© José Teixeira (2006)
Dôtor, Bô ka lembra di mim?
Passados largos anos, após o regresso da guerra, recebi um telefonema do Dr. Azevedo Franco, meu querido amigo, médico, que fez grande parte da sua comissão em Buba. Tinha-lhe aparecido no Hospital o Mudé Embaló e não tinha soluções de futuro para o puto.
O Mudé tinha-se iniciado, como ajudante de fermero, com onze/doze anos, na Chamarra, com o meu colega de Companhia, Jorge Catarino que lá se encontrava integrado no seu pelotão. Na minha curta passagem por Chamarra ( cerca de dois meses) (1), pude apreciar o jeito, a capacidade de aprender do miúdo. Era muito esperto, educado, sempre disponível e cativante na forma de estar.
Dois dias depois do meu regresso a Buba, apareceu-me na enfermaria logo de manhã. Tinha-se metido a caminho pelo mato. Catarino e Teixeira eram os seus ídolos e queria ser fermero.
Criou amizades com os outros enfermeiros e com o médico, e por lá continuou quando abalámos para Empada.
Chegada a independência, foi para Bissau. Estudou até ao 2º ciclo, mas o seu sonho era vir para Portugal, e estar com os seus amigos.
Começou por dar explicações. Assim ganhou algum dinheiro para a passagem de avião. Comprou um cheque em USD que escondeu na sobrecapa de um livro que sempre o acompanhava e desembarcou em Lisboa.
O seu destino era o Porto, pois sabia que o Dr. Azevedo Franco morava no Porto. Meteu-se no comboio e chegou a Campanhã. Logo começou a perguntar pelo Dr. Azevedo Franco, até que alguém teve a feliz ideia de lhe indicar o Hospital de S. João. Deste para o de Santo António e por último o de Rodrigues Semide, até que . . .
- Dôtor, Bô ká na lembra di mim ? Sou o Mudé qui firma na Buba...
- E agora que vamos fazer com o puto ? - dizia-me o doutor...
Tentei empregá-lo num escritório pois dizia-me que sabia escrever à máquina. Tinha trabalhado num escritório em Bissau. Puro engano, levou mais de uma hora a escrever meia dúzia de letras.
© José Teixeira (2006)
Alguém conseguiu empregá-lo em Lisboa numa clínica, como auxiliar, mas . . . julgava-se enfermeiro e não estava para fazer os trabalhos próprios da função, muito menos limpezas. Desenrascou-se sozinho e desapareceu.
Passados dois/três anos reapareceu com novo problema. A mãe tinha sido mortalmente atropelada em Bissau, um irmão tinha morrido na guerra colonial e o outro, o Sáculo, que eu conheci, pisou uma A/P [mina antipessoal]. Então este enviou-lhe uma mensagem para ir ao avião buscar uma encomenda. Ele foi e a encomenda era ... a Djubae, a sua irmã com 6 anos.
Conseguiu-se que esta entrasse num colégio em Lisboa. Ela fez o 12 º ano e hoje se alguém, na margem sul do Tejo, tiver o azar de receber ordem de paragem por uma agente da Brigada de Trânsito de cor negra, pode saudá-la com O corpo di Bô ? ou o Ná pinda, pois é a nossa Djubae, agora com um nome europeu, creio que Carla ou Conceição.
O Mudé Embaló perdeu-se algures entre Portugal e a Holanda e nem a família que localizei em Sinchã Sambel ( Saltinho) sabe do seu paradeiro.
Quanto à Djubae, essa, já lá voltou, toda orgulhosa. Ela tem otoridade em Portugal.
Zé Teixeira
(ex-1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969
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