegado uns dias antes e foi a eles que muitos pais pediram que tomassem bem conta daquelas prendinhas. Os capitães, todos de aviário, estavam ainda em Mafra a frequentar o CPC [ Curso de Preparação de Capitães] e só se juntariam a nós praticamente no momento do embarque. Por isso, os chavalitos recém-alistados ficaram entregues aos bichos.

A instrução decorreu em ambiente real , muito bélico! Pautou-se por uma regra bastante incomum nas nossas FA, ... a ausência de regras! Ou quase. Não quero dizer que a tropa se encontrava em autogestão. Ainda não, naquela altura. Aquilo que porventura terá feito a diferença relativamente a outras escolas de recrutas daquela época, foi a enorme liberdade de acção que nos foi concedida em matéria de instrução. O limite estava apenas na capacidade e imaginação de cada um. Era a fórmula percursora do dois em um, trabalho sério e muito divertimento em simultâneo.

Eu próprio caçava gaivotas em voo a tiro de Mauser. Ou lagartixas, nas encostas do Monte Brasil com uma Manelicher .22, montado numa vaca tourina, propriedade do departamento de pecuária do quartel. Os graduados espicaçavam-se mutuamente na mira de que os respectivos pelotões fossem reconhecidos como os melhores. Muita adrenalina e uns cagagésimos de testosterona a bater forte na mioleira e eis que do olímpico lema Mais rápido, mais longe, mais forte, se resvalou bem cedo para o alentejaníssimo Olha sem mãos, olha sem pés, olha sem olhos, olha sem dentes ...!

Não se fique no entanto com a ideia de que era a desbunda completa. Muito pelo contrário, havia a consciência nítida de que todos acabaríamos por ter de participar na guerra a sério. Daí a crença de que através de uma instrução dura e realista (?) se poderiam superar futuras dificuldades do combate.

Por falar em crença, eu acredito que se Nosso Senhor não gostasse de malucos não tinha feito tantos. Neste caso porém, Deus deve ter-se descuidado, porque além de fazê-los, juntou-os. Claro está que nos dias de hoje, com tanto realismo, teria ido tudo parar à pildra! E porque é que não foi? Não sei explicar, mas suspeito que os maiores gostavam do que viam.

Imagine-se que até fomos parabenizados por termos conseguido resolver um problema complicado que o tenente lateiro (sem ofensa!) responsável pela metralha, tinha entre mãos: Uma sobredotação de milhares de munições para todo o tipo de armas em uso no EP que haviam sido abatidas ao stock, no papel, mas continuavam amontoadas nos paióis. Um perigo! Rebentamos com o que era para rebentar e queimamos o que era para arder, limpámos a despensa. E mais que houvesse!

De nada valeram as muitas queixas que as forças vivas da terra dirigiram ao Cmte. Ele eram os rebentamentos da instrução nocturna que não deixavam dormir ninguém, ou os vidros das janelas que tremiam tanto que alguns até caíam, ou os projecteis que se despenhavam sobre os telhados. Ou ainda os familiares dos rapazinhos que achavam que estes estavam a ser puxados em demasia, e disso davam conta ao comando. O capitão director de instrução avisava a maltosa para ter cuidado mas, ... nada a fazer. Era daquilo que o nosso povo gostava! Certo é que, sem grandes incidentes embora com alguns infelizes acidentes, recruta e especialidade chegaram ao seu termo.

Não me recordo qual o número exacto de jovens incorporados. Mas sei que eram em número suficiente para constituírem três companhias de instrução que foram dadas como prontas em finais de Abril ou princípio de Maio de 1970. A partir dessa altura, entrou-se em regime de serviços mínimos enquanto se aguardava a ordem de mobilização. Nesta fase, já o Alf Junqueira, a minha modesta pessoa, sabia que o seu destino era a Guiné, pois tinha-me voluntarizado ainda em Mafra. Para os outros, e como se pode calcular, o suspense era enorme. Finalmente, a 9 de Maio de 1970 é afixada no placard a tão ansiosamente esperada OS nº 110 que no seu Anexo VI decreta que as Companhias 2753 e 2754 seguem para a Guiné enquanto a 2755 vai até Moçambique.

Tínhamos então uma pool de prontos que, tendo terminado a instrução, iriam integrar as Companhias mobilizadas. E então? Qual o critério a seguir na distribuição daquelas centenas de homens por cada uma das companhias? Desconheço o modus operandi em uso nas outras unidades mobilizadoras. Posso contudo presumir que, a superior inteligência de algum burocrata elaboraria listagens apropriadas com base em classificações disto ou daquilo. Não foi o caso. A questão resolveu-se de uma forma muito mais simples, directa e sobretudo democrática! Note-se que o 25 de Abril de 1974 só chegaria uns anos mais tarde! E foi assim: Numa data que não posso precisar, mas que situo na segunda semana de Maio de 1970, reuniu-se todo o pessoal na parada e perguntou-se à cambada:
- Quem quer ir com os alferes tal e tal, para a Guiné? Tá a formar.
- E quem quer pertencer à Companhia dos alferes fulano, sicrano e... , que também vai para a Guiné? Tá a formar daquele lado.

E a mesma treta para os desgraçadinhos que iam para Moçambique, que por exclusão de partes foram os que não couberam na 2753 e 2754.

Lindo trabalho! Durante uma semana, houve quem estivesse oficiosamente mobilizado ora numa ora noutra das companhias que iam para a Guiné, acabando por decidir viajar até Moçambique, e vice versa! Devo acrescentar, embora me custe porque volto a dizê-lo, sou uma pessoa modesta (!), a 2753 foi obrigada a rejeitar alguns candidatos ou teria de embarcar com um efectivo muito superior ao que determinavam as NEP.

Aproveitando a liberdade de escolha que lhes era oferecida, os rapazes organizavam-se em grupos com afinidades tão diversas como a amizade, a conterraneidade, o parentesco ou a existência de algum conhecido já a prestar serviço em algum daqueles Territórios. E como grupo, optaram. Até à estabilização final, estes grupos fizeram-se e desfizeram-se ao sabor da intuição, do impulso momentâneo ou até do convite do camarada da companhia do lado.

Olhando para todo o processo com o distanciamento de mais de trinta anos, acho que o modelo funcionou muito bem, a todos os níveis. O resultado foi a meu ver excelente, já que conferiu a estas unidades uma coesão e espírito de corpo que seriam muito mais difíceis de alcançar através da mobilização formal e burocrática.

Do ponto de vista operacional, as coisas não poderiam ter corrido melhor. No plano pessoal e humano, basta dizer que embora nos encontremos espalhados pelos quatro cantos do mundo, e lembremo-nos que os açoreanos são emigrantes congénitos, continuamos tão unidos quanto uma família. Cada um de nós sabe e interessa-se pelo destino dos outros. De dois em dois anos, encontramo-nos numa das ilhas dos Açores para compartilhar pedaços das nossas vidas.
Acho que foi bonito. E valeu a pena, sem dúvida!

Vitor Junqueira (3)
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Notas do V.J. :

1 - Este texto foi elaborado com base em dados retirados do volume História da Unidade.

2 – A CCAÇ 2753, embarcou para a Guiné a 8 de Agosto de 1970 onde desembarcou a 17, ficando provisoriamente nas instalações do Batalhão de Serviço de Material.

3 - A Companhia 2754, sua gémea, assentou arraiais em Bula, tendo sido posteriormente destacada para o Sector Leste (Piche ou Pirada ?).

4- O B.I.I. 17 já não existe. Deu lugar a uma Unidade chamada R.I.A. (Regimento de Infantaria dos Açores?). Julgo ter ouvido dizer que é uma das Unidades que vai ser desactivada.

5 - Nesta Unidade existe um memorial dedicado à CCAÇ 2753.

6 - A maioria dos elementos que constituíram esta Companhia era de origem açoreana, estando representadas todas as ilhas. Os restantes eram de origem continental, só não havendo nenhum ribatejano. Existia um elemento guinéu.

7 - No I.A.O. que decorreu na região de Caneças e Serra da Carregueira, um GC da Companhia “obteve folgadamente o 1º lugar no campeonato de Tiro de Combate da Região Militar de Lisboa”.

8 - A Companhia 2753 representou o Exército no desfile militar das comemorações do 10 de Junho de 1970, no Terreiro do Paço.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

(2) Grafia de açoriano: a forma correcta é esta, embora também exista a variante ortográfica açoreano, usada aqui neste e noutros posts. Vd. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

(3) Vd. posts de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim2

7 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

Guiné 63/74 - P1402: Um bom ano de 2007 a partir de Mejo, Guileje (Patrício Ribeiro)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Mejo > "Frutos do sul", é a legenda do fotógrafo...

Foto: © Patrício Ribeiro:o (2007) . Direitos reservados


Mensagem do nosso amigo e visitante Patrício Ribeiro:

Sempre que posso, passo por aqui para ler os vossos comentários e ver as fotos de lugares onde andaram noutros tempos. A maioria destes, tenho-os também percorrido com paz e em trabalho nos últimos 20 anos.

Por este motivo envio a foto em anexo tirada em Julho 2006, uma das muitas do sul da Guiné em viagem a Guiledje, Jemberém, Cabedú, Cacine, Gadamel Porto etc.

Cumprimentos

Patrício Ribeiro

Comentário de L.G.:

Caro Patrício: Obrigado por este gesto de simpatia e de apreço por nós, amigos e camaradas da Guiné. Vinte anos de Guiné-Bissau é muito. É quase uma vida. Faço votos, em meu nome e da nossa tertúlia, para que o ano de 2007 seja bom em todos os planos, a começar pela saúde e pelo trabalho. Para si, para os seus, para o nosso querido povo da Guiné. Vou convidá-lo a fazer parte da nossa tertúlia. Gostaria que aceitasse.

Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > Hotel Turismo


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > 1972 > Pessoal da CART posando juntamente com um grupo de bajudas e crianças. Da direita para a esquerda, entre as "beldades locais": Alf Gonçalves Dias, (4º Pelotão), Furriel Duarte (4º Pelotão), Alf Mexia Alves (1º Pelotão), Alf Barroso (3º Pelotão), Furriel Pires (1º Pelotão), "homem da minha confiança" (JMA)

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves junto à porta do Hotel Turismo.

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados
Continuação da publicação das memórias do Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 passou por três unidades no TO da Guiné: pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ). A CART 3492 pertencia ao BART 3873 (1).

Mensagem de 15 de Novembro de 2006:

Caro Luís:

Envio mais um escrito e respectivas fotografias, que poderão seguir em mensagens diversas.


A estadia na Ilha de Bolama, ou no Reino dos Bijagós

E assim foi (como relatava na última história sobre o Cruzeiro no Niassa) (1): desembarcámos para uma LDG e fomos transportados ao cais de Bolama, onde fomos recebidos por uma multidão de militares, que alegremente cantavam o Periquito vai no mato, para além de outros mimos de fino recorte linguístico, que aqui me escuso de colocar, mas sei que a vossa imaginação preenche sem dificuldades.

Ao que me lembro, (ai esta minha memória), subimos uma avenida no seguimento do cais e fomos instalar-nos no Hotel Turismo de Bolama, o que, se pelo nome poderia parecer que estávamos de férias, era totalmente desmentido pelas instalações, que pareciam estar ao abandono há já largo tempo.

De qualquer modo, como a estadia era paga pelo Estado, não convinha muito reclamar!!! Que saudades haveria de ter dessas luxuosas instalações.

A vida corria pacata e tirando uns ruídos ao longe, que os residentes identificavam como embrulhanços (palavra que passaria a fazer parte do nosso léxico), a locais de nomes estranhos para nós como Tite e outros quejandos, e que vinham acompanhados de histórias para meter medo, de bombas a cair, balas tracejantes, etc, e que logicamente, eu, (santa ingenuidade), pelo menos não acreditava, (porque raio haveria de existir alguém com interesse em dar cabo da minha vidinha), parecia-nos ou parecia-me que a coisa se faria sem grandes dificuldades.

Alegremente, ingenuamente, depois dos variadíssimos exercícios militares para nos prepararem para o enquadramento no teatro de guerra (sempre detestei esta expressão), passeávamos pela localidade, apreciando as belezas naturais, quer as da natureza propriamente dita, quer as com duas pernas, novidade total para quase todos nós.

Num desses passeios descobrimos uma árvore muito curiosa! Era uma árvore grande, alta e muito larga e dos seus ramos, lá no alto, quase sem folhas, pendiam umas centenas ou talvez mais, de frutos estranhos com muito mau aspecto.

Trocámos diversas opiniões sobre o assunto e, não chegando a nenhuma conclusão, perguntámos ao pessoal antigo, com certeza já conhecedores da flora local, qual era o nome da referida árvore e seus frutos.

A gargalhada foi geral, pois a árvore era um Embondeiro e os seus frutos eram...morcegos!!!

Visitámos praias e outras belezas da Ilha de Bolama que, a meu ver, poderia ser um óptimo destino turístico.

Numa das tabancas onde estivémos, quando passámos uns 5 dias acampados, seria Calege ou em Punjunguto, reparamos que os Bijagós estavam a fazer uma espécie de bebida, que viemos a saber era vinho de cajú.

Na Ilha havia muitas matas de cajú, outra revelação, pelo menos para mim, pois não fazia a mais pequena idéia que aquilo que eu comia na Metrópole, beberricando os meus uísques, era afinal a parte de baixo de uma espécie de maçã, que tinha um sumo adstringente, que retirava a sede durante horas, e que muito haveria de servir mais tarde.

Com o meu hábito de tudo experimentar, pedi para beber um pouco daquele líquido de muito mau aspecto e que se revelou intragável, tendo-me para além do mais, provocado uma valente diarreia!!!

Fizemos ainda uma excursão nocturna, alguns de nós, para ouvir umas tais cobras, (surucucus?), que nos diziam, assobiavam, cantavam, na areia das praias, nas noites de luar. Não ouvi nada e apesar de me terem jurado a pés juntos que era verdade, ainda hoje tenho a sensação de ter sido gozado!!!

Fomos estreitando relações entre nós, encontrando métodos de trabalho, adaptando-nos uns aos outros e ao clima e preparando-nos para assumirmos aquilo para que tínhamos sido mandados para a Guiné: substituir a companhia que estava no Xitole (2) e que tem neste blogue alguns muito dignos e valentes representantes, que ainda não me agradeceram o facto de os ter mandado para casa!!!

Esta última parte é brincadeira, obviamente!!!

Seguir-se-á quando houver tempo e disposição, a estadia no Xitole, na Ponte dos Fulas, no Rio Udunduma, em Mato de Cão, Bissau (5 dias) e finalmente Mansoa.

Abraço forte, que estou quase a entrar na guerra!!!


Abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

(...) "O calor, quando entrámos no Golfo da Guiné, era insuportável, e somado ao barulho constante das máquinas do navio e ao cheiro a vomitado que tomava conta dos corredores, tornou o Natal a bordo algo de inesquecível, dando razão àqueles que, preocupados com o nosso bem estar, nos fizeram embarcar naquela data para a Guiné.

"Chegados ao largo de Bissau, descemos directamente para as LDG, que nos transportaram para a ilha de Bolama, (pelo menos o meu Batalhão), onde fomos recebidos com cânticos do folclore autóctone, nomeadamente, a por demais conhecida canção Periquito vai no Mato. Ficámos em Bolama cerca de um mês, mas isso é estória para depois.(...) ".

(2) CART 2716 (Xitole, 1970/72) a que pertenceu, por exemplo, o ex-furriel miliciano David Guimarães, um dos nossos mais antigos tertulianos.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Guimarães e a Helena. O Xitole era, tal como Bambadinca, sede de concelho ou circunscrição administrativa. A povoação que lá vivia era, no entanto, menos numerosa do que a de Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72). No início de 1972, chegou a CART 3492, a que pertencia o Joquim Mexia Alves.
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1400: Questões politicamente (in)correctas (14): Os Zés da Desordem deste País (Albano Costa / Torcato Mendonça)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Guidaje > Novembro de 2000 > O regresso (do Albano Costa) e a descoberta (pelo Hugo Costa, seu filho). O Albano foi 1º cabo da CCAÇ 4150 (1973/74).

Foto: © Albano Costa (2005). Direitos reservados.



1. Mensagem do Albano Costa:

Caro Jorge Cabral:

Obrigado, por teres trazido esta notícia para o nosso blogue, e ao Luís por a ter inserido (1). É bom que se chame atenção dessa guerra que, depois do 25 de Abril e ainda hoje passados 32 anos, a querem apagar da mente dos mais jovens, esquecendo-se que é preciso olhar para muitos Zés da desordem, os quais realmente é preciso morrerem para que a sua guerra acabe.

Esta tua chamada de atenção fez-me lembrar o que se passou em Guidage, em Maio de 73: quantos colegas ainda hoje têm dificuldade em esquecer o que se passou naquela altura!... Aiinda há bem pouco tempo estive a falar com um ex-combatente que esteve naquela guerra, e ainda hoje tem muita dificuldade em falar, só a muito custo foi contando alguma coisa do que lá se passou...

Obrigado mais uma vez, Jorge.

Um abraço Albano Costa

2. Mensagem do Torcato Mendonça:



Fundão: Torcato Mendonça (ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Fto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

Caro Luís: Depois das ditas Festas, voltas a aparecer. Bom Ano de 2007.

Senti a tua falta, do blogue, da leitura…mantive o hábito da abertura… da busca…finalmente aparece um post, dois, enfim o regresso.

Mas hoje, meu caro Luís, neste fim de tarde com o Sol já por detrás dos montes escondido, a geada a descer para os vales, o frio lentamente chega pé ante pé. É cedo ainda mas regresso a casa. Venho procurar um assunto na Net. Abro o Blogue, leio o escrito e poema do Jorge Cabral. Paro.

Os escritos dele são diferentes, direi desconcertantes. Releio devagar, a emoção ainda presente, o pensamento a ir-se, o Desassossego (não do Pessoa, o meu) a instalar-se, lentamente, tristemente a entender o Zé da Desordem… Tantos Zés que se afastam desta merda de ordem imposta... Porque regressaram, não regressando. Vivem na diferença e na indiferença que lhes foi é imposta, até um dia, meu caro Luís, até um fim adiado, igual ao do Zé ou mesmo em casa ou hotel de cinco estrelas, que interessa.

O Zé, os tantos Zés, terminam sós… Talvez se sintam noutro lugar, ou sintam o desejo ou o medo do regresso, não tendo nunca de lá partido totalmente…

Os Américas fazem a (s) bandeiras do nossos País. A nossa bandeira tem que ser diferente, urgente, tem que ser a bandeira para o(s) Zé (s) que ainda tantos existem, em desordem, em desassossego, nesta incompreensão de ordem que não é a deles (2)…

Nota: não tenho escrito. O tempo não é propício. Penso. Tomo alguma nota, em apontamento e guardo em reserva nas meninges. Mesmo para escrever isto, parei e não vou ler… Tenho cá um CD de fotos (50/60), não totalmente acabado, para enviar. Depois irá outro de outros tantos slides.


Um abraço,
Torcato Mendonça
Apartado 43
6230-909 Fundão

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1398: Poema de Natal: Só agora, camarada, te mataram (Jorge Cabral)

(2) Vd. último post desta série Questões politicamente (in)correctas:

12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1399: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (27): Sinopse: os meus primeiros 150 dias

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "A minha cubata a partir da cantina (fotografia de Luis Casanova)... O Luis Casanova gostava de instantâneos, disparos ao sabor do quotidiano. Ele registou a minha cubata a partir de um local que era o fórum dos dias quentes, a cantina. A minha cubata fora o refúgio do Prof. Armando Cortesão, um dos mais eminentes cartógrafos mundiais. O cientista viveu alguns meses em Missirá, acompanhando na região do rio Gambiel uma plantação extensa de palmeiras de Samatra. Fui várias vezes a Gambiel, e lá terá lugar, na primeira semana de Janeiro de 69, um rencontro com uma força do PAIGC. Dormi até Março na cama do cientista, com um colchão de folhelho".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "Paulo Ribeiro Semedo a hastear a bandeira. Ao fundo, conserta-se arame farpado (fotografia de Luis Casanova. O Paulo Ribeiro Semedo, em pose orgulhosa, hasteando a bandeira. Deu-nos a todos uma grande lição de protocolo, exigindo luvas brancas. A fotografia terá sido tirada às escondidas, tal a naturalidade. A bandeira era hasteada pelas 7h da manhã, no início do turno de trabalho (quem ficava em Missirá e não ia a Mato de Cão, alinhava em todas as tarefas, fosse quem fosse)".



Texto e fotos: © Beja Santos (2006). (Com a devida vénia ao ex-furriel miliciano Luís Casanova). Direitos reservados.

Texto enviado pelo Mário Beja Santos em 19 de Dezembro de 2006:


Caro Luís, por pura coincidência, e de acordo com as minhas contas, este texto que agora envio corresponde ao final do ano de 1968/2006. Comunico-te que tomei algumas decisões para o espólio do blogue: toda a correspondência que tenho da Cristina para mim ficará ao teu cuidado, poderá dar-se o caso de um dia longínquo alguém queira estudar as relações de um casal que se corresponderam cerca de 26 meses; como te disse, escrevi um folhetim no Jornal de Notícias (SPM 3778) em 1984 que ficará também ao teu cuidado.

Para ilustração deste texto, cheio de rememorações, a Bissau da época ou a Bambadinca do tempo ou posterior parece-me acertada. Envio-te igualmente pelo correio o livro A Estufa de Luis Cajão, referido nas minhas leituras. Impressionou-me o cais de Bambadinca, que recentemente reproduziste, em todo o seu abandono no fim dos anos 90. Apeteceu-me desfiar muitas recordações mas temo ser prolixo. Fica para outra oportunidade. Recebe um grande abraço do Mário.


Estes primeiros 150 dias
por Beja Santos


Toda esta movimentação em torno do Natal foi muito gratificante. Tratou-se do segundo Natal vivido fora da família. Em 1967, passei-o nos Arrifes, na ilha de S. Miguel, na companhia de soldados marienses que, a pretexto do muito mau tempo no canal, não poderam abandonar a ilha. Então , em escassos dias, pus-me em movimento e pedi ajuda para a consoada e a realização de uma festa com distribuição de lembranças.

Aqui, em Missirá, foi mais impressionante: cercados pela guerra, por uma população islamizada que não podia comungar a fundo as nossas alegrias e saudades, com falta de tudo, a festa ergueu-se e atingiu todos.

Balanço dos primeiros cinco meses do ano de 1968


Procedo agora a um balanço de tudo quanto aconteceu desde o momento em que entrámos no canal do Geba, na madrugada de 29 de Julho (1).

Saí de Santa Luzia à procura de uma cidade que provoca sentimentos contraditórios: é colonial nos seus símbolos, na sua arquitectura (a Baixa de Bissau lembra uma vila como Penacova ou Mortágua), na presença do branco nos ponto chave da decisão; é África multicolorida nos seus mercados, na festiva comunicação, nas canoas que circulam à volta do cais, no envolvimento dos palmares que convocam a atmosfera dos trópicos; é o caos urbano dos últimos anos que as autoridades coloniais controlam a custo com os inúmeros refugiados que pululam por toda a península de Bissau e que vão crescendo à volta de Quinhamel e Nhacra.

Quando desço a avenida em direcção ao cais paro à porta de um cinema que anuncia Operação Zanzibar. Mais tarde, nas noites de cinema de Bambadinca ao ar livre, recordarei este momento quando for ver Operação V2, com uma máquina de cinema que me parecia puxada por um tractor, tal o barulho e cheiro a gasóleo.

Fiquei triste com a riqueza das peças do museu, mal expostas e ilustradas, tratando-se de património de valor gigantesco (em 1993, recordo as salas do Museu Metropolitano de Nova Iorque onde encontrei arte Nalu e Bijagó, oferta de um Rockfeller).

Logo escrevi postais à família e visitei o Eugénio Cruz Filipe e mulher, por recomendação do Emílio Salgueiro. Comprei música de intervenção e livros proibidos em Portugal. No início de Agosto, despeço-me de camaradas que vão para locais que são difíceis de soletrar. Disseram-me que vou para Enxalé, afinal é uma terra chamada Missirá.


A desertificação do Cuor


Em Bambadinca, avisam-me de perigos e a missão mais importante que recebo é patrulhar diariamente Mato de Cão, de acordo com as marés e a extensão dos comboios de navios. Em nenhuma circunstância posso faltar ou falhar, trata-se da via fundamental dos abastecimentos para todo o Leste.

Gradualmente, descubro o posicionamento do PAIGC, as suas vias de abastecimento tanto para os Nhabijões como Santa Helena e Mero. O armamento de Missirá é incompatível com a missão ofensiva e defensiva e Finete, se o PAIGC quiser, não resistirá maior a uma tempestade de fogo.
Missirá tem os abrigos podres, vive-se num desconforto absoluto e em Finete o arame farpado está praticamente por terra.

Em meados de Agosto, estabeleci prioridades embora já não tenha interlocutor para as validar: batalhão sai, batalhão entra. Em 1963, todo o regulado do Cuor é atingido pela guerra de guerrilhas, as povoações são abandonadas, Enxalé tem competências sobre Missirá enquanto Caranquecunda, Canturé, Malandim e Gambaná desaparecem do mapa. O régulo e a sua família recusam-se a partir para a guerrilha e saem de Sansão para Missirá.

Esse ano de 1963 não é esquecido pelas populações devido a um massacre em Gambaná de gente indefesa arrebanhada pelo PAIGC. A estrada Enxalé/Missirá é abandonada em 1966, após várias minas anticarro e pesadas emboscadas entre Malandim e Canturé. Missirá passa para o sector de Bambadinca e reinventa-se um destacamento em Finete para tornar mais defensável a periclitante posição de Missirá.


A burocracia kafkiana do Exército

Se hoje recordo estes dados é porque em Janeiro de 1969 o Brigadeiro António de Spínola e o tenente-coronel Hélio Felgas gritam furiosos com a falta de meios defensivos e de segurança, como se eu não soubesse e responsabilizam-me pela situação. Como era ilógico utilizar-me como bode expiatório, irei receber dois dias de prisão em Fevereiro por "ter apresentado o aquartelamento em fracas condições de defesa e em deplorável estado de limpeza, arrumação e asseio".

Para quem acompanha o desenvolvimento destes episódios a punição é surrealista, irei reagir exclusivamente por motivos e honra, já que estava desinteressado das chicotadas psicológicas do comandante-chefe e do seu colaborador em Bafatá. Aliás, na segunda visita do comandante-chefe a Missirá, em Fevereiro, estou num patrulhamento ofensivo em Quebá Jilâ, donde traremos um prisioneiro. São outras histórias que aqui serão contadas.

Devido a essa punição, jamais gozarei férias e as três vezes que irei a Bissau serão para ser operado, em Março, para remover estilhaços, tratar a queimadura da cara e comprar novos óculos depois da mina anticarro em Outubro, e para casar em Abril de 70. A punição foi uma indignidade para quem ma aplicou, a par dos remorsos de quem sabia da sua injustiça: no mesmo dia em que o Comandante-Chefe me alterava o teor da punição, em Agosto de 69, o mesmo algoz, o tenente-coronel de Bafatá, louvava-me considerando que o meu comportamento militar era digno de ser apontado como exemplo em todos os teatros de operações (e esse mesmo louvor seria dado pelo Comandante Militar).

Vários abrigos foram sujeitos a obras, pediram-se equipamentos, encontrou-se um professor para dar aulas às crianças e aos soldados, depois da flagelação de Setembro as moranças afectadas foram rapidamente reconstruídas. A burocracia é infernal: processo da granada de fumos que sinistrou Abudu Cassamá, em Finete, processo da granada incendiária que sinistrou Fatu, uma mulher, ocorrências de 1964 e 1966; abro o correio e tenho uma nota de um capitão de artilharia de Porto Gole a informar que não há nessa unidade duas camas do nosso pelotão... e ninguém sabe a que duas camas se refere o dito oficial; a todo o momento a CCS de Bambadinca manda fazer inventários abarcando capacetes, petromaxes, jerricãs, camas e o mais que se sabe.

O ferro-velho de Malandim


Caçadores nativos e milícias têm o dia ocupado, sete dias por semana. Por exemplo, não chega ir a Mato de Cão montar segurança. Pode muito bem encalhar uma lancha e ali ficarmos, esfomeados, até que suba a maré do Geba e as hélices vençam a prisão da lama. A guerra devasta os ânimos, corrói as energias mas aguça o engenho. É o que se passa quando o Furriel Luís Casanova me entra pela morança adentro, eufórico, dizendo:
- Meu Alferes, já tenho resposta para refazer o meu abrigo. Vamos desfazer a casa de Malandim e eu aproveito todos os ferros para a cobertura.

Vamos a Malandim e o guincho do Unimog 404 faz tais prodígios. Na data, escrevo emocionado para Lisboa, nesse final de ano:

"Escrevo-te cheio de saudades no auge de um virulento inverno africano. Uma bruma quase líquida paira a 5 metros do solo, isto quando ao mesmo tempo há um arco-íris sobre o Geba que dá imensa beatitude aos campos lavrados para lá dos Nhabijões, sob um fundo opaco da linha do horizonte. Tu não acreditas, mas esta é a natureza equatorial. Fomos hoje a Malandim onde o guincho da viatura extraiu as vigas metálicas de uma casa arruinada. Trouxemos também madeira preciosa para os abrigos de Finete e Missirá. O Casanova não pára, aproveita todos os ferros de chassis, tampas enferrujadas de poços, rodas de destiladores, varões de uma bomba hidráulica... A casa de Moussá, chefe de tabanca em Missirá, vai também ser uma maravilha com este madeirame de Malandim. O Casanova aproveitou tudo: alambiques, telhas e portas sem caixilhos, chapas de bidões, do abandonado se faz vida".


O helicóptero do PAIGC nos céus do Cuor

Das recordações da época, vacilo quanto à sua autenticidade. Então telefono ao Queta e peço-lhe ajuda:
- Ouve, tu lembras-te do helicóptero que depois do Natal pairou sobre Missirá e quis mesmo aterrar? Informei Bambadinca e disseram que eu delirava, helicópteros portugueses nunca circulam de noite. Lembras-te?

O Queta lembra-se de tudo, se bem que me tenha prometido, aproveitando as noites de segurança, para pôr em sequência as duas visitas do comandante-chefe a Missirá, já que tem as suas dúvidas:
- Nosso alfero, eu sei que não acredita mas aquele helicóptero era do PAIGC e andava à procura de Sarauol, o grande hospital da região Centro. Estou à vontade pois em 1973 destruímos o hospital que tinha um grande heliporto. Aquele helicóptero não tinha nenhuma identificação . Depois de sobrevoar Missirá, vimo-lo bem iluminado a 15 km de distância. Eu não sei o que teria acontecido se eles tivessem aterrado na nossa parada!


O ódio aos cabo-verdianos

Falo-lhe então do episódio doloroso do acidente do Paulo Semedo e da reacção de Mamadu Silá que recusou ajuda ao ferido:
- Nosso alfero, Paulo era cabo-verdiano e cristão de Geba. Nós gostávamos do Paulo mas nascemos a odiar os cabo-verdianos que mandavam em tudo, desprezavam-nos, para eles éramos animais. Lembra-se a conversa do chefe de posto de Bambadinca, um cabo-verdiano, na loja do Zé Maria? Eu estava lá!

A conversa a que o Queta se refere tem a ver com a apresentação do chefe de posto fez numa altura em que eu comprava pregos no estanco do Zé Maria. Pareceu-me um homem afável, tentou sacar informações de Missirá e insistia nos problemas disciplinares e que eu devia ser implacável. Respondi-lhe que não havia problemas disciplinares e não percebia a que tratamento implacável se referia. Com um sorriso largo respondeu-me:
- Estes pretos de merda são preguiçosos e têm que ser tratados com chicote de hipopótamo!


A biblioteca de Missirá


Deixemos agora de lado este tabu do racismo e as maravilhas da reciclagem que nós fazíamos. O ano está a acabar e posso dizer que li algumas das obras primas que marcaram a minha formação. Eu não queria acreditar que depois do Carlos Oliveira se seguia o José Cardoso Pires e depois Emily Brontë. Em 1964, conheci o Luís Cajão quando eu fazia apontamentos para a Crónica Feminina. Foi graças a este pequenino part-time que entrevistei, por exemplo, Elena Suliotis e conversei com Cajão que me despertara interesse por ter escrito um romance passado na ilha do Príncipe.



Capa do romance O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë (Lisboa: Portugália Editora, 1965) (Colecção Romances Universais, XXXV).


Capa do romance A Estufa, de Luís Cajão. 2ª edição. Lisboa, Editorial Escritor, 1996. (Edição original, 1964).



Nestas noites de Inverno equatorial releio esta prosa admirável de A Estufa. Admirável e corajoso: jamais a realidade santomense fora descrita com tanto fulgor e com imagens tão fortes e com tanta autenticidade: os podres da administração, os agentes corruptos, a gesta do trabalho roceiro, os desastres afectivos no meio de uma natureza genesíaca. Ninguém resiste a comover-se com o despedaçamento de uma tartaruga, esquartejada viva, o colorido do porto de Príncipe, a discrição do dia de S. Vapor e dos registos identitários dos protagonistas.

Cajão ofereceu à literatura luso-africana uma obra imorredoira, injustamente esquecida mas que naquele preciso instante do final de 1968 me permitia ver com clareza os desaires do nosso colonialismo.

Não quero terminar o ano sem falar sobre o que aconteceu em Chicri. Matei pela primeira vez e nos anos seguintes voltarei a matar com a minha própria arma. Eu não sabia, mas a nossa vida muda radicalmente de importância.

Amanhã é dia de paz e nem me passa pela cabeça o que me vai trazer 1969: Missirá praticamente destruída em Março irá renascer e em nenhum momento da minha existência voltarei a ter a obstinação e o denodo em ver a vida sair das cinzas; haverá patrulhas, desastres e sucessos efémeros; Corca Djaló (ou Corca Só, como era conhecido no PAIGC) vai-me declarar guerra sem quartel. Quase que ganhou. E um dia, em finais de Outubro, os meus soldados vão pedir para partir para Bambadinca.

A nossa vida vai conhecer outro rumo e será nessa altura que irei conhecer o Luís Graça e enfrentarmos juntos as asperezas e as contingências do dia a dia num batalhão. Tudo isto será aqui rememorado.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:
22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1392: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (26): Missirá, 1968, um Natal (ecuménico)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1376: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (25): O presépio de Chicri

13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

6 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1252: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (19): O Soldadinho de Fogo em Missirá

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1229: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (18): Não fujam, nós não somos bandidos!

19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1191: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (17): A visita a Missirá do Coronel Martiniano

11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo

4 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa

29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma

26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1118: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (13): Rebelo, meu rapaz, ninguém nasce soldado!

22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.

8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1050: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (7): O espectro de Kafka nas guerras do Cuor

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1004: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1): o pudor das nossas recordações