
Caro Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais um pedacinho das minhas memórias.
Apesar do dilúvio que se faz sentir lá fora, espero que chegue sequinho.
Um abraço amigo para ti e para os camaradas,
José Câmara
Memórias e histórias minhas (15)
Um erro de periquitos que nos valeu o piar dos nossos próprios camaradas
Nos primeiros dias que passámos na Mata dos Madeiros, o render das outras forças que faziam parte da segurança à estrada constituía, sempre, novidade. Porque aquelas forças eram velhinhas, e porque, entre elas, havia açorianos conhecidos e amigos de longa data de alguns dos militares da CCaç 3327.
O tempo de rendição não era muito, mas tudo servia para uma pequena cavaqueira e troca de impressões, e das últimas novidades das terrinhas que nos viram nascer. Para além disso, esse tempo também dava para observar, dentro do possível, o armamento que essas forças utilizavam, como o dispunham no seu xadrez e a forma como depois progrediam na mata.
A CCmds 26 contava nas suas fileiras com um alferes açoriano (esqueci o seu nome), natural de São Jorge; já o protagonismo da CCaç 2791 ia para o Fur Mil Chaves, natural de Santa Maria, e no DFE 13, o Jorge Sousa, natural de Santa Cruz das Flores, e hoje a morar em Stoughton, Massachuetts, EUA, era o preferido dos florenses. Nos Pára-quedistas não havia açorianos. Os tempos de Tavira também deixaram conhecidos entre os furriéis.
Para a minha curiosidade contribuía, como factor mais importante, o facto de muitas vezes ter ouvido, em Tavira e mesmo na Ilha Terceira e em Santa Margarida, que o que nos ensinavam tinha pouca praticabilidade no teatro da guerra. Nada melhor que a imagem para satisfazer a minha curiosidade, e ali era possível observá-la a diferentes níveis.
1.ª Secção - Fur Mil Manuel Lopes Daniel (A-dos-Cunhados) - Met GM42 e Mort 60
2. ª Secção - Fur Mil José A. S. Câmara (Fazenda, Lajes, Flores) - Met HK21 e Dilagramas
3.ª Secção - Luís José Vargem Pinto (Norinha, Silves) - Lança-Granadas e Dilagramas
A força da CCaç 2791, uma unidade de infantaria, era a menos apetrechada em armamento, e a que melhor se podía comparar com a CCaç 3327. O seu armamento era o normal de uma companhia de infantaria, sendo a G3 a arma mais utilizada; o dilagrama e o instalazer davam cobertura à falta de lança-granadas. Já os Comandos primavam pelo uso de armamento apreendido aos turras (uso do palavreado de então e seria descabido usar outra linguagem neste escrito). Os Fuzileiros Especiais faziam das MG42 o seu armamento por excelência, e era evidente que se armavam para a luta curta ou de corpo a corpo, tal era a profusão de granadas de mão e punhais que carregavam. Os pára-quedistas, com as suas G3 de coronha rebatível, impressionavam pela forma como fardavam e pela disciplina, ao ponto de, ainda hoje, estar sem saber se eles se preparavam para a guerra ou para uma cerimónia em parada.
Das minhas observações o que mais me chamou a atenção, como sendo diferente do que aprendera na recruta e especialidade, foi a forma rápida e firme como todas aquelas forças penetravam e davam início à sua progressão na mata. Eram tropas experientes, calejadas pelo sofrimento de muitas emboscadas, assaltos, rebentamento de minas e mortes.
Com essas pequenas observações, fui-me preparando para a minha grande primeira saída, que teria lugar pelas 11 horas do Sábado de Aleluia, em 1971.
Apesar de todos os cuidados que foram tomados para essa saída, a dois grupos de combate, foi cometido um erro tremendo, um erro de periquitos que poderia ter tido consequências catastróficas.
Encarei os meus homens para os últimos conselhos. E tremi!
Sim, pela primeira vez tremi com medo. Não da guerra, mas da morte possível. Não da minha, mas de um daqueles moços tão meninos quanto eu. Foi por esse medo horroroso de poder vir a perder um soldado para a morte, que comecei a tomar a consciência que o possível sucesso dos meus homens, a sobrevivência, seria tanto maior quanto maior fosse o grau de disciplina baseada no respeito, na lealdade, na camaradagem e na amizade entre todos nós. O reconhecimento colectivo dos poderes de cada um desses predicados não era mais que o perfeito reconhecimento consciente entre comandos e comandados. Essa foi a minha mensagem.
Na minha Secção sempre houve esse reconhecimento, razão pela qual, ainda hoje, sinto um respeito enorme por aqueles meninos que tive o previlégio de comandar.
Demos início à nossa saída. Rapidamente entrámos na mata em direcção à antiga estrada Teixeira Pinto-Cacheu. Ao longo daquela estrada, procurámos por vestígios de infiltração IN de ou para a Mata do Balenguerez.
A meio da tarde demos algum descanso às pernas, confortámos o estômago com a ração de combate, a terceira em cinco dias, e aguardámos pelo fim da tarde, altura em que reiniciámos o nosso patrulhamento, ao mesmo tempo que procurávamos um lugar apropriado, junto da estrada velha, para embuscar durante a noite.
Cada Secção era responsável por manter dois sentinelas em alerta constante. Por princípio e consciência integrei-me na rotação, muito contra a vontade dos soldados da minha Secção que disseram não ser necessário.
Com o raiar dos primeiros alvores da manhã levantámos a emboscada e demos início ao patrulhamento matinal, ao mesmo tempo que nos aproximávamos do acampamento, onde deveríamos entrar cerca das 08:00 Horas.
De tanto andar sem encontrarmos o acampamento, apercebemo-nos que estavamos perdidos. A mata densa e difícil não deixava perceber onde estávamos. Tínhamos a consciência que tínhamos passsado à cabeça da estrada, e inflitrado a zona de acção da outra força de intervenção. Para além disso, também nos apercebemos que tínhamos cometido outro erro grave, um erro de periquito: a bússola e o mapa com os pontos de apoio e reconhecimento tinham ficado no acampamento. Este foi alertado via rádio.
Retrocedemos em direcção à antiga estrada, pedindo ao Sagrado Coração de Maria que não déssemos de caras com a outra força de intervenção. As consequências poderiam ser desastrosas.
De novo na estrada velha, obliquámos à direita e entrámos no acampamento cerca de quatro horas mais tarde que o previsto. A nossa entrada foi saudada com um grande insulto: o piar dos outros dois grupos de combate que aguardavama nossa chegada para sairem. E tinham todo o direito. Já podiam considerar-se velhinhos, a avaliar por esta ser a sua segunda saída...
A 13 de Abril de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra. Fiz uma pequena referência sobre este assunto:
... A Vida é durinha por aqui; pelo menos para mim, que já não estava habituado a trabalhos forçados. Saio de dois em dois dias para o mato.
No Sábado de Aleluia saí às 11 horas e regressei no Domingo de Páscoa.
Andámos quatro horas perdidos; foi o nosso FOLAR DE PÁSCOA. Mas tudo acabou em bem.
O resto do dia foi bom. Tivemos “jantarada especial"...
Foi um folar de Páscoa diferente. Para não esquecer. Mas houve mais.
O nosso Domingo de Páscoa de 1971 acabaria com uma cerimónia de casamento em plena Mata dos Madeiros.
José Câmara
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5979: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (14): O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada