sexta-feira, 8 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4305: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (3): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (II Parte)

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 2 de Maio de 2009:

Porto: 02MAI09

Caro Luís/Caro Carlos:

Com as agulhas acertadas e já em velocidade de cruzeiro, junto envio em anexo a 3.ª estória, 2.ª sobre Madina Xaquili - Parte 2.

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Fernando Gouveia



A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

3 - UM ALFERES DESTACADO (DESTERRADO) EM MADINA XAQUILI COM UM CANO (SÓ O CANO) DUM MORTEIRO 60 - Parte 2.

Preâmbulo

Como referi anteriormente, na sequência do agravamento da situação no Cossé, fui destacado para Madina Xaquili, onde vivi uma experiência verdadeiramente inesquecível.

No Poste anterior – 4256 (1.º e 2.º dias dessa minha experiência), passei por Bambadinca, onde tive que ir para cima dum abrigo até à uma da manhã, por se estar à espera de um ataque (que por acaso foi no dia seguinte) e também por Galomaro onde não consegui dormir por causa das rãs.



Relato do 3.º dia – 14JUN69:

Nesse dia, bem cedo, lá seguiu uma coluna de uns três ou quatro Unimogs para nos colocar no último buraco habitado em direcção ao Corubal e a Madina do Boé, então já abandonada [, cinco meses antes, em 6 de Fevereiro de 1969].

Pelo caminho e, por indicação dos meus camaradas, tivemos que ir a uma tabanca, suponho que Umaro Cossé, encher uns garrafões com água, pois não se sabia com o que se contava em Madina Xaquili. Lá fui entabular conversações com o chefe da tabanca no sentido de nos fornecer o precioso líquido.

Cabe referir que duma maneira geral achei os nativos na Guiné sempre muito simpáticos e corteses. Não foi o que aconteceu em Umaro Cossé. Fiquei com a ideia que teriam água boa, mas a do poço que nos indicaram parecia leite, cal de pintar ou coisa assim. Dava a ideia que nos queriam despachar. Foi a água que levámos. Mais tarde, já em Madina e porque dispúnhamos de um filtro, essa água até se bebia. Mas era preciso limpá-lo constantemente.

Madina Xaquili vista de Sul (direcção de Padada). Em 1.º plano a lavra de mancarra do João

Chegámos a Madina Xaquili a meio da manhã. Era uma tabanca com umas 20 palhotas. Estava em auto-defesa, com cerca de 40 milícias, comandados pelo também africano João Vieira (sem Bernardo). Havia uma razoável cerca de arame farpado e abrigos construídos recentemente. A população civil (2 ou 3 famílias) e as mulheres dos milícias não tinham abrigos.

Um dos abrigos. Em segundo plano vê-se parte da antena dipolo que montámos

A coluna regressou a Galomaro e ali ficámos sós e isolados. O princípio da época das chuvas estava a deixar impraticáveis as picadas e, como não tardámos a verificar, o rádio que levámos, um daqueles que tinham um gerador manual e com os quais até se conseguia ligar de Bissau para Lisboa, só de dia conseguia contactar Galomaro e apenas em morse. À noite nem isso. Coisa estranhíssima, mas real, tendo em conta uma distância de uns 25 Km.

Estava a chegar o fim da manhã e havia muito a fazer.

Comecei por perguntar ao João Vieira que munições tinham para as suas armas, metade Mausers, metade G3. A resposta foi zero, zero. Tinham gasto tudo na caça e não podiam justificar um novo pedido pois nunca tinha havido contacto com o IN. Insólito… Peguei numa das suas armas e espreitei pelo cano. Estava completamente entupido. De acordo com o João, como aliás sempre aconteceu com as decisões a tomar sobre os problemas da tabanca, lá foram limpar as armas e municiarem-se.

Como havia palhotas vazias, o João indicou-no-las e instalámo-nos. O cozinheiro já sabia que tinha que fazer o almoço e o rádio-telegrafista andava às voltas com a instalação de uma antena.

A minha casa. Ao meu lado o Sajuma, que se viria a oferecer para ajudante de padeiro

A primeira refeição foi com o prato nos joelhos (ver foto) mas ao jantar, com umas tábuas, já se tinham improvisado, uma mesa, dois bancos e um coberto com folhas de palmeira.

A 1.ª refeição, ainda sem refeitório

Depois do almoço, acompanhado com cervejas a uns 30 ou 40 graus, dei as primeiras instruções:

1 – (só aos metropolitanos) Não iria tolerar problemas relacionados com sexo, até porque na tabanca só havia as mulheres dos milícias e nada de bajudas. Que fossem criativos, e foram, como mais tarde descreverei.

2 – (para todos) Quando se sentisse o ruído de viaturas ou de helis, toda a tropa se devia apresentar minimamente fardada e em passo de corrida. Imaginava que lá aparecesse o Caco, mas só apareceu o Cor Hélio Felgas, de heli.

3 – Enquanto não se construíssem latrinas dentro do arame, todo o militar que fosse à orla da mata levaria um camarada armado para lhe fazer a segurança.

A par disso, formei um grupo para fazer uma mesa e uns bancos e outro para começar a abrir o abrigo para o nosso precioso cano de morteiro 60 e suas 16 granadas. Ficou perto da minha palhota pois seria eu que o manobraria (em Mafra tinha tido a oportunidade de fazer bastantes disparos para um velho blindado que existia lá na Tapada).

Por mim, decidi, com a companhia do João, ir ver as cercanias e nomeadamente o local, fora do arame, onde as mulheres se abasteciam de água e lavavam a roupa, pois era urgente arranjar água de melhor qualidade.

A nascente de água onde as mulheres também lavavam a roupa

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados


Já com o fim do 1.º dia a chegar, havia um turbilhão de ideias na minha cabeça sobre as medidas a tomar urgentemente, tanto mais que o rádio-telegrafista me veio informar que não conseguia estabelecer ligação com a sede da Companhia. Sabia, já do Agrupamento, que o IN estava a uns escassos 10 Km, que vim a confirmar mais tarde quando fiz uma operação na zona de Padada.

Antes do pôr-do-sol tomámos a 2.ª refeição preparada pelo nosso cozinheiro, um rapaz atestado, que já tinha estado na Legião Estrangeira. Já jantámos sentados à mesa improvisada, estando eu de calções. Só depois verifiquei que tinha sido massacrado pelos mosquitos. As minhas pernas tinham muitas dezenas de picadas. Passei um pouco mal.

Ver relampejar ao longe e a conversar com alguns milícias, sentado num tronco constituiu o prelúdio da minha 1.ª noite em Madina Xaquili.

Como era sabido, quase todos os ataques e flagelações na zona Leste, eram feitos invariavelmente ao princípio da noite por causa da retirada IN, como aliás aconteceria no 1.º ataque à tabanca, em 24JUL69. Bambadinca constituiu uma excepção pois a aproximação IN não podia ser feita de dia por causa da população Civil das imediações, afecta às NT. Assim sendo, este alferes, sabendo disso, às nove dez horas da noite, enfiava um pijama e dormia que nem um justo. Acho que nessa altura já estava apanhado pelo clima. Se fosse hoje dormiria de camuflado. Não me estou agora a ver ir operar o morteiro em pijama ou muito menos aparecer em Galomaro na mesma figura, o que poderia ter acontecido, como descreverei no último episódio desta estória.

Nos dois dias seguintes, iriam ser levadas à prática as medidas que não deixavam de fervilhar na minha cabeça, mas isso será tema para o próximo poste onde também contarei que desisti de construir latrinas por causa do meu poio que desapareceu.

Até para a semana, camaradas.
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Nota de CV:

Vd. os dois postes anteriores desta série>

28 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4256: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia (2): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60
27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4254: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (1): Três oficiais: um General, um Coronel, um Alferes - suas personalidades

1 comentário:

Luís Graça disse...

Meu caro Fernando:

Não estive em Madina Xaquili. Nunca lá fui mas alguns dos meus camaradas(dois ou três Gr Comb) tiveram lá o seu baptismo de fogo!... Como já referi, os nossos soldados (africanos)acabavam de fazer a sua instrução de especialidade e a IAO. TUvémos lá os primeiros feridos, um ou dois graves.

Agora, sei do que falas (e do que experimentaste), quando fostes reforçar a tabanca em autodefesa de Madina Xaquili (vd. carta de Cansissé). Também passei várias temporadas (geralmente quinze dias), em tabancas do Corubal, de Badora, de joladu (a norte do Geba)... E sei o que era o pesadelo dos dias e das noites, das dificuldades de transmissões, dos problemas logísticos, da disciplina das tropas, dos conflitos com os milícias, dos Comes & Bebes...

Sei o que era o tédio, a tensão, a espera, a ameaça de ataque do PAIGC, a solidão, as minas e armadilhas, a miséria das populações (fulas), confinadas ao arame farpado, a promiscuidade sexual (dos meus soldados com as mulheres dos milícias)...

Para nim, sobretudo era o pesadelo da noite, o calor de estufa das moranças, o odor execrável, os malditos mosquitos, a falta de luz para poder e escrever, o breu da noite africana, o inferno da noite africana, as chuvas torrenciais, as míriades de insectos, a falta de água potável, a falta de latrinas, os banhos à fula, etc.

Durante o dia, ao menos, conversava com os habitantes, observava as suas actividades, procurava entender e perceber a sua cultura...

O facto de ter soldados africanos, fulas, tinha as suas vantagens e desvantagens... Mas, em geral, ir reforçar uma tabanca em autodefesa era vista como um prémio: durante esses quinze dias, pelo menos livravas-te da actividade operacional: eramos uma companhia de intervenção, ao serviço do comando do Sector L1... Tanto o BCAÇ 2852 (1968/70) como o BART 2917 (1970/72) exploraram-nos até ao tutano...

Um abração. Estou a seguir-te com muito interesse. Luís