Guiné-Bissau > Guileje > 2005 > Restos arqueológicos da presença dos portugueses por terras de Guileje. E dos que por lá passaram havia de tudo, como em toda a parte do território: das bestas aos gajos bestiais...
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
VI parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).
Quanto às operações no terreno, as nossas - principalmente patrulhas de reconhecimento e nomadizações destinadas a manter o controle possível no itinerário de Gadamael Porto - decorriam sem sobressalto de maior, porque, era mais que evidente, o IN evitava o contacto para não denunciar os trilhos que utilizava nas suas infiltrações para o interior do território.
Mas, como já referi, era a partir de Guilege que se lançavam as operações conjuntas e de maior envergadura sobre o corredor de penetração dos turras.
Para executar as ordens do Comando do Batalhão ou até do Sector (sediado em Bolama) as unidades empenhadas deslocavam-se até Guilege, onde permaneciam o tempo necessário para a planificação, um, dois dias, e na hora H iniciavam a marcha para o alvo previamente referenciado.
Geralmente os resultados destas operações eram nulos ou pouco compensadores. Nós tínhamos um serviço de informações razoável, com a ajuda dos reconhecimentos aéreos, mas não éramos tão ingénuos que não soubéssemos que nesse aspecto o IN nos levava a vantagem da sua maior mobilidade, conhecimento do terreno e algumas cumplicidades de elementos das populações.
Além disso, o planeamento das operações era feito com as regras copiadas à pressa dos manuais clássicos e algumas leituras dos teóricos da guerrilha e, como tal, se não causavam autênticos descalabros nas nossas tropas isso se devia à bravura dos nossos soldados e ao discernimento dos seus comandantes que sabiam avaliar o momento em que deviam mandar às malvas o rigor dos papéis e actuarem em conformidade com o que deparavam no terreno.
Um pequeno exemplo: as cartas topográficas assinalam correctamente todas as características do terreno, ponto final.
Ponto final no Alentejo ou nas Beiras. Na Guiné nem sequer chega a ser vírgula, porque quando a maré sobe o mar engole uma parte considerável da área total do território. Por outro lado, as bolanhas são assinaladas como terreno alagado e vistas de avião até têm o aspecto de solo enlameado com farta vegetação, facilmente transponível. A realidade é bem diferente. Extensas zonas que, com os seus socalcos, tinham sido férteis campos de arroz, eram agora, quase abandonadas, autênticas armadilhas onde à mínima distracção um homem se afogava ou ficava atolado até ao pescoço.
Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier.
A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio:
-Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!
O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone:
-Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu…
Isto foi ouvido em todo a rede de transmissões das unidades da zona que, em sintonia, seguiam o desenrolar da operação e… nunca constou que o Capitão Cadete tivesse sido punido.
A zona de Salancaúr, que era uma pequena península quando a maré subia, foi durante muito tempo um espinho cravado na nossa garganta. As informações diziam que os turras tinham ali instalado vinte e quatro canhões sem recuo (talvez um exagero), ao mesmo tempo que o reconhecimento aéreo dava conta de actividade rural por parte da população da tabanca nas redondezas o que punha fora de hipótese a destruição por bombardeamento da aviação.
Os comandos não desistiam de eliminar aquele importante ponto de apoio do corredor de Guilege e as surtidas das nossas tropas sucediam-se sem resultados palpáveis.
Numa dessas operações, poucos dias depois do Natal desse ano de 1967 (sei a data precisa, mas não a quero referir) tivemos mais três baixas estúpidas, a juntar à de São João.
As nossas tropas saíram ao alvorecer e, excepcionalmente, os Lordes (2) do Alferes Tavares Machado ficaram no quartel, constituindo a segurança das instalações.
Menos de uma hora depois ouvimos um tiroteio aceso. Os turras tinham emboscado a frente da nossa coluna. Pelo rádio o Capitão Corvacho disse que não havia novidade, que estavam a reagir à emboscada e que o IN estava a retirar.
Em resposta o Alferes Tavares Machado disse que sabia por onde os turras iam fugir e que lhes ia dar uma coça. O Capitão mandou-o ficar onde estava pois a situação estava controlada.
Qual quê? Reuniu os seus homens rapidamente e, ele de calças de ganga e camisola branca, embrenharam-se na mata em direcção ao sítio onde deflagrara o tiroteio.
Pouco tempo depois, talvez meia hora, ouvimos novo arraial e não tivemos dúvidas de que agora eram os Lordes que estavam sob o fogo bem conhecido das Kalash.
Posto ao corrente do sucedido, o Capitão retrocedeu ainda a tempo de enfrentar os turras e evitar uma chacina completa. Só não conseguiu evitar as mortes dos Alferes Nuno da Costa Tavares Machado, Soldado António Lopes (cuja alcunha era o Sargento, devido aos seus modos bruscos) e Soldado António de Sousa Oliveira (o Francesinho).
Se houvesse que configurar num homem só, a raça, o patriotismo e o espírito de sacrifício do valoroso soldado português eu escolhia o Francesinho, sem hesitação.
© José Neto (2006)
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Notas do autor:
(1) Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor. Celestino C... R..., comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade.
(29 Os Lordes era a designação dum Grupo de Combate formado por voluntários da companhia que recebeu instrução especial em Bissau com o fim de constituir o primeiro escalão de progressão e assalto, dado que a CART 1613 foi, inicialmente, companhia de intervenção à ordem do Comando Chefe e actuou em vários pontos do território.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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