quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Quê Pê

1. Em mensagem do dia 3 de Setembro de 2010, nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), fala-nos de mais um dos seus camaradas, desta vez, do Miranda.


Memórias boas da minha guerra (7)


Cegueira e religião

Desde o CSM, em Vendas Novas, que conheço o Miranda e, também é desde essa altura, que fizemos amizade. Aconteceu que nos reencontrámos na mesma Companhia, que veio a ser a CART 1689.

A sua maneira de ser, franca e aberta, torna o relacionamento cativante. Depois… bem, depois, quando está com um “grãozinho na asa”, irradia alegria e felicidade por todos os lados. Especialmente por isso, não havia festa sem a participação do amarantino Miranda.

No entanto, não abdica da maneira como vê o mundo. Não há quem o demova das suas teimosias e, normalmente, passa grande parte do tempo envolvido em debates polémicos. Digamos que também é “cego” nas suas convicções. Escreveu um livro contra a construção da Barragem do Torrão, no Rio Tâmega e é um lutador acérrimo contra o poder (incompetente ou não) através do seu jornal.

Por outro lado, também é verdade que tem dificuldades de visão. Usava óculos bastante graduados e com armação muito encorpada. E, como ela lhe pesava no nariz ou estava larga, passava o tempo a levantar o dedo médio (em posição agressiva…), para a puxar para cima ou para a apoiar melhor sobre a cana do nariz. Este gesto tornou-se num tique que se manifestava, repetidamente, sempre que se envolvia em discussão. Ora, como ninguém gosta de ser confrontado com tal gesto, ele saía prejudicado nas suas habituais discussões. Àparte disso, ele é mesmo um bom camarada e foi um valente militar. É pena as várias situações que aconteceram devido à dificuldade de visão. Embora ele o negue, há quem diga, entre camaradas, que por vezes, durante os assaltos, lhe caíam os óculos para o chão. Ajoelhava-se e, de cu para o ar e G3 na mão esquerda, esquadrinhava o terreno em volta com a mão direita à procura deles, berrando:

- Eh pá! Cuidado com os meus óculos!!

Catió > 26 de Janeiro de 1968 > Comemoração dos 9 meses

Quando estávamos a formar o Batalhão 1913 no RASP, na Serra do Pilar, em Gaia, jantávamos à pressa, por forma a virmos apanhar as miúdas que atravessavam o Rio Douro pelo tabuleiro superior da ponte D. Luís, depois de saírem dos seus empregos na cidade do Porto. Corríamos para junto do Café/Restaurante Mucaba, onde desfilavam as mais variadas e supostas boas oportunidades.

Já era a segunda vez que nos encontrávamos com duas miúdas de Gervide: a Florinda e a Miquelina. Dada a boa receptividade, previ um bom serão e, quiçá, algo mais. Porém, ao fim de uns minutos, a Miquelina afasta-se do Miranda e vem para junto da amiga, a chorar copiosamente. O Miranda de boca aberta estava especado a olhar a cena, já com os óculos repetidamente ajustados.

- Que se passa? – perguntei.

- Não sei de nada – respondeu o Miranda, enquanto as duas raparigas confidenciavam, entre lamúrias. E, logo de seguida, despediram-se acenando com as mãos e entraram no autocarro.

No dia seguinte, no mesmo local, encontrámos a Florinda que nos trazia uma nova colega, a Florbela. Ao fim de uns minutos, verificámos que o Miranda não mostrou interesse na miúda que, por sinal, era bem mais interessante que a Florinda. O Miranda chamou-me discretamente de lado e disse-me em voz baixa:

- Vai com a tua que eu vou até ao Porto, ao Circo (da Cordoaria), porque esta miúda ainda é muito novinha e eu não quero ser acusado de lhe tirar a inocência.

Ainda estava eu a tentar demovê-lo da decisão, parou um carro à nossa beira, abriu a porta e a Florbela entrou logo de seguida.

Eu fui com a Florinda a pé, até Gervide. Logo de início ela justificou-me o que tinha acontecido no dia anterior. A Miquelina tinha ficado muito ofendida porque o Miranda lhe havia dito que ela tinha os olhos mais bonitos do mundo.

- Ofendida porquê? – questionei eu.

- É que ela, coitada, é vesga, tem um olho de vidro e nota-se bem – disse a Florinda.

Ao passar abaixo de Mafamude, junto à Real Companhia Velha, em zona de pouca luminosidade, lá estava o carro (VW) encostado, com os vidros baços da humidade interior, a baloiçar ritmadamente. Ainda me pareceu ouvir um grito dentro do carro mas, afinal, era o som do “Non soi degno de te” do Giani Morandi. Passámos mesmo ao lado, mas como a Florinda não reagiu àquele crime, eu também cobardemente, nada fiz para evitar a “violação daquela inocente”.

Ainda hoje, quando nos encontramos, normalmente na Tasca da Quelha, do Benfiquista Agostinho, rimo-nos destas cenas, mesmo com a presença da sua mulher, Maria José, com quem ele já namorava. E para se desculpar repete:

- Ó mulher, não te fies neste venenoso. Sabes bem que eu só tinha olhos para ti.

Miranda no Encontro de Crestuma a ser servido na recepção

Miranda no Encontro de Crestuma, ao lado do Conselheiro da Revolução, Sousa Castro, que nos honrou com a sua visita surpresa.

Aproximava-se Abril, que é o mês em que fazemos o encontro anual da CART 1689 e, como dessa vez era eu que o organizava, fui a Amarante visitar o Miranda e pedir-lhe o apoio quanto aos contactos, uma vez que ele sempre esteve mais ligado à organização.

Bem perto do Arquinho, na baixa de Amarante (Rua 31 de Janeiro), a porta da entrada para o jornal “A Tribuna de Amarante” estava aberta. Subi a escadaria de madeira, com muito cuidado, para apanhar de surpresa o Director do Jornal, Sr. Carneiro de Miranda.

- Eh caralho! Que andas aqui a fazer? – gritou ele, que logo acrescentou: - Ó mulher, olha quem está aqui, aquele doudo do Silva... Sim o da tropa.

Seguiu-se então o período de “partir mantenha” à moda do norte, com mais ou menos caralhadas de permeio.

- Agora reparo, porque estás tão engalanado, que mais pareces um chulo, ou melhor, um Ministro de Lisboa? – observei eu, para o provocar.

Prontamente reagiu:

- Tu lá como é que falas porque estás no norte mais puro e mais português. E estás na terra de grandes homens como Teixeira de Pascoaes e Amadeo de Souza Cardozo. Terras do S. Gonçalo e do melhor binho do mundo, o berde de Gatão. Ainda queres que te mostre mais, onde estamos?

E apontava para um grande quadro, do FCP, devidamente bordado em tecido. Por baixo deste quadro estava uma grande fotografia do Presidente “vitalício” do FCP, com a respectiva dedicatória. Nas paredes, viam-se vários quadros com equipas do FCP, aquando das suas famosas conquistas internacionais.

Esticou-se, para se mostrar melhor. Vestia “blazer” azul, com um emblema do FCP em ouro na lapela, camisa com monograma do FCP, gravata do FCP com alfinete do FCP, botões de punho do FCP. Na mão esquerda exibia um anel do FCP e, sobre a secretária, estava uma caneta dourada do FCP e um “Dragãozinho”- pisa-papeis, colocados ao lado do monitor do computador.

A sua mulher, que também já andava vestida com as cores exclusivas do FCP - azul e branco (cores da Naçom desde a Restauraçom) - interroga-me:

– Então não sabe quem vem cá hoje? É dia do aniversário da filial do FCP de Amarante e o “Papa” nunca falta.

Fiz-me despercebido e indaguei: - Qual “Papa”?

- Sim pá, - adiantou logo o Miranda - o “Papa”, o nosso querido “leader”, o homem mais valioso do Portugal contemporâneo! O único que enfrenta aquela corja de mamões e corruptos da capital, que só nos tem prejudicado. É conhecido e respeitado em todo o mundo! O homem que foi recebido em Roma, no Vaticano e com uma gaja, enquanto que o nosso Presidente da República, não conseguiu que a sua esposa (por sinal uma ”Dragona” algarvia) o acompanhasse na sua Visita Presidencial a Roma.
Portanto:

- “Papa” só há um – o Pinto da Costa e mais nenhum. E mais: - a “Nossa Senhora” é sempre a gaja com quem ele andar. Eu seja ceguinho se isto não é a melhor religião do mundo!

Silva da Cart 1689
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6926: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (2): Alferes do QP Henrique Ferreira de Almeida da CART 1689 / BART 1913

Vd. último poste da série de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6846: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Cabo Felgueiras

7 comentários:

Anónimo disse...

Para que conste:

Este Sr. António Pedro Carneiro de MIRANDA foi furriel do meu pelotão e, naqueles tempos, não se vestia de azul do Fêquêpê. Vestia-se de verde do Sporting...
Como os homens mudam... continuando, no entanto, sendo os mesmos.
Um abraço ao Silva e ao Miranda.
Alberto Branquinho

Carlos Vinhal disse...

Caro Branquinho
Não tenho nada contra o Sporting, mas não admito digas que alguma vez me vesti com as cores do dito cujo clube. Quando muito andei disfarçado de feijão verde ou rajado, como por aqui se diz.
Qual a minha cor preferida? O azul, claro.
Um abraço a todas as cores
Carlos

Anónimo disse...

A história é muito interessante e até muito divertida. Gostei.
Em relação às cores, as mais bonitas são o preto e branco. Que me desculpem os outros de outras cores.
Filomena

Anónimo disse...

Caríssimo Vinhal

Falar em verde, foi só porque não encontrei um pretexto para o "vestir" de vermelho, para o ver vir por aí abaixo, trazendo toda a tropa da nossa Companhia para me prenderem. O meu irmão (António), que também é membro do blogue, é tão doudo pelo Fêquêpê como ele. Aliás conhecem-se. Mas eu sou agnóstico...
Alberto Branquinho

Luis Faria disse...

Caro Ferreira da Silva

Estória engraçada e...Tripeira.
Já agora,"carago", um tintol "berdasco" e "Biba o FêCêPê "

Um abraço
Luis Faria

José Marcelino Martins disse...

Miúdas de Gervide, passagens junto à Real Companhia Velha, encontros no MUcaba, que por sinal já não existe, não há dúvidas: Vocês são "POLACOS DA SERRA", lembram-se?

Todavia, os generais de D. Miguel, desde o amanhecer do dia 13 de Outubro de 1832 até às 2 horas da tarde do dia seguinte, com o propósito de retomarem este reduto, único, em Gaia, na posse dos liberais, assestaram, contra o convento, o fogo de artilharia de 5 baterias, sempre e ininterruptamente, durante 33 horas.

Uma hora depois, três colunas investiram contra as trincheiras, sendo a luta duríssima, porquanto, mais duas vezes, outro número de colunas renovaram o assalto, bastando dizer-se que era já quase noite quando as tropas miguelistas debandaram, deixando no campo e junto às trincheiras liberais cerca de 800 mortos e feridos e os defensores uma perda de 5 oficiais e 64 soldados.

No número dos defensores da Serra do Pilar, estavam bastantes Gaienses dentre os quais o, então, sacerdote Manuel Bento Rodrigues, que, mais tarde, foi bispo-conde de Coimbra, donde transitou para a Sé de Lisboa, como cardeal-patriarca.

A vitória dos heróicos defensores do reduto liberal de Gaia, comandados pelo bravo José António da Silva Torres, mereceu a D. Pedro a honra de os glorificar com o epíteto de Polacos da Serra.

Merece, pois, registar-se a cooperação que os filhos de Gaia deram para o triunfo da batalha de 14 de Outubro de 1832.

Fonte: mjfs.spaceblog.com.br/.../Monte-do-Castelo-de-Gaia/.

Unknown disse...

Ainda não conhecia esta história do Zé Catió, mas nada como uma boa bandalheira para a ler.Como sempre são as histórias do Zé, esta está dentro dos aplicativos e conformes.
E os Polacos da Serra até têm nome numa Caserna.
Espero conhecer em breve o Miranda. Não me lembro dele e se ainda ajeitar os óculos ao seu estilo mando-o àquela parte.
Um abraço à rapaziada