1. Comentário, ao poste P5698 (*), com data de 24 do corrente, e da autoria de Mário Miguéis da Silva (**):
Caro Marques,
Acabei de chegar a casa e, como já tem acontecido antes, não quis deitar-me sem ler as últimas do nosso querido blogue. Em boa hora o fiz, porque tive a agradabilíssima surpresa e o enorme prazer de te rever ao fim de 39 anos. É verdade, meu caro, da última vez que te vi, estavas deitado, de barriga para cima, no fundo de uma GMC. (***).
Tinhas chegado a Bambadinca, vindo dos lados dos Nhabijões. Essa tua última imagem que me ficou gravada na retina e na memória era a de uma estátua de cera - tal era a tua palidez -, inerte e gelada, como estátua que era. Como se um artista plástico de vanguarda, num golpe de génio, tivesse rematado aquela obra (para mim) macabra, dois grossos fios de sangue saíam-te dos ouvidos e percorriam-te o pescoço até se esbaterem no pó do camuflado.
Quando te olhei pela última vez, o sangue deixara de correr, ou porque todo o teu sangue tinha solidificadoou porque, simplesmente, já não havia sangue para correr. Para mim, estavas morto e bem morto ou, então, andavas lá perto, muito perto. Seria uma questão de horas, talvez minutos apenas.
E, afinal, e FELIZMENTE!, não te deixaste passar para o outro lado.
Confesso-te que estive convencido de que tinhas "batido as botas" até ao ano passado, altura em que, ao ler neste blogue uma crónica ou coisa do género do Luís Graça (o nosso Henriques, em Bambadinca), pude, para meu espanto, concluir que, embora gravemente ferido, tinhas sobrevivido e continuavas "vivinho da silva", residindo para os lados de Lisboa. Para além de surpreso, fiquei, naturalmente, muito satisfeito, com a tua decisão de te manteres entre nós, embora te tivessem dado uma carga mais que suficiente para te passar para a outra margem.
Vou terminar este meu comentário por onde deveria ter começado, isto é, por dizer-te quem sou, embora isso seja o mesmo que dizer-te nada, na medida em que eu, na altura, em Bambadinca, não passava de um pobre "pira" com um mesito de Guiné. Tratavam-me por "Silva", esse meu apelido tão raro, era, como tu, furriel miliciano, pertencia ao Serviço de Informações e estava a estagiar na sede do BART 2917, onde a tua CCAÇ 12 estava "hospedada".
Um grande abraço,
Mário Migueis
PS - Embora o Luís Graça já tenha oportunamente relatado o episódio das duas minas anti-carro em causa (a foto do burrinho, cujo condutor morreu, foi, inclusivamente, publicada numa das últimas obras do nosso camarada Beja Santos), espero poder, logo que tal se proporcione, aflorar de novo o assunto, até porque, na sequência dos acontecimentos, fui parar aos Nhabijões, onde passei umas mini-férias. De ti, espero que, no mínimo, nos contes tudo o que o soubeste ter-se passado contigo após a tua evacuação para o hospital militar.
Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas >
Três camaradas da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Junho 69/ Março 71)... Da esquerda para a direita, o ex-Fur Mil At Inf Joaquim Fernandes, ex-1º Cabo Aux Enf Fernando Sousa e o ex-Fur Mil At Inf António Marques... O Fernandes e o Marques foram vitimas de explosão de minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, a 13 de Janeiro de 1971, com vinte meses de comissão... O Marques, que esteve às portas da morte (se não fora a evacuação Y para o Hospital de Bissau), esteve dois anos em tratamento e reabilitação no Hospital Militar Principal, para onde foi transferido em 12 de Fevereiro de 1971... É um sobrevivente nato! (LG)
Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Miguéis: Não leves a mal, mas o Marques (Fernando Marques, para a família) não se lembra de ti… Aliás, não se lembra de nada... O que não admira, dadas as circunstâncias em que ele se separou de nós, em 13 de Janeiro de 1971… Entre a vida e a morte, seguiu para o HM 241, em Bissau, onde esteve em estado de coma até ao final do mês… Mais exactamente, 17 dias… Estive ontem ao telefone a recapitular, com ele, estas coisas dolorosas. Ele chegou ao hospital politraumatizado, com lesões muito graves, incluindo o fémur partido… Começou a retomar a consciência no final do mês de Janeiro… Por coincidência, quem cuidava dele era um 1º cabo enfermeiro que tinha estado na tropa com o seu (dele, Marques) irmão mais velho. Foi este homem que fez a ponte com a família, que não sabia de nada. E andava naturalmente inquieta. O Marques escrevia praticamente todos os dias à dua namorada, e hoje esposa, Geni. Ela trabalhava num escritório de uma fábrica de cerâmica, existente na época perto do Hospital Egas Moniz. Alarmada com a falta de notícias, removeu montanhas – juntamente com o irmão mais velho do namorado – para saber dele… O Exército era pródigo em palavras: só costumava dar as notícias fatais. E fazia-o de forma lacónica e brutal.
Em, 12 de Fevereiro, o nosso Marques vem num avião da TAP, expressamente acompanhado com um tenente miliciano médico, de que ele infelizmenmte não se lembra o nome. Esta diligência era habitual, quando o doente estava em perigo de vida…
Recorda-se de ter chegado a Lisboa e ter á sua espera a Geni e a família, o irmão mais velho… Depois foi o longo calvário do tratamento e da reabilitação no Hospital Militar da Estrela e do Anexo de Campolide… Só seis meses depois da mina, é que ele tentou levantar-se da cama… A Geni, uma grande mulher, teve um papel excepcional na sua reabilitação. Poucos acreditaram que ele se safava… Resolvido o problema do foro neurológico, era preciso consertar o fémur… A perna esteva para ser amputada… Os pessoal do Hospital Militar fez milagres…
Ainda em 1971 ou princípios de 1972, o Marques casou-se com a Geni, de quem tem dois filhos, um casal, de 34 anos e 26 anos, respectivamente. E já é avô de 4 netos. Creio que foi também nesta altura que ele tirou a carta de condução, fazendo o exame que não chegou a fazer em Bissau (estava marcado para meados de Janeiro de 1971, mas a mina de Nhabijões estragou-lhe os planos …).
Entretanto, o HMP vai continuar a ser a sua casa durante mais um ano. Aqui fez amizade com um conhecidíssimo DFA, o Patuleia, o Fur Mil Patuleia que em Angola fora vítima da explosão de uma mina. Ficou cego. Ficaram amigos para o resto da vida. O Patuleia é natural do Bombarral, meu vizinho, portanto. Encontrei-o muitas vezes na Repartição de Finanças da Reboleira onde trabalhava. Já está hoje reformado. Já o vi em dois ou três convívios nossos (****) . Esteve, nomeadamente no IV Encontro Nacional da nossa Tabanca Grande, em Monte Real, em Junho de 2009.
O nosso António Fernando Rodrigues Marques, depois deste calvário todo, tornou.se empresário. Largiu o seu emprego de escriturário numa obscura secção dos serviços sociais das Forças Armadas. Com o irmão ou irmãos e com a Geni, foi abrindo lojas de pronto a vestir, a última das quais onde vive. O trabalho ajudou-o a superar as sequelas da guerra...
Ficámos, um dia destes, de almoçar juntos, para continuarmos esta conversa... É uma fantástica história de vida, a do Marques (******). Tenho uma grande admiração e carinho por ele. É um sobrevivente nato. De alguma maneira, ainda não ultrapassei, ao fim destes anos todos, o meu estranho sentimento de culpa por ter sido eu a seguir no 'lugar do morto', uma decisão de lotaria), nesse fatídico dia 13 de Janeiro de 1971, e ter sido justamente o Marques a grande vítima da mina A/C...
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5698: Tabanca Grande (199): António Fernando R. Marques, ex-Fur Mil da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)
(...) António Fernando Rodrigues Marques, ex-Furriel Miliciano da CCaç 12 (CCAÇ 2590), Contuboel / Bambadinca 1969 / 1971, [vítima de] rebentamento da mina em Nhabijões em 13 de Janeiro de 1971, onde íamos os dois e onde fiquei gravemente ferido e em perigo de vida. (...)
(**) Membro da nossa Tabanca Grande desde Abril de 2009 > Vd. poste de 16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4194: Tabanca Grande (134): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné 1970/72)
(...) Posto: Furriel Miliciano
Especialidade: Reconhecimento e Informação
Unidade: C.C.S. - Q.G. (Bissau)
Colocação: Com-Chefe / Rep-Info (Amura-Bissau)
Função: Serviço de Informações Militares (SIM)
Unidades em que estive em diligência:
Bart 2917 / Bambadinca (Novembro 70 a Janeiro 71, incl.);
CCaç 2701 e CCaç 3890 / Saltinho (Março 71 a Outubro 72, incl.)
Outros sítios importantes onde, ao longo da comissão, estive amiúde, em curtas estadias de serviço ou, simplesmente, em trânsito para outros pontos do território: Galomaro, Bafatá, Nova Lamego, Xitole, Xime, Mansambo, Aldeia Formosa (...)
(***) Vd. poste de 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)
(****) Vd. poste de 2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4454: Convívios (140): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (3): Gente feliz, com lágrimas...
(*****) 12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5099: História de vida (16): Patrício Ribeiro, 62 anos, ex-fuzileiro, empresário, apanhado do clima...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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8 comentários:
Caro Luís
Apenas uma chamada de atenção.
Espero que não leves a mal.
A edição em amarelo deve ser excluida, uma vez que fica quase ilegível
Abraço
Jorge Picado
Caro Luís,
Só para confirmar, o António Marques é um homem extraordinário.
Embora o nosso contacto seja pouco,é rarissimo enganar-me logo nas primeiras imptressões.
Pois é, mas como aqui gostamos de por os galões, (divisas) aqui somos meninos da Linha. Até eu que sou alentejano.
Agora só espero o puxão de orelhas do Zé Dinis. Também não faz mal eu recordo-lhe a professora dele no Colégio João de Deus.
Um abraço para todos os Tabanqueiros incluindo os que se afiambraram em Monte Real.
Tenho de mandar a pirogravura às ortigas, e viver aquilo que resta.
Mário Fitas
Jorge: Tens razão...Já fizemos o teste...O sublinhado a amarelo não funciona...Ou melhor, não é fiável. Umas vezes funciona, outras não. Obrigado pelo aviso. Luís
Caro Luís:
A propósito da fotografia do trio de velhinhos de Bambadinca (velhinhos, no sentido de gente com dois anos de Guiné, bem entendido), que estás a dar à estampa (fiiiiuuuuuu!..., esta é de jornalista!),tenho a sensação de que a figura do Fernando Sousa, que eu deveria conhecer "de vista", não me é totalmente estranha; quanto ao Fernandes, reconheci-o imediatamente, sem necessidade de me servir da legenda. Também ele não se lembrará de mim, o que é perfeitamente natural, dadas as circunstância conhecidas. Mas, há dois malandros que se lembrarão certamente: o Roda e o Pina, meus companheiros de quarto. Logo que surja melhor oportunidade, remeteriei, para ebventual publicação, alguma coisa escrita sobre a minha curta passagem por Bambadinca e, pelo menos, uma fotografia minha dessa altura (sem barba nem bigode).
Um abraço,
Mário Migueis
Mário Miguéis, meu velho:
O Tê Roda é professor, vive em Setúbal (embira sea natural de Pousos, Leiria). O Benjamim Durães, que vive em Palmela, tem o contacto dele. E ficou inclusive de me entergar fotos do nosso tempo, tiradas por ele, T. Roda.
Lembras-te do Benjamim, do Pel Rec Info ? Ou será que ele foi evacuado, antes de chegares a Bambadinca ? Não tenho a certeza, julgo que foi depois, já em 1971... Tens nomes e contactos da malta do nosso tempo, disponíveis no nosso blogue. Vê o seguinte poste (posso dar-te o telemóvel do Benjamim Durães, que é o camarada que organiza os encontros anuais da malta de Bambadinca de 1970/72):
6 de Outubro de 2009
Guiné 63/74 - P5060: Memória dos lugares (45): Bambadinca, BART 2917, 1970/72, ex-Cap Art Passos Marques (Benjamim Durães)
Quanto ao Pina, já o encontrei, julgo que continua a viver em Silves... Nem ele nem o Roda estão ligados ao nosso blogue, o que é pena.
Manda as tuas fotos... Um abração. Luís
Comentário do Gabriel Gonçalves, ex-1º Cabo Cripto, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), a propósito da evocação da morte do Sold Cond Auto Manuel da Costa Soares, em 13 de Janeiro de 1971 , num mina anticarro, à saída do redordenameno e destacamento de Nhabijõões:
Sobre este assunto, lembrei-me que escrevi no meu diário:
(...) “Existe quem não acredite no destino, mas só quem vive horas como esta, que eu e muitos vivemos, poderá pensar e acreditar na força do destino!
"Pois é, mais uma vez o destino actuou e por sinal num rapaz da minha companhia. Chamava-se Soares, era casado e tinha um filho de dois anos que era, como é natural, todo o seu enlevo.
"Lembro-me que, por vezes, nas nossas horas de ócio e à sombra amiga da caserna, falávamos sobre os mais diversos assuntos e ele, como todos nós, comentava os seus planos futuros e risonhos, para quando chegasse à metrópole, todo ele se ria quando falava no seu Gerinho. Rogério é o nome do seu filho.
"Sim, foi hoje, dia 15 [13] de Janeiro de 1971 que ele faleceu. Amanhã chegará o telegrama aos seus familiares anunciando o triste acontecimento. Que vai ser desses infelizes? “...
"Findo esta narrativa, triste é certo, mas que servirá para que quando mais tarde alguém a leia, dê valor ao que sofremos aqui. Valerá a pena?"
Um abraço
GG"
... Foi a 13, e não a 15, GG... O mais importante não é esse pormenor, é o teu sentimento... Fiu (re)buscar este poste teu:
7 de Março de 2009
Guiné 63/74 - P3993: (Ex)citações (20): Órfãos de guerra: Rogério Soares, aos dois anos, em Nhabijões (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)
Mensagem que nos chega,do Miguel V. Velez de Oliveira , endereçada ao seu amigo e nosso camarada Joaquim Fernandes:
Vendas Novas,280110
Assunto - O Burrinho da Morte
Joaquim Augusto
Saquei estas fotos ao Luis Graça!!Recordar a tua passagem pela Guiné!!
Sou um "leitor" atento do Blog,sempre que vimos algo relacionado contigo,
alerto-te.
Um Abraço, um beijo da MJoana.
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Os editores
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