Título: Um luta, um partido, dois países
Autor: Aristides Pereira (1)
Editora: Círculo de Leitores
Ano: 2002
Preço: c. 17,1 €
Foto da capa > Fonte: Círculo de Leitores (com a devida vénia)
A Luta contra a guerra colonial na Guiné Bissau: o testemunho de Aristides Pereira
por Beja Santos
Um dos fenómenos mais entusiasmantes da cultura de massas do nosso tempo é a História posta em romance. Não há hoje ficcionista que não procure visitar um período da História, um herói, um personagem singular, conformando-o à trama ficcionista. Temos o Egipto Antigo percorrido pelo egiptólogo Christian Jacq, a Grécia e Roma Antigas são percorridas por romances policiais, e daria várias teses de doutoramento explorar o consciente e o inconsciente desta História como romance. Entre nós temos os sucessos de Fernando Campos, como A Casa do Pó, José Saramago celebrizou-se mundialmente com O Memorial do Convento, Seomara Veiga Ferreira biografou Leonor Teles e o Padre António Vieira, entre outros, e a lista é infindável.
O que está por detrás deste fenómeno?
Certamente que a História deixou de ser apreendida como um todo e a cultura em fascículos revela-se decepcionante. Há autores que se celebrizaram por tentativas culturais, superabrangentes, caso de O Mundo de Sofia, e, de quando em vez, há best sellers que condensam a cultura mundial. Falhada a cultura administrada em pequenas doses, e independentemente do sucesso das revistas monográficas, dicionários e enciclopédias, que enfrentam as necessidades actuais dos profissionais/consumidores da informática ou do vídeo, a receita emergente é um momento histórico onde ambiguamente o romance invade os dados fidedignos.
A Amante de Brecht, por Jacques-Pierre Amette, que recebeu o Prémio Gouncourt de 2003, é uma obra admirável que nos dá a ilusão de ficarmos a conhecer o homem Bertolt Brecht .
A best-sellerista Mo Hayder descreve em Tóquio o massacre de Nanquim de 1937, transformando o acontecimento num thriller épico.
Em A longa viagem de Garcia Mendes a historiadora Marianna Birnbaum revela-nos uma judia portuguesa que se transformou, no século XVI, numa das mulheres mais ricas da sua época e influente em muita da história europeia do seu tempo.
Se isto acontece com os historiadores e com grandes romancistas, porque é que os políticos não se deixarão tentar em contar o seu papel na História envolvendo-se numa trama ficcionista?
Até recentemente, a autobiografia era assumida como uma visão da História na 1ª pessoa do singular: tudo era justificado na subjectividade do observador. Quem sabe se contaminado pela História como um romance, o autobiografado de hoje fala de si e da sua luta, dos triunfos e dos revezes, por vezes recorrendo a bibliografia, extractos de correspondência, depoimentos, arruma a cronologia e o leitor fica com um pé no depoimento histórico e o outro assente numa visão doce das intenções ficcionistas do narrador.
Aristides Pereira, figura proeminente do PAIGC, antigo Presidente da República de Cabo Verde, resolveu pôr no papel o testemunho da sua luta na guerra colonial que precedeu as independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Não cabe aqui analisar a verdade histórica dos factos descritos, e até discutir da bondade das omissões. Toca a sensibilidade do leitor saber-se que este depoimento lança sempre na ribalta o estratego Amílcar Cabral. O autobiografado, que variadas vezes refere ter passado a escrito estas memórias para responder a deturpações e até gestos tribalistas, não se preocupa em responder concretamente à falta de fundamentação daqueles que acusaram a luta contra o colonialismo como estando envenenada pela presença hegemónica dos cabo-verdianos.
A narrativa do assassínio de Amílcar Cabral, descrita como um episódio ainda hoje rodeado pela bruma, não ilude que os executores criticavam publicamente o dirigente assassinado por satisfazer a lógica dominadora dos cabo-verdianos, por exemplo.
Num momento em que se reacendem as ameaças de uma nova guerra na Guiné-Bissau, o testemunho de Aristides Pereira (Uma luta, um partido, dois países, Círculo de Leitores) merece ser lido e meditado, à luz do sonho de Amílcar Cabral, do heroísmo dos seus combatentes, de uma caminhada tão demolidora que acabou por transformar, com o seu sucesso independentista, a História de Portugal a partir de 1974.
Fica, no entanto, uma série de interrogações por esclarecer e que ganham o sabor de um thriller de ficção: havia ou não um conflito insanável entre guineenses e cabo-verdianos? Não houve uma verdadeira ficção em querer juntar dois países com etnias, culturas e patrimónios radicalmente distintos? Até que ponto a mistura entre a fantasia e a realidade não gerou o drama latente que se vive na conturbada Guiné Bissau?
Afinal, para além deste espectacular fenómeno da História como romance (ao que parece, com cada vez mais milhões de leitores em todo o mundo) não seria importante que o relato histórico não saísse das margens dos seu leito, garantindo aos investigadores acesso à verdade histórica?
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Nota de L.G.
(1) "Natural de Boa Vista, onde nasce no ano de 1923, o futuro activista começa por estudar no liceu de São Vicente. Aos 25 anos viaja para Guiné onde trabalha como técnico de telecomunicações e onde cedo se familiariza com os movimentos de luta pela independência de Portugal. Em 1956 funda, com o lendário Amílcar Cabral, o Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde.
"Entre vitórias e derrota assiste finalmente ao reconhecimento de Cabo Verde como país a 5 de Julho de 1975, na sequência da queda do Estado Novo em Portugal. Eleito Presidente da República é derrotado nas eleições de 1991 decidindo então dedicar-se à escrita das sua memórias.
"Para além dos inúmeras distinções (e referimos apenas algumas: o grande colar da Ordem Militar de Sant’ Iago da Espada e da Ordem do Infante D. Henrique), associa-se ao Projecto SPHAC (Salvaguarda do Património Histórico da África Contemporânea). Recolhendo testemunhos e a informação guardado nos arquivos portugueses e africanos, Aristides contou com a colaboração de uma equipa de investigadores e historiadores de que se destaca o Prof. Joseph Ki-Zerbo, pai da historiografia africana, que prefacia esta obra"
(Extractos de: Fonte: Círculo de Leitores)
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