quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7059: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (21): Um abraço de paz na Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas andanças na Mata dos Madeiros. É uma história simples como todas as outras, mas que que traz ao de cima uma grande verdade: na nossa guerra, para os crentes, a paz espititual era o dom mais apreciado.

Para ti e para todos os nossos camaradas, do outro lado do oceano, um grande abraço amigo.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (21)

Um abraço de paz na Mata dos Madeiros

Conforme a nova estrada avançava, também aumentava a nossa ansiedade. O acampamento era cada vez mais visível ao longe. A zona de picagem e o espaço que percorríamos a descoberto eram cada vez maiores. Foi neste cenário que, mais uma vez, o Comandante da Companhia, Cap. Rogério Alves, se deslocou a Teixeira Pinto para uma reunião com os comandos do CAOP 1, na altura comandado pelo Cor. Ferreira do Amaral. Essas reuniões deixavam-nos sempre apreensivos, pois sabíamos que elas, de uma maneira geral, traziam mais trabalho e mais perigos para nós. Esta reunião, tinha ainda a particularidade de acontecer numa altura em que já corriam fortes rumores que, em breve, iríamos deixar a Mata dos Madeiros e seguir para os destacamentos de Teixeira Pinto.

Contrariamente às nossas esperanças, não houve qualquer palavra em relação à nossa saída da Mata dos Madeiros. Em contra-partida, tal como nas reuniões anteriores, esta veio trazer-nos uma certeza: estávamos para continuar naquele buraco!

Recebemos ordem para levantar o acampamento e avançarmos cerca de três quilómetros, em direcção ao Cacheu. A ordem foi executada a 7 de Maio de 1971, precisamente um mês depois de chegarmos à Mata dos Madeiros. O novo acampamento, também no lado esquerdo de quem sobe em direcção ao Cacheu, era em tudo semelhante ao primeiro. Em matéria de defesa, houve, de facto, uma grande diferença. Foi construído um espaldar para um morteiro 120 que haveria de chegar uns dias depois. Para grande contentamento do Fur Mil Armas Pesadas Manuel Lopes Daniel, dos lados de A-dos-Cunhados, que, assim, deixava de alinhar na mata. Esta arma era essencial à defesa do acampamento. Até então, o apoio de armamento pesado vinha dos obuses do Bachile, que agora distava cerca de treze quilómetros do acampamento.


Sobre este assunto, escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:

Mata dos Madeiros, 6 de Maio de 1971
"Então vamos à vida por cá, por estes sítios. Amanhã vamos mudar de acampamento, mas é para perto daqui, pois fica a cerca de 3kms. O sítio nem é melhor ou pior que este. Além disso, vamos ter mais e melhor armamento, que deve chegar dentro em breve.
No aspecto da guerra, os turras continuam sem dar sinal de vida, o que é bastante bom para nós.
Quanto a descanso, já tenho autorização do Comandante da Companhia para levar a minha Secção a Teixeira Pinto, na minha noite de descanso, o que para estes sítios é quase como um Menino Jesus. Iremos à tarde e regressaremos no outro dia de manhã.
Quanto a sair daqui, só no início das chuvas."


O nosso serviço de lavandaria tinha ao seu dispor as mais modernas máquinas de lavar roupa. Aqui, José Câmara tirando partido máximo de uma dessas dessa preciosidades

Montar o segundo acampamento em tempo útil não foi tarefa fácil, até porque não se conseguiu aproveitar nada do primeiro. O pessoal já estava sobrecarregado com as patrulhas de vinte e quatro horas, a picagem da estrada e a defesa próxima das máquinas, pelo que o trabalho teria que ser executado por um grupo de combate, que se revezava todos os dias. Este grupo também tinha a seu cargo, os postos de sentinela diurnos, as escoltas diárias ao Bachile e muitas vezes a Teixeira Pinto, o arranjo da lenha para a cozinha etc. A tarefa era humanamente quase impossível. A solução foi desviar uma Secção para ajudar na construção dos abrigos. Mesmo assim, valeu-nos a grande capacidade de trabalho e disciplina dos nossos soldados. Eles compreendiam que do seu esforço dependia toda a nossa segurança e algum conforto. Nesse aspecto, a sua luta foi indómita e o seu suor que empapou aquele pó, jamais se evaporará. A estrada lá está! Fala por eles e por todos os outros que também deram o melhor do seu esforço na Mata dos Madeiros.

Obra muito importante, como não podia deixar de ser, foi a construção da capelinha que serviria de guarida ao nosso Sagrado Coração de Maria. A obra, digna de qualquer arquitecto que se preze, tinha que estar pronta para a Procissão das Velas que iríamos realizar em plena Mata dos Madeiros. De acordo com o Cap Mil Rogério Alves, a sugestão para se fazer a procissão partiu do Comandante do CAOP 1, o Cor. Amaral, que nos honrou com a sua presença na noite do dia 12 e no dia 13 de Maio.

Fazer uma Procissão de Velas entre as míticas matas da Caboiana e do Balenguerez não era, certamente, do ponto de vista militar o mais indicado. Nós os graduados andávamos apreensivos. Muitos de nós deixamos saber as nossas reservas ao nosso Comandante. Para mais, quando poucos dias antes tinha havido uma escaramuça entre os turras e os Comandos. A verdade é que o Capitão não se podia refutar à sugestão do Comandante do CAOP e o evento de fé foi por diante.

Não constituíria surpresa para quem conhecesse o povo açoriano, ver os nossos soldados no seu Trio Preparatório que incluía reflexão e reza do terço. A minha Secção não fugiu à regra. Quando na mata, usávamos sinais, pois a reza era feita em silêncio e acontecia antes de emboscarmos para a noite. Até que chegou a grande noite!

O Santuário do Sagrado Coração de Maria era uma obra prima da arquitectura contemporânea, só possível pela imaginação dos engenheiros da CCaç 3327

Ainda com alguma claridade solar, a procissão partiu do Santuário (guarida feita em folha de palmeira onde tínhamos o altar com a nossa imagem). Aos poucos, os soldados foram acendendo as velas, rezando o terço e entoando o hino de Nossa Senhora de Fátima. Quando a procissão passou junto do posto de sentinela do canto direito, ao fundo do acampamento, foi engrossada com os dois GCOMB que regressaram do mato para participarem na procissão. Assim, ficámos sem protecção afastada no mato. O Comandante da Companhia, ao aperceber-se dessa manobra não autorizada, não se zangou mas mandou apagar as velas de imediato e a procissão, para todos os efeitos, terminou ali.

Seguiu-se a missa! Nossa Senhora nos valeria naquela noite. Incrivelmente, o Comandante do CAOP não deu pelo regresso dos grupos, e se o fez não se deu por achado.


Foi assim que me referi sobre este assunto, numa carta que ainda escrevi depois da missa.

Mata dos Madeiros, 12 de Maio de 1971
" Continuando, não posso deixar de referir a excelente jornada de hoje. Inclusive, fomos honrados com a visita do comandante cá da zona. Tivemos a nossa Procissão de Velas à volta do acampamento, que culminou com uma missa. Tudo teve um sabor especial por vários motivos. Nem todos os dias podemos aspirar a isso; é verdade que não deixou de haver o espírito de guerra, uma vez que levávamos uma vela numa mão, mas na outra levávamos a arma. Enfim, no mato da Guiné, apesar de tudo, levantamos bem alto a nossa fé.
Para todos nós e em especial para mim, foi o afirmar de uma fé que não julgava possuir com tanta dignidade."


Hoje, ao olhar para trás e para o que esse dia representa na história da CCaç 3327, continuo a sentir o mesmo orgulho de então, por ter participado no evento cristão mais bonito que ainda vivi. Na noite do dia 12 de Maio de 1971, a lua cheia e sorridente, que pairava sobre a Mata dos Madeiros, foi testemunha silenciosa de um abraço de paz entre a guerra e a fé cristã.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6938: Blogoterapia (158): Um brinde à Tabanca (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6684: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (20): Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros

7 comentários:

Jorge Fontinha disse...

A fé faz milagres e o maior deles é o facto de o podermos testemunhar ao fim destes anos todos.Sem fé, não teriamos conseguido o milagre de sobrevivermos aquele inferno.
Um abraço sentido.

Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Caríssimo José Câmara

Já estava com saudades das tuas memórias e hoje presenteaste-nos com um acontecimento que, para quem não viveu naquelas terras e naquelas condições, pode parecer um facto normal, como qualquer procissão nas nossas aldeias...mas a verdade é que, para quem lá combateu, noutras paragens, até pode julgar, esta tua descrição, como uma fabulação.

Tinha chegado há 8 dias ao CAOP 1 e de facto, pelo que me apercebi do Comandante, Cor Art Gaspar Pinto Freitas do Amaral (a quem devo a minha colocação nessa Unidade) ele devia ser um católico praticante.

Este novo acampamento já ficava relativamente perto da curva da estrada para Norte?
Apesar de difícil identificar, julgo que, numa foto aérea que tirei, no voo de regresso duma ida a Jolmete com passagem pelo Cacheu, está lá, numa zona com o lado direito do futuro trajecto juncado de árvores cortadas, ainda não retiradas.

Grande abraço

Jorge Picado

Anónimo disse...

Belíssimo texto, meu caro Amigo José Câmara. As questões ligadas à religiosidade e manifestações de fé dos nossos soldados no TO pouco têm sido focadas aqui no blogue. E não é assunto de somenos importância, pelo menos, para uma parte significativa dos então combatentes. Tenho mesmo conhecimento de secções de Companhias dos BII17 e 18 que todos os dias encontravam tempo para rezar o Terço em conjunto e isto certamente acontecia também com outras Unidades. Também de cá, cada Companhia levava uma imagem, fosse do Senhor Santo Cristo dos Milagres, de Nossa Senhora, etc. Não sei se o mesmo acontecia com unidades oriundas de outras unidades mobilizadoras.
Ainda este ano, pelas festas do Senhor Santo Cristo, houve uma reportagem televisiva com um emigrante vindo dos Estados Unidos propositadamente para pagar uma promessa que tinha feito aquando do ataque a Gadamael, pois só este ano tivera possibilidades de cá vir. Pertenceu à CCaç 4743/72 (BII17).
De facto, como diz o Jorge Fontinha, "a Fé faz Milagres".

Um abraço amigo,
Carlos Cordeiro

Abranco disse...

Camarada José da Câmara

Tenho acompanhado com muito interesse as memórias e histórias das tuas andanças pela Mata dos Madeiros.
São efectivamente histórias simples, mas repletas de vivências extraordinárias, numa zona onde só quem a conheceu minimamente, poderá imaginar o seu valor.
Hoje, ao ler sobre a procissão das velas que realizaram na noite de 12 para 13 de Maio, e não pude deixar de comentar por entender tratar-se de um texto extremamente rico que deveria ser lido por muitos dos que ainda hoje tentam denegrir a nossa presença na Guiné.
Passei na estrada Teixeira Pinto – Cacheu, para a qual a tua companhia muito contribuiu, diversas vezes, já depois de concluída entre 1972-1974 e hoje decorridos 36 anos percebo perfeitamente o orgulho que sentes por teres participado em tão nobre acto.
Vou continuar a acompanhar os teus interessantes textos, até lá.
Um abraço
António Branco
Ex-1º cabo Reabº Matº
C CAÇ 16
Bachile 1972-1974

José Marcelino Martins disse...

Caro José Camara

A uma distancia de décadas, e olhando para tras, jamais pensatíamos que fosse possivel organizar procissões em pleno mato.

12 Maio 2006
Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

O tópico acima, da I série do blogue, reporta uma procissão ... ecoménica.

Luis Faria disse...

Amigo José da Câmara

Muito interessante a descrição deste acontecimento por aquelas bandas inóspitas,na noite e à luz de velas.

Creio já teres aludido a esta Efeméride, em comentário mas sem o pormenor e estória.

Diziamos em Bula ,pela positiva, que vocês ,Açorianos,eram Crentes, valentes e malucos!

Pelos vistos!

Abraço

Anónimo disse...

Caro amigo José da Câmara

Que bela história de fé!
Contada com o teu sentido de humor, tem outro requinte...! Conhecendo eu a mata dos Madeiros, em virtude de por lá ter andado muitas vezes, entre 1972/1973, posso acrescentar que vocês foram protegidos por Nossa Senhora de Fátima ou pela sorte, ou, quiçá, o IN também acompanhou a procissão a pouca distância com o respeito que o acontecimento merecia.

Um grande abraço

Bernardino Parreira