O alferes miliciano comando Briote (à esquerda), na base aérea de Bissalanca, em Bissau, juntamente com o Furriel Azevedo (ao centro) e o Sargento Valente (à diereita). Foto de 1965 ou 1966.
© Virgínio Briote (2005)
Texto do Virgínio Briote, ex-alferes miliciano, comando (1965/67)
Caro Luís,
Das minhas memórias, uma história passada no Óio.
Um abraço, vb.
Ana, enfermeira do Partido
As cordas apertadas demais, os pulsos a inchar, amarrados atrás das costas. Tinha acabado de ser apanhado pelos tugas, ainda nem sabia como, e logo a ele é que deveria acontecer. Como comandante do PAIGC, sempre fora muito rigoroso com os 10 homens que agora estavam sob o seu comando, sempre exigira que se deslocassem separados uns dos outros, que parassem de vez em quando, escutassem a mata, os olhos a varrerem devagar, da esquerda à direita, e só depois avançar outra vez. E, afinal, fora apanhado desprevenido, sem arma, sem nada!...
Viera a semana passada dos lados de Sano, no Senegal. Muito cansado. Estivera com os camaradas do sector, os dias pelas noites fora, analisaram o trabalho do mês, cada um apresentou o seu trabalho, as emboscadas que fizeram, as minas que plantaram, os ataques aos quartéis da tropa. Fizeram um balanço da situação, leram as directivas do camarada secretário-geral, as orientações gerais para a luta, a referência expressa à luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para a independência nacional, para a libertação, nunca contra o povo português, juntos na mesma luta contra o colonialismo e o imperialismo, depois as orientações locais, o plano para o mês, não descansar a tropa, escrever papel para deixar junto aos quartéis deles, para desmoralizar, e a ordem para mudar, outra vez, o acampamento de Uália (I).
Cartão de identificação militar do Alf Mil Comando Briote > Brá, 1965 > A assinatura parece ser a do comandante da compamnhia de comandos, o capitão de artilharia Nuno J [osé Varela] Rubim.
© Virgínio Briote (2005)
Enquanto regressava com os camaradas, ia pensando nos locais, escolhera o melhor, bem dentro da mata, umas centenas de metros a seguir à bolanha, um barraco junto a esta para vigiar a entrada. Sacos de arroz, mancarra, tudo às costas, bicicletas, cunhetes de munições, armas, tanta coisa, casas às costas, tão pouca gente, precisaram mais que uma vez.
Tinha estado a cavar um abrigo, precisava de se lavar. Fora à bolanha para tomar banho e trazer água. Viu-se cercado por dois soldados de arma apontada, sem saber como, os tugas emboscados mesmo à porta das casas de mato, os garrafões na mão dele, que a tropa tinha deixado em Morés da última vez (II).
Tropa diferente esta, não era a que estava habituado a ver passar. Sem emblemas, sem anéis, sem fios que os outros tugas trazem sempre, ronco nenhum, só lenços camuflados ao pescoço, sem capacetes até, aquele tem barrete diferente, caras pintadas de preto, nunca vira tropa assim.
Pára-quedistas, se calhar! Não, não deviam ser, esses são todos altos, têm camuflado muito verde, a bota que usam é de couro, conhecera-os bem quando assentara praça no colonialismo em Bissau. A farda destes é castanha como a dos outros, uns muito altos, outros pequeninos, todos desiguais, não, estes são outros. Estranhos, quase não falam entre eles, o cano das armas deles também têm olhos, vêem por ele, para a esquerda, para a frente, para a direita, aquele está sempre a olhar para as árvores, tudo muito devagar, assim é bem difícil, camaradas, apanhá-los.
Abriram-me a boca à força, eu não sabia para quê, um lenço preto nos dentes, atado na nuca, outra vez que me levantasse, sem palavras nem maneiras, corda nos pés, uma à cintura presa ao soldado Papel [1]. Via-os à frente, no trilho para Uália, nosso pessoal descuidado a esta hora da manhã, sem aviso, vai ser uma desgraça, tanto trabalho para nada. Todos não estão, felizmente, mandara 8 para Mansabá, uns para montar mina e os outros para segurança.
Aquelas bajudas com os cestos à cabeça vão ser apanhadas, gritai, gritai com toda a força que puderdes, mais alto, mulheres do PAIGC, glória da nossa luta, assim, para camarada ouvir! Os tugas todos a correr, o traidor Papel amarrado a mim, não deixa andar, se eu pudesse! Aquelas crianças ali também!
A enfermeira de Morés? A mulher do Paulo Ramos com a criança às costas?! Porque não fugiu? Não pode ser! Não, não lhe façam nada, ela trata do nosso pessoal da luta, faz curativos só, os tugas não me ouvem, lenço não deixa.
... Não sei, não tenho nada para dizer, meu nome é Ana, sou enfermeira, não sei nada da guerra, trato de feridos só, não pode mexer nesse papel, é carta de meu marido, ouviu? Não pode tirar bilhete de meu marido, não pode! Tenho filhinha às costas, não vê? É hora de ela mamar, largue-me!
© Virgínio Briote (2005)
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[1] Tribo Guineense (nota de V.B.).
Observação de L.G.: O guarda do prisioneiro desta estória era de etnia papel e, muito provavelmente, era apenas um milícia ou guia das NT, se bem que esta companhia de comandos a que pertencia o Alf Mil Briote integrasse já alguns africanos, tão voluntários como os tugas: seria o caso, por exemplo, do Jamanca, que fazia
© Virgínio Briote (2005)
parte da 1ª equipa do Grupo de Combate do Alf Briote (vd. foto ao lado). O Jamanta viria, mais tarde, a fazer parte dos quadros da 1º Companhia de Comandos Africanos, como alferes graduado e que eu cheguei a conhecer, superficialmente, em Fá Mandinga, em 1970: vd post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Nota de L.G. :
(I) Na carta da Guiné, dos Serviços Cartográficos do Exército, de 1961, há uma povoação com este nome, Uália, na região do Óio, a nordeste de Mansabá, na bacia hidrográfica do Rio Ionfarim, também perto de Mansomine.
Quem conheceu bem esta região, e esteve em Mansabá (sede do COP 6) e fez protecção aos trabalhos da estrada Mansabá-Farim, foi o Vitor Junqueiro, membro da nossa tertúlia, hoje médico. Ele foi Alf Mil Atirador de Infantaria da CCAÇ 2753 (Os Barões)(1970/72). Vd. post do nosso camarada, de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXV: Informação & propaganda: de que lado estava a verdade ? (2).
Nesse texto ele faz referência a dois destacamentos temporários onde esteve a CCAÇ 2753, na sua missão de protecção aos trabalhos da estrada (estratégica) de Mansabá-Farim: Bironque (a partir de 1 de Dezembro de 1970) e Madina Fula, mais a norte, a 8 km de Farim (a partir de 13 de Janeiro de 1971).
É neste contexto que o Vitor faz referência à base de Uália: "Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de (e volto a citar dos registos) Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável".
(II) O Morés era uma das zonas míticas do nosso tempo: vd. localização da antiga povoação do Morés, no mapa dos Serviços Cartográficos do Exército (1961), dentro do triângulo Olossato - Mansabá + Bissorã.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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