terça-feira, 1 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P244: Memórias de um comando em Barro (Parte III) (Virgínio Briote)

Um equipa de "velhos comandos", em 1965/66. O Alf Mil Briote é o segundo a contar da esquerda.

O primeiro é o Djamanta, futuro alferes graduado da 1ª Companhia de Comandos Africanos.


© Virgínio Briote (2005)



Terceira e última parte do texto de Virgínio Briote:

BARRO, BIGENE, BARRO, BIGENE

Em Bigene, bebia-se até cair para o lado, capitão à cabeça. Ou comando ou não comando, o Rasas à rasca com as palavras. Não fico nem mais uma noite neste quarto! Ou acordava com os arrotos ou com as idas do capitão ao quarto de banho, titubeante, amarrado às paredes, vómitos, água do autoclismo. Daqui a bocado, é só umas horas, dizia o Gil para si, ponho-me na alheta!

Estremunhado, parecem estrondos! O barulho da locomotiva na cama ao lado entrara em velocidade de cruzeiro. Rebentamentos? Ai são, são…calças enfiadas, botas sem meias, G3 na mão, prá rua já!

Clarões ao longe, para os lados de Barro. Tal e qual, lembrou-se, como vira uma vez, quando regressava das festas da Agonia em Viana! Galgou as escadas para a sala do rádio, o telegrafista de serviço na cama, a sono solto, não se passa nada aqui, o rádio aflito, a chamar…, não se calava nem o militar acordava. A pé porra, baixinho, só para os ouvidos do militar de serviço ao rádio! Um pulo, o coração dele também pelos vistos, ligação estabelecida, finalmente! Barro à morteirada, há meia hora pelo menos, temos feridos nossos e na população civil também!

Correu para as instalações do grupo, o pessoal cá fora, todos voltados para Barro, Viu o Gigante numa roda de militares, falaram à parte, regressou ao quarto, a locomotiva a andar bem. Pepsodent, cuecas e meias no saco, água na cara, porta fora.

Para Barro, margens da picada, em coluna, bem espaçados, a 1ª equipa bem à frente, destacada uns 50 metros, mais ainda que os cuidados habituais. À medida que iam andando, os rebentamentos iam espaçando, até que deixaram de se ouvir.

Chegados às portas de Barro, meteram-se para dentro da mata, e deixaram-se estar ali um bom bocado até o dia clarear. Quando voltaram à estrada, um dos homens da frente chamou a atenção para o que lhe parecia ser um grande envelope, pregado numa árvore. Duas folhas dactilografadas, tudo em maiúsculas:

“Chamais bandidos (*) aos que lutam pela sua terra e pela liberdade do seu povo. Vós bem sabeis contudo, que verdadeiros bandidos, são vosso patrão Salazar e a camarilha de ladrões que roubam o bom povo português, mandando os jovens da vossa pátria morrer ingloriamente por uma causa injusta e por isso de antemão perdida.

"Sabeis que vossas mães, noivas, irmãos e amigos choram de dor pelos vossos camaradas que morrem neste país que não é o vosso, longe da vossa pátria e da vossa família. Os nossos chefes não estão no chão francês, estão dentro do nosso país.


Cartaz de propaganda das NT... Ou quando o feitiço se virava contra o feiticeiro: o PAIGC também sabia como desmoralizar os nossos soldados...

© A. Marques Lopes (2005)


"Vós sois escravos de um tirano, de um velho caótico de 75 anos, peru vaidoso, que demonstrando claro desprezo pelas gerações modernas do vosso país, em conferência concedida ao chefe do Bureau da Reuter, nas Nações Unidas, declarou que gostaria de se demitir das funções que ocupa mas que não o poderia fazer pela necessidade de dirigir a política portuguesa em África.

"O vosso patrão considera-se o único homem em Portugal com valor para dirigir o vosso país!

"Nós não passamos fome!

"Nós não passamos frio!

"Porque estamos na nossa terra e a lutar pela nossa pátria.

"Na vossa pátria milhares de vossos compatriotas passam fome e toda a miséria possível, vendo-se obrigados a imigrar clandestinamente para o estrangeiro para não morrerem de fome. Só para a França fugiram nestes dois últimos anos mais de cinquenta mil operários, conforme declarações oficiais francesas.

"O nível de vida do vosso povo é o mais baixo da Europa e um dos mais baixos do Mundo! A tropa não vai embora? Sim, infelizmente para vós, muitos ficam! Não voltarão mais aos seus lares, não voltarão mais ao convívio dos seus, jamais voltarão a receber os carinhos dos pais, das esposas, dos amigos.

"Ainda estais a tempo de ir pelo vosso próprio pé! (...)”.

Foram entrando na povoação fantasma. Não se via nem um tropa, só alguns nativos e as gargalhadas deles a ouvirem-se ao longe. Quando viram a tropa a chegar-se, fecharam a cara e viraram os olhos para outros lados.

Uma loja de uma família libanesa, daquelas que vendem arroz, agulhas de coser, frigoríficos, panos, mancarra, o que havia. O Nelas ao lado, cara de infeliz, chávena de café na mão.

Calmaria em Barro era uma vez... por acaso até estava acordado, foi um estrondo a abrir, só queria que ouvisses, não, trovoada não, pá, vai gozar com o caraças, um estrondo mesmo em cima de nós, merdas a partirem-se. Não tive dúvidas, só gritei, cada vez mais alto, malta p’rós abrigos!

Sei lá que horas eram, nem me lembrei de olhar para o relógio. Do lado do rio não, fogo foi só daquele lado, do lado do Senegal. Respondemos pois, ai não, à morteirada para não ficarmos atrás, umas bazucadas de brinde. Para onde? Sei lá, p’ráqueles lados. Queres ver as marcas deles, olha a parede cheia de buracos dos gajos. Não, não fomos ver, ainda não saímos daqui, o Nelas, agitado…

Ficais aqui uns dias, não? Temos um cabritinho para logo, assado vai saber que nem ginjas! E temos mais ali, para ocasiões especiais, como esta é que espero que não! Não pode ser tudo mau, não é?

Quando voltais a sair? Esta noite não, porra! E o Rasas, meteu-se muito nos copos? Aquele gajo já veio bêbado da metrópole, é um profissional do mergulho!

Outra vez, ouviste? Filhos da mãe, os gajos outra vez, que porra! É cada estouro, pá, ouviste? A malta de Bigene, coitados, nem abrigos em condições têm! P’ró rádio! Começou para aí há meia hora, meu alferes, veja lá, há que tempo a nossa malta está a ser atacada, o telegrafista para eles.
Outra vez para Bigene, a mesma caminhada, quase as mesmas horas, procedimentos idênticos. Só o barulho de helis para os lados de Bigene é que foi diferente.

À entrada da povoação atacada nessa noite, os nativos remexiam no chão, nos buracos frescos, não os viam a chegar ou então faziam de conta. Ar de apardalados, caras desanimadas, uma noite infernal! O Rasas, decidido, tinha pedido apoio médico a Farim. Chegara há momentos uma equipa médica e mais um pide. Havia mais cabo-verdianos e negros dentro de cadeias improvisadas. Bigene estava a ser atacada de fora, mas também de dentro, as trajectórias das balas, da casa do administrador e de outras casas também, para a sala dos oficiais e para alguns quartos, não lhes deixavam dúvidas.

Militares num magote, a uma centena de metros além do arame farpado, rodeavam dois tipos brancos com ar de polícias e um desgraçado, àquela distância parecia cabo-verdiano, no meio deles.

São os pides que estão a interrogar o administrador do posto! Está farto de enfardar, toda a maralha já molhou a sopa no gajo, um soldado para outros que corriam para lá, no meio de uma enorme agitação.

Diga lá, senhor Sony, como combinaram então o ataque? Recapitulando, o senhor veio até aqui, esperou junto a esta árvore o Ramos, não foi? E depois, abra lá essa cloaca, conte tudo, que a gente não sai daqui sem o senhor contar tudo, não é? O desgraçado com marcas de sangue fresco na cara, nos braços, nas costas, os olhos exaustos! Até bocados de pele e carne lhe faltavam!

É guerra, Gil, é guerra, o Rasas em brasa! Não é a sua? Aqui não há guerras minhas nem tuas, há guerra só, o Rasas a espumar uísque, no seu ambiente. Só me faltava esta, um gajo dos comandos com comichão? Gil afastou-se, foi sentar-se de costas para lá, com uma água fresca ao lado.

O espectáculo continuava, sem intervalos, agora com mais gente, população local também, todos num magote. E o Álvaro, soldado do seu grupo, no meio deles, parecia também entusiasmado! Ááálvaro! Chega aqui! Estava só a ver, meu alferes! A minha parelha? Estava ali há pouco!

Um dia para esquecer, ou para não esquecer nunca mais! O grupo tinha o regresso a Bissau, marcado para a manhã seguinte. Durmo nas instalações do grupo, disse ao capitão. Até amanhã!

A preparar o burro para se deitar, chegou-se o Gigante. Estávamos a formar o grupo para jantar, quando o Álvaro e o Matos deram um passo em frente. O Álvaro disse alto para todos ouvirem, que o meu alferes os tinha encontrado desaparelhados. Fizeram as 20 flexões da praxe.
A mulher do administrador, de vestido preto sem mangas, o gabinete do Rasas, o gajo a levantar-se, beijo na mão, o sentar elegante e digno dela, o Rasas a passar a mão pela careca, olhos de uísque, a porta a fechar-se com estrondo, o Gil com o coração aos pulos, a querer abrir a porta, não abria, a maçaneta soltou-se com a força, a mão com a maçaneta aos murros na porta, capitão, capitão, não! Acordou sobressaltado, os estrondos enormes lá longe, outra vez Barro, toda a gente a pé, a correr para a rua, o mesmo espectáculo.

Os ataques às povoações de Barro e Bigene fisicamente não os tinham apanhado, nunca souberam nem como nem porquê, talvez coincidências só. Alguém alvitrara que a mudanças constantes terão sido um motivo forte, outros que talvez o IN estivesse a jogar ao gato e ao rato. Chegara até a pegar no grupo e sair aí pelas três ou quatro da tarde, grandes desvios pelo mato para disfarçar, pusera-se com o grupo em frente a uma e outra povoação e depois, aguardara emboscado noite fora até o Sol nascer, que os guerrilheiros flagelassem para os poder apanhar na retirada. Nunca aconteceu. Emboscadas, patrulhamentos, nem um contacto.

Toda a gente falava em Sano. É de lá que os gajos vêem, um acampamento grande! Onde fica isso, o que é que há lá, algum guia para nos levar? Uma noite destas vamos lá acordá-los. E foram até Sano, ao Senegal, sem mais informações a não ser os caminhos que os guias conheciam. Era uma data festiva na metrópole. O Nelas a dizer, esta noite não pode ser, nunca ninguém saiu numa noite destas! Por isso mesmo, Nelas, é uma noite muito conveniente.

Um incidente à partida, invulgar para os costumes deles! O sargento Gigante, bom condutor de homens, pega-lhe no braço, puxa-o para o lado para ninguém ouvir. Estamos com um problema na equipa do White.

Algum problema que o chefe de equipa não possa resolver? O Djassi recusa-se a levar o lança-rockets e as respectivas munições, 6. Mas é costume, isso sempre foi assim, desde sempre, outros carregaram sempre com o material, porque não quer, porque é que o White não consegue que ele entenda?

Que é muito peso, só quer levar 4 munições, os outros que levem as restantes! Não pode ser, Gigante, o Altino leva a MG, as fitas, mais de 10 quilos! Foi ter com o Djassi, ouviu-lhe as razões, pareceu-lhe mais birra que outra coisa.

Os rockets vão, contigo ou com outros, Djassi! Não posso, meu alferes! Algemas nas mãos, enfiaram-no num galinheiro cheio de suspeitos apanhados nos últimos dias, arame farpado à volta, enquanto o grupo se aprestava para sair.

Impossível, um comando estar preso com terroristas, fazer-me isto a mim, o Djassi aos gritos! Tudo pronto para a saída, pelotão do Nelas incluído, o Gigante outra vez, braço no Gil, que tinha resolvido o problema. Djassi achava ter razões suficientes, na instrução o alferes sempre lhe dissera para pensar com a cabeça, mas cumpriria a ordem.

White, Cabelo, os outros todos à volta a aguardar, uma chatice. Tiraram-no e puseram-se a caminho, os dois guias à frente, o Djamanca logo a seguir, o Álvaro e o Gil com o grupo todo atrás. Meia hora depois, o alferes Nelas arrancou com o pelotão. Uma noite boa para andar, lua fraca, noite seca, um pouco fresca.

Viram luzes, ouviram galos, estavam perto de Sano (**), os guias a dizerem que era em frente, aquelas casas que se recortavam ao fundo. Fizeram o que deviam, em linha, bem separados. Curvado, percorrera parelha por parelha, tudo em ordem, que aguardassem. Estamos em Sano, parece não haver dúvidas, Gigante!

Uma povoação no Senegal, se calhar só civis, guerrilheiros o que se sabia até agora era só lenda, mais nada, histórias que tinham um acampamento em Sano. Isto que estamos a ver parece mais uma povoação, galos a cantarem, é melhor pensar bem, não?

Minutos a mirarem Sano. Certo, Gigante, não vamos atacar! Civis lá dentro, amanhã o Shenghor, o Touré, os N’Krumahs (1) todos, um barulho danado na ONU, o Salazar furioso, inquéritos, mais merda, vamos mas é dar meia volta.

Foi o que fizeram, não sem um perguntar, então, e os rockets voltam outra vez? E outro, nem um aviso deixamos? Achas que é preciso, o Gigante a cortar. Regressaram a Brá todos enlameados, por fora e por dentro.

A guerra era para aguentar, só isso. O que havia a fazer era preservar o grupo de tarefas inúteis, de algumas guerras que uns escritores de relatórios muito gostavam de desenhar, para depois realçarem no papel a intrepidez da acção, a argúcia do ataque, os resultados brilhantes, que só eles viram. Quem os devia ler, nas sedes dos batalhões e mais tarde no QG, deveria achar uma autêntica felicidade, tanto fogaréu, ataques tão violentos, tantas baixas no In e a NT sem uma beliscadura, ou então uns feridos ligeiros.

Já à noitinha, em Brá, tão exausto que se deitara só para matar saudades da cama, antes de tomar um bom banho, a cara ainda preta de carvão e suor, o Vidraças a querer saber coisas, a contar-lhe de Bissau. Ficara colado como um íman, a noite toda.

Abriu os olhos para os dentes brancos do Sany, sentado a olhar para ele. Estava sem calças, sem botas, sem meias, em cuecas só! Sem dar por nada, o Sany tirara-lhe a roupa toda! O saco arrumado no canto, o quarto outra vez um brinco.

Enfamara Sany, herança do capitão Manilha, era um tipo raro na Guiné daqueles tempos. Uma dedicação que incomodava, treinado pelo Manilha. Sany!...Sanyyyy!...ofegante, meu alferes estou aqui, essa moeda de cinco pesos (2) caiu-me ao chão, ai que desgraça, acode Sany, depressa! Diligente, elegante como um gato, rosto a rir-se todo, gargalhada estridente, a moeda na mão, posso ir?

Em frente do Sany não podia tirar a camisa. Quando ia pegar nela outra vez, já tinha ido para lavar. Botas a reluzir, fardas lavadas a cheirar a tide, engomadas que era um regalo, o quarto a brilhar, nunca em casa alguma em que estivera antes, vira tanta coisa tão limpa ao mesmo tempo!

© Virgínio Briote (2005)
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(1) Khuamah N’Krumah, Presidente do Ghana, um percursor da África Independente

(2) Escudo da Guiné, naquele tempo, valia um pouco menos que 1 escudo da metrópole.

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Notas de L.G.

(*) Vd. os nossos cartazes de propaganda, em post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"

(**) Vd. post do A. Marques Lopes, ex-alf mil da CCAÇ 3, em Barro, relatando uma incursão, em 1968, a Sano, com o seu grupo de jagudis > 24 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXIX: Nome di bó ? Terça, simplesmente Terça! (Em Sano, no Senegal)

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