quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P495: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite


Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)

© A. Marques Lopes (2005)


Começamos hoje a dar ínicío à publicação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66).


Um cabaço de leite

Naqueles longínquos anos da década de 50 (do século passado) cheguei à Guiné ainda adolescente. Como qualquer pessoa nessa fase da vida, também o apelo da magia africana me enfeitiçava. Trazia a cabeça cheia com as descrições fantasiosas sobre África:
- Cuidado com os leões. Há bichos perigosos por todos os lados. Os pretos são muito maus. Ainda há antropófagos. É tudo selva inóspita.

Depressa verifiquei quão erradas eram as atoardas que um pouco por todo o lado pretendiam caracterizar aquelas terras. Encontrei um povo afável, uma terra linda, linda, linda como não imaginava pudesse existir. Foi amor à primeira vista!

Bissau era uma cidade pequena mas onde apetecia viver. Desfeito no meu espírito o mito de leões a rondar as casas, de selvagens canibais e de outras intimidantes tragédias, parti à descoberta da terra.

Guiado pelos amigos que rapidamente fiz, onde se incluíam naturais da Guiné, iniciei-me no convívio com os guineenses. Terminado o trabalho diário, lá íamos nós, avenida da República acima, praça do Império, - vira aí à esquerda, pá - direitos ao Alto do Crim. À nossa esquerda iam ficando os que se entretinham a treinar futebol no então chamado estádio Sarmento Rodrigues (1). Os mais esclarecidos informavam:
- Hoje é a UDIB. Estás a ver as camisolas com aquela risca verde larga, ao meio da camisola branca? É o equipamento deles. O Benfica tem camisolas iguais ao de Lisboa e o Sporting também.

Mais ao fundo, os mais afortunados jogavam ténis e nos campos ao lado praticava-se basquetebol e hóquei em patins. E a alegre comitiva prosseguia rua fora até alcançar o intrincado labirinto de ruas bordejadas por casas e moranças. À sombra de frondosas árvores, os habitantes repousavam as fadigas do dia conversando ou simplesmente meditando - sabe-se lá - talvez na dureza da vida que nem para todos era fácil. E, conforme avançávamos, íamos lançando à esquerda e à direita:
- Bôs tarde, bu ´stá bom ? qui noba di corpo? - Rostos afáveis e sorridentes nos respondiam, cabeças respeitosamente se descobriam. Uma ou outra mulher, atarefadas à volta dos potes de ferro onde se cozinhava a bianda, convidavam:
- Branco, bim nó cúmi.
- Obrigado, pa Deus djudábo. (Deus te ajude). - E neste doce deambular, o dia ia chegando ao fim. Quando as garças rompiam o céu direitas ao Ilhéu dos Pássaros onde pernoitavam pousadas nos frondosos poilões, sabíamos que eram horas do regresso. O crepúsculo era rápido e a noite calma caía sobre a terra tudo envolvendo no seu misterioso manto.

Estes passeios exploratórios eram muito frequentes e assim fiquei a conhecer, Gambeafa, Cupelon (2), Chão de Papel, Santa Luzia, Bandim, e mais bairros à volta de Bissau (3). Surgiu, porém, uma actividade em que me iniciaram e conquistou a minha preferência: a venatória. Nada de leões ou outras feras. Nem gazelas ou outros antílopes, que essas exigiam armas de maior calibre que não tínhamos nem autorizavam - devido a sermos menores - e só se encontravam em zonas já mais afastadas da cidade. Simplesmente rolas ou os saborosíssimos pombos verdes que abundavam por todo o lado e caçávamos com as pequenas espingardas de cartuchos de 9 mm conhecidas por flauberts.

Aos poucos fui-me tornando, ou julguei ser, um perito. Já me sentia na pele dos caçadores de feras africanas que povoavam os meus sonhos nos verdes anos. E foi assim que um belo dia, resolvi que estava na hora de me aventurar sozinho. Pensei, pensei, e decidi.

Num belo domingo, ainda o dia não tinha despontado, sorrateiramente peguei na flaubert e, pé ante pé para não acordar ninguém, saí da cidade caminhando para os lados de Bór. Antevendo a fartura de rolas e pombos verdes com que iria surpreender o meu pai e irmãos estuguei o passo. O local onde, com os meus amigos, anteriormente tinha visto e caçado muitas, ainda ficava longe. Quando finalmente lá cheguei, delas, nem sombras. Que desilusão! Fugiram? Naquela altura ainda não sabia que as aves, só de manhã muito cedo e ao fim do dia, ali se encontravam para passar a noite. Durante o resto do dia deambulavam por bolanhas ou por onde houvesse cereais e outras sementes.

Decidido a não voltar de mãos a abanar, continuei campo fora, olhar fixo nas árvores, ouvidos tentando escutar o arrulhar das aves. A manhã escoava-se. Nada. Raios dos pássaros, por onde andariam? À desilusão, sobrepunha-se a minha vontade de conseguir uma frutuosa caçada; doutra maneira iria ser alvo de gozo. E pensando no fracasso, dizia com os meus botões que o melhor seria não contar a ninguém tal desaire. Continuei o caminho e andei, andei, andei… o sol queimava, como é sua obrigação. Não sei se instintivamente, porque o calor era muito, ou por pensar que no meio do arvoredo seriam maiores as possibilidades de encontrar os fugidios pombos, fui-me internando no bosque, que depois já era mata, e depois floresta cerrada. Como era de esperar, às tantas já não sabia onde estava nem para onde me dirigir. Estava perdido. A tarde avançava e o estômago reclamava pois apenas tinha comido o pequeno-almoço que, embora substancial, à boa maneira africana, não era suficiente para tantas horas de jejum. Não entrei em pânico pois sabia que nada de mal me aconteceria e, além disso, o prazer da caça dominava o meu pensamento.

Finalmente alcancei uma clareira. Ah!... que bom. Aqui talvez conseguisse, pelo menos, um par de rolas. Olhando atentamente uma árvore, para ela me dirigi sempre olhando para a ramagem. E tão atento ia, que nem reparei num tronco partido atravessado no meu caminho. Deu-se o inevitável: tropecei e estendi-me ao comprido no chão cheio de carvão e cinzas do capim recentemente queimado. Fiquei todo enfarruscado; cara, braços e pernas, além de alguns pequenos arranhões.

Continuando a andar, algum tempo depois escutei vozes. Para lá me dirigi sabendo que me indicariam o caminho para alcançar a estrada que me conduziria a Bissau. Deparei com uma morança, debaixo de duas frondosas mangueiras à sombra das quais um homem sentado chupava fumaças do cachimbo. A ele me dirigi e, mal me viu, reparando ma minha figura, soltou um divertido:
- Có, có, có… éh, brancozinho, kuma qui bu fungli sim? (Como é que está assim enfarruscado?). - Contei-lhe, num incipiente crioulo que na altura ainda pouco dominava, a minha odisseia. A cada peripécia ria, bem disposto mas sempre com uma suave compreensão no semblante. Quando terminei e lhe pedi se me podia indicar o caminho que me levasse a alcançar a estrada, disse: Espera. E voltando a cabeça em direcção à palhota chamou. Surgiu uma mulher a quem deu algumas indicações na língua papel que era a sua. Nada percebi mas de imediato soube de que se tratava. A mulher pegou num pequeno cabaço e com ele se dirigiu a uma vaca que se encontrava ali perto e diligentemente a ordenhou. Regressou com o cabaço cheio de leite que, sorridente, me estendeu dizendo:
- Bibi. - Bebi, senti-me reconfortado e agradeci. Visivelmente satisfeito por me ver mais animado, o homem levantou-se e guiou-me até à estrada que, afinal, até nem era longe dali; simplesmente eu, na minha ainda pouca experiência de orientação e no entusiasmo de encontrar os pombos verdes ou as rolas, tinha andado às voltas sem me aperceber.

Enquanto caminhava de regresso a Bissau, fui meditando na afabilidade e simpatia daquela gente da Guiné que nesse dia me tinha sido revelada e se viria a confirmar durante os 14 anos que por lá vivi. Como tudo, afinal, era tão diferente do que corria entre os europeus como sendo a "selvajaria" dos africanos!

Algum tempo depois, logo que um colega de trabalho se disponibilizou a levar-me no carro dele até à morança do meu salvador, fui agradecer-lhe. Levei um garrafão de vinho, bebida que sabia muito apreciarem. Deixámos o carro na estrada, junto do caminho que nos conduzia, a pé, até à casa. Fomos recebidos com evidentes sinais de alegria pelo homem, que continuava a chupar o cachimbo. Oferta entregue, os cumprimentos do costume, as habituais mantenhas, e já nos dispúnhamos a regressar quando ele disse:
- Espera.- E mais uma vez chamou a mulher e deu as suas instruções na língua papel. (ficámos a zero).

A mulher torneou a casa e surgiu com uma galinha que de imediato degolou, depenou, temperou e pôs a assar nas brasas de uma fogueira. Não demorou muito a ficar pronta, tostadinha e apetitosa. Com o nosso hospedeiro foi por nós prontamente devorada, com lamber dos dedos e tudo, acompanhada de alguns copos do vinho que lhe havia trazido. Foram momentos de confraternização e são convívio que demonstra bem como dois povos tão diferentes, ao contrário do que propalavam os que denunciavam atrocidades dos colonos e incompatibilidades ou hostilidade por parte dos nativos, afinal, entendiam-se bem.

Assim era antes da guerra, assim continuou apesar dela ou por causa dela, e assim continua sendo.

© Mário Dias (2006)
___________

Notas de L.G.

(1) Oficial da marinha, governador Geral da Guiné, entre 1945 e 1949.

(2) Pilão, para os tugas do meu tempo...

(3) Vd planta de Bissau.

Sem comentários: