Caros Luís e Carlos
Um abraço
Passei duas semanas fora de Lisboa, na Casa de Estói. Levámos a nossa neta mais velha e levámo-la a conhecer o litoral algarvio. Depois retomei o trabalho com o Amadu Bailo Djaló.
O Amadu vem cedo, almoça comigo em casa e depois mãos ao trabalho. Tem sido a minha tarefa. Ler-lhe os textos, corrigir, acrescentar pormenores, cortar outros, pôr datas, nomes, locais, enquadrar as histórias, telefonar a camaradas, cruzar a informação, reavivar pormenores. Tem sido assim toda a semana, excepto à 6ª feira, que é dia dele ir rezar à Mesquita. O Amadu tem boa memória. E muita dificuldade em escrever. Por isso, a ajuda que posso esperar dele está na memória. Tem sido muito bom para ele. Vê finalmente alguém interessado em dar corpo às suas memórias. O meu principal problema reside agora na 1ª parte do manuscrito, que foi reescrito por um senhor angolano que já morreu e que deitou fora o original escrito pela mão do Amadu. Esta reescrita está cheia de loas ao patriotismo e à irmandade das comunidades luso-africanas. Não coincide com a cultura do Amadu, nem com a forma africana dele contar e que estou a tentar seguir nesta 2ª parte do texto.
As memórias, como já referi, cobrem todos os anos da guerra. De ainda antes, até. O nascimento em Bafatá, a frequência da escola corânica e depois a da missão católica, de uns padres italianos, a permanência de dois meses no mato para a cerimónia da circuncisão, aos 13 anos a viagem com o irmão mais velho a Boké, os negócios da venda de tecidos e bugigangas na República da Guiné-Conackry, as saudades dos pais e da vida de Bafatá e o regresso à cidade natal.
A incorporação na tropa deu uma grande volta à vida dele. O contacto com os militares europeus, a passagem por Bolama, Cacine, Bedanda, Farim, o 1º ataque do PAIGC a Farim, as 3 emboscadas, no mesmo dia, na estrada Cuntima-Farim, o 1º morto do PAIGC que ele viu ser arrastado pelo soldado Solda, do BCav 490, em 1964, o regresso à CCS do QG, a entrada para os comandos do Saraiva. Uma grande volta na vida dele.
Com o Saraiva viu coisas que nunca imaginou. Viu tudo. Inaugurou a pista de Madina do Boé. Desembarcou de uma das cinco Do.27, que levaram o grupo para Madina. Ao som de tambores, percorreram o trajecto da pista, acabada nesse mesmo dia, até ao aquartelamento. Episódios de Madina que não esquece: a ida com o Saraiva e com o régulo a Hore Moure, na Rep. da Guiné-Conackry, os três vestidos à fula, com duas granadas ofensivas cada um com o grupo emboscado a cerca de 500 metros. A entrada nas casas, que serviam de pouso à ainda incipiente guerrilha apenas durante o dia. A história da mina que matou quase metade do grupo em Gobige. Os funerais em Bissau, a reunião em Brá para discutirem os procedimentos que tinham tomado em Madina e logo a seguir a ida para o Oio, com mais 11 camaradas. Nesta acção, indescritível para os nossos olhos de agora, viu mesmo tudo o que de pior a guerra, qualquer guerra, tem. Crianças, velhos, paralíticos, gado, ficaram-lhe na memória como os principais actores dessa saída.
E depois, Burontoni e o Malan, um miúdo de 7 ou 8 anos que vivia com os pais, junto a um acampamento da guerrilha.
Ninguém queria ficar com o Malan. O Saraiva não queria mascotes, o capitão L., da Companhia local respondeu negativo. Amadu trouxe a criança para Brá. Depois, com 4 metros de tecido que um camarada tinha apanhado num acampamento, foi a um alfaiate fazer 4 calções e 3 camisas. Uns sapatos e uns chinelos completaram o guarda-roupa do Malan, que teve de mudar o apelido para Djaló.
Malan Djaló passou a viver na grande família Djaló. Nunca ninguém soube a história do rapaz até 1973. Malan cresceu, andou na escola, aprendeu bem o português.
Quando chegou a independência voltou a ver os pais, mas à noite regressou à família Djaló. Passou a dar aulas de português em quartéis do PAIGC, até conhecer uma jovem por quem se apaixonou. Casou e nasceu-lhe uma menina. A sorte da vida não estava com o Malan. Uma doença rápida, em dias, matou-o numa cama do hospital de Bafatá. Um ano depois, a menina morreu também, vitima da mesma doença, presume o Amadu.
Histórias, umas atrás das outras, que a guerra foi muito longa e foi feita de muitos episódios.
Tem sido este o meu trabalho, caros Camaradas. Programei a entrega do texto para o final deste mês.
Um abraço a todos,
vb
Fotografias do Alferes Graduado Comando Amadu Bailo Djaló. De cima para baixo: Amadu Djaló vestido com o uniforme nº 1 de oficial do Exército Português; em 1966 depois de terem acabado os cmds do CTIG e o Amadu, em anos mais recentes junto à lápide dos nossos Camaradas mortos nas três frentes da Guerra.
Fotos: © Virgínio Briote (2009). Direitos reservados
Editadas por Carlos Vinhal
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Nota de CV:
Sobre o Srgt Amadu Djaló ver postes de:
22 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4067: Os nossos camaradas guineenses (3): Amadu Djaló, Fula de Bafatá, comando da 1ª CCA, preso, exilado... (Virgínio Briote)
25 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4076: Os nossos camaradas guineenses (4): Amadu Djaló, com marcas no corpo e na alma (Virgínio Briote)
27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4086: Os nossos camaradas guineenses (5): O making of do livro do Amadu Djaló, as memórias de um comando africano (Virginio Briote)
29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4102: Os nossos camaradas guineenses (6): Amadu Djaló, as memórias de um comando africano (Virginio Briote)
4 comentários:
Bom trabalho, Virgílio.
Faz falta um livro dessa natureza.
Um abraço.
António Graça de Abreu
Caro Briote
Que te corra bem o trabalho que estás a desenvolver sobre o Amadu Djaló.Acho ser um trabalho interessante que gostava de vir a conhecer.Parabens pelo esforço e pela tenacidade ,que faz parte com certeza, da tua Essência!
Um abraço
Luis Faria
P.S. Pelo que li,estás ligado a Estói-Algarve,que já percorri por duas vezes à procura do Joaquim Santos Mealha (Guiné 70/72-Fur Mec.Auto)daí natural,sem resultados.Será que sabes algo dele?Obrigado
(...) "E depois, Burontoni e o Malan, um miúdo de 7 ou 8 anos que vivia com os pais, junto a um acampamento da guerrilha.
"Ninguém queria ficar com o Malan. O Saraiva não queria mascotes, o capitão L., da Companhia local respondeu negativo. Amadu trouxe a criança para Brá. Depois, com 4 metros de tecido que um camarada tinha apanhado num acampamento, foi a um alfaiate fazer 4 calções e 3 camisas. Uns sapatos e uns chinelos completaram o guarda-roupa do Malan, que teve de mudar o apelido para Djaló.
"Malan Djaló passou a viver na grande família Djaló. Nunca ninguém soube a história do rapaz até 1973. Malan cresceu, andou na escola, aprendeu bem o português.
"Quando chegou a independência voltou a ver os pais, mas à noite regressou à família Djaló. Passou a dar aulas de português em quartéis do PAIGC, até conhecer uma jovem por quem se apaixonou. Casou e nasceu-lhe uma menina. A sorte da vida não estava com o Malan. Uma doença rápida, em dias, matou-o numa cama do hospital de Bafatá. Um ano depois, a menina morreu também, vitima da mesma doença, presume o Amadu" (...).
Histórias dentro da história, VB! E que histórias! E esta é particularmente comovente!... Nos anos de brasa, quem é que se preocuparia com um miúdo, aterrado, as mãos atrás da nunca, que é encontrado no mato, "turra", futuro "turra"... ?
Esta história revela o homem grande e o grande homem que é, deve ser, o Amadu Djaló. E bom crente em Alá, bom muçulmano.
VB, essas memórias estão-se a revelar uma autêntica Caixa de Pandora. E tu estás a fazer um trabalho fantástico: só por essa razão é que eu perdoo a tua "deserção" (temporária) do nosso blogue...
Conheci o Buruntoni, como outros camaradas nossos que estiveram na CCAÇ 12 (Humberto Reis), no Pel Caç Nat 52 (Beja Santos), no Pel Caç Nat 63 (Jorge Cabral)... Ou nas unidades de quadrícula do Xime: na região de Baio/Buruntoni, a sudeste do Xime, e fazendo ligação com o Poidon/ Ponta do Inglês, na margem direita do Rio Corubal, havia pelo menos um 1 grupo com meia dúzia de roqueteiros que emboscavam as nossas embarcações, em Ponta Varela...
A população era beafada e balanta. O Malan Nanque era o nome do puto antes de ser perfilhado pelo Amadu Djaló...
Peço-te, VB, que faças um poste com esta história, reveladora da grandeza de alma dos homens, mesmo quando andam na guerra...
Vi-o uma vez na televisão, gostei dele com toda a sua determinação e temos de lhe agradecer por estar sempre do nosso lado.
bem haja
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