1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2011:
Queridos amigos,
O historiador e especialista em conflitos e guerrilhas de descolonização Gérard Chaliand viveu uma experiência com bastantes riscos quando viajou com Cabral e outros líderes históricos do PAIGC no interior da Guiné, em 1966. Esse relato tem páginas admiráveis na captação que este geoestratega de renome mundial faz da vida dos guerrilheiros e dos dotes oratórios de Amílcar Cabral. Terá sido a primeira vez que se fez uma reportagem deste tipo. Chaliand deixa igualmente uma reflexão sobre as particularidades do que ele classifica com a singularidade da guerrilha guineense em confronto com outras guerrilhas do seu tempo.
Um abraço do
Mário
Gérard Chaliand na guerrilha guineense, em 1966
Beja Santos
O livro de Gérard Chaliand intitula-se “Lutte Armée en Afrique”, e foi editado pela então altamente conceituada Librairie François Maspero, em 1967, numa colecção onde pontificam títulos de Régis Debray, Che Guevara e o General Giap. Chaliand dava os seus primeiros passos nas reportagens que o tornaram um dos mais eminentes especialistas em conflitos associados à guerrilha e ao terrorismo. O seu nome é tido como indispensável na renovação da geopolítica e na estratégia, foi professor da Escola Superior de Guerra e mais tarde director do Centro Europeu de Estudos de Conflitos. A sua amizade com Amílcar Cabral data de 1964, quando ele escreve o seu primeiro livro sobre a Guiné.
“Lutte Armée en Afrique” é um livro encomiástico e de exaltação da guerrilha. A introdução da obra é dispensável, são generalidades conhecidas por todos, a própria documentação de propaganda do PAIGC é um puro anacronismo, pautada por exageros e inexactidões graves. Seja como for descreve o essencial do enquadramento da Guiné quanto a recursos, dados populacionais, emergência do PAIGC (refere a fundação em 1956, a historiografia recente desmente tal data, coloca-a em 1959), etc. O que é deveras singular é a viagem que Chaliand faz entre Maio e Junho de 1966 ao lado de Cabral no interior da Guiné, é uma reportagem em que o narrador se rende à natureza da luta e à personalidade e aos dons oratórios de Cabral. Atravessam o Casamansa, na comitiva vai também um responsável militar do MPLA. São esperados por uma coluna militar capitaneada por Osvaldo Vieira. Marcham horas a fio, passam por povoações abandonadas ou destruídas, chegam ao rio Cacheu pelo amanhecer. Atravessam-no numa canoa e Chaliand regista, admirado, a natureza do tarrafo. No outro lado do rio dirigem-se para um acampamento, passam por campos cultivados por balantas. Cabral observa-lhe que a terra ali é de boa qualidade, é muito diferente da laterite que prenuncia os solos pobres, nova marcha, ao longe ouve-se o troar dos obuses e o som cavo das morteiradas. Atravessam a estrada de Olossato-Bissorã, é uma longa viagem até Maké. São recebidos por Chico Mendes ou Chico Té. Ele escreve a base, situada dentro de uma mata densa, lá dentro há um círculo de 30 metros de diâmetro, estão aqui casas cobertas de vegetação para confundir os pilotos. É numa dessas casas que o grupo que atravessou a Casamansa descansa umas horas. Repousados, e depois de comer, há um cerimonial em que as tropas da FARP se perfilam perante o líder. Este faz um longo discurso que Chaliand grava e reproduz. Cabral fala do futuro, de um tempo em que não haverá exploração do trabalho, em que as mulheres serão respeitadas e todas as crianças poderão estudar. Dá conta aos presentes de como se está a desenvolver a luta armada pelo território. Os resultados ainda são insatisfatórios, é preciso fazer mais, deverá haver uma ligação mais estreita entre os guerrilheiros e as populações, é a consciência da situação do povo que deve preocupar os militares porque no futuro, quando a guerra acabar todos estarão mobilizados nos deveres do progresso. Findos os cerimoniais, Cabral fala informalmente com todos. O repórter nota que há ali livros que tem a ver com a guerrilha, são edições cubanas, vietnamitas e chinesas. Sente-se que alguns dos diálogos registados estão manifestamente aprimorados, tem um tom de gesta e de discurso épico.
De Maké partem para o Oio, uma outra longa caminhada, vão em direcção ao Morés. Chaliand regista que há bombardeamentos aéreos, não muito longe dali. Há feridos hospitalizados. Ele entrevista combatentes e até um desertor português. Assiste ao funcionamento de uma escola, depois regista novo discurso em que Cabral elogia o Morés inexpugnável. Nova conversa de Cabral com os “homens grandes” e depois Osvaldo e Chico Té confirmam ao repórter a história do PAIGC e as lutas da subversão a partir de 1962. No dia seguinte, a coluna parte para Djagali com medidas de segurança mais severas, há informações de que as tropas portuguesas já sabem que Cabral esteve em Maké. Cabe a Osvaldo Vieira detalhar como foi a luta no Sul, no início da guerra, como é que no Oio as tropas e as populações se movimentam com um relativo à vontade, sempre mudando de posições atendendo à pressão constante dos bombardeamentos. Ele fala nas sabotagens que tornaram impraticável viajar por estrada entre Mansabá e Bafatá. O número de tropas portuguesas, observa Osvaldo Vieira, não pára de crescer, nessa data existiria um contingente de mais de 25 000 soldados europeus, fora os “mercenários”. Depois explica as estruturas da FARP. Em Djagali Amílcar Cabral profere novo discurso, desta feita ao lado de Titina Silate, promete um futuro radioso com água canalisada e electricidade. Chegou a hora de regressar ao Casamansa, Chaliand regista imensas patrulhas na zona de Sambuiá. Assim terminou a viagem.
Na terceira parte da obra, dedicada à luta armada em África, o autor descreve as experiências africanas, desde os camarões a Moçambique, relevando as contradições impostas pelo neocolonialismo e refere os apetites de poder da pequena burguesia por toda a África. É dentro desta lógica que ele exalta a estratégia de Cabral como a mais eficaz e original, mostra como ela é autónoma da teoria do ”foco”, que era tão cara a Che Guevara e não esconde a sua profunda admiração pela energia e a combatividade de Cabral que ele considera um intelectual na guerrilha.
O livro é uma relíquia histórica, é um admirável mano a mano entre Chaliand e Cabral, com todas as suas imprecisões e sem disfarçar a carga apologética, é um documento bem escrito, sobretudo no que cabe à reportagem nas entranhas do mato guineense.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8702: Notas de leitura (268): A Guerra de África 1961 - 1964 - IV Volume, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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13 comentários:
Olá Mário B S.
Eu gosto de te ler. Queria responder, comecei mesmo e parei, sobre " O Fazedor de Utopias, Uma Biografia de A. Cabral" que me parece ser a tese de doutoramento de um Angolano (estou a citar de cor). Não trás nada de novo. Contudo levanta o problema do relacionamento Cabo-verdiano/Guineense,o inicio da lira armada e pouco mais que não estivéssemos disso conhecedores.
Posso discordar ou discordar mesmo.
Acontece o mesmo aqui nesta "reportagem do passeio" de Chaliand. É uma visão deformada, porque só abordada por um ângulo de visão, da luta armada do PAI ou será PAIGC? contra os Portugueses.
Não me quero alongar muito. Mas a linha de recensões é a mesma...Não que fazer a apologia do colonialismo, já agora, mas intervala os livros.
Agradeço estas leituras que me proporcionas. Ontem li-te noutro lugar e sobre assunto bem diferente.
Estivemos cinco séculos em África e há tanto para contar. Lembrei-me agora "O Regresso das Caravelas" ou "a Guerra Colonial..." de J.P. Guerra. Não haverá livros sobre a colonização das potências Europeias? Há! Comparávamos...
Abraço Amigo do T.
Errata
(o que faz escrever e carregar sem ver)
#da lira armada e pouco mais que não estivéssemos disso conhecedores.#
#Posso discordar ou discordar mesmo.#
#Não que fazer a apologia#
Leia-se:
# da luta armada e pouco mais como, se disso não fossemos conhecedores#
#Posso discordar mas concordo mesmo#
# Não quero fazer a apologia#
Desculpa os erros
AB T
Pois, o "Morés inexpugnável" e Cabral
"promete um futuro radioso com água canalizada e electricidade". Pois.
Ainda hoje, quase quarenta anos depois, onde está a água canalizada e a electricidade constante nas cidades da Guiné-Bissau?
Pois, os fazedores de utopias!...
Eles, no entendimento do recensor, os bons. Nós, subentende-se no seu constante apostolado e proselitismo, no entendimento do recensor, o "exército colonial fascista", os maus.
Estas recensões paradas na História, falsas como Judas.
Estamos em 2011, hoje o mundo é diferente. O distanciamento para entendermos o nosso passado é fundamental.
Abraço, pós China, Agosto 2011.
António Graça de Abreu
"...Morés inexpugnável" em certa medida sim, foi preciso algum napalm.
"..e Cabral
"promete um futuro radioso com água canalizada e electricidade..."
Não sabia, pessoalmente não sabia.
Gostava de ver escrito, transcrito, gravado, o que quer que seja sobre essa promessa de Amilcar Cabral.
Será capaz de me indicar ??
Se não for capaz de indicar, tb considero uma falsidade de judas o afirmado.
Tenho à disposição de quem desejar a última alocução de Amilcar Cabral em fins de 1972. É longa, e por isso envio por email a quem o desejar. Meu endereço: galomaro@sapo.pt.
Um abraço para todos e para cada um
Carlos Filipe
ex- CCS BCAÇ3872 Galomaro/71
Isto é "chover no molhado"
A mim só me interessa a verdadeira história ou pelo menos aquela que é escrita por historiadores o mais independentes possível.
De propaganda estou farto.
Já agora queria fazer umas pequenas rectificações aos camaradas comentaristas.
Foi no século xv que chegamos a África, mas os territórios coloniais sobre administração portuguesa só foram delimitados no século ixx.
O napalm foi empregue na guiné,apesar da convenção de genebra proibir o seu uso, só que o seu efeito era quase nulo em matas como o morés.
Nas guerras não há os bons e maus, há apenas condutas correctas e incorrectas podendo estas constituir crimes individuais ou colectivos.
Apesar de considerar que Amilcar Cabral foi, talvez, o maior dirigente dos movimentos para a independência, tinha que ser utópico e ter alguma ingenuidade, porque se fosse completamente racional e pragmático e como era inteligente e culto jamais teria fundado o paigc.
C.Martins
Camaradas,
A ideia exposta pelo Torcato, de aqui se confrontarem literaturas relativas à colonização provenientes do estrangeiro, é bastante curiosa. Mas acautelemos: a Inglaterra, através de MacMillan, evitou o confronto ideológico de estado, e concedeu as independências. A Bélgica, talvez impreparada, debandou do Congo e deixou ali um prolongado foco incendiário; a França, por De Gaule, que quereria impressionar e ganhar as boas graças dos anti-colonialistas, apressou-se a entregar as colónias. Até o Franco se antecipou à reivindicação de independência no Ifni.
Portugal resistiu e desenvolveu, apesar de incongruências atabalhoadas, e terá sido por um bocadinho que não conseguiu preservar, pelo menos, laços de lusitanidade fortes. Digamos, que o cansaço da guerra levou ao MFA apressado, desorganizado, incoerente, e sem objectivo para além do regresso dos militares. Melhor, dos oficiais envolvidos, porque, se por acaso a soldadesca lá quisesse continuar a lutar, provavelmente não teria oposição. Logo após, objectivamente, comunistas e socialistas conduziram a descolonização, muitos, sem se darem conta dessa responsabilidade.
Ao AGA chamo a atenção para duas frases: "...é um livro encomiástico e de exaltação da guerrilha", e adiante, "...pautada por exageros e inexactidões graves", alerta MBS.
Ao C. Filipe alerto para a frase no final do antepenúltimo parágrafo, sobre o discurso de Cabral que faz aquelas promessas. Dir-se-á que Cabral não chegou ao "futuro risonho" da independência. Azar dos guinéus.
Abraços
JD
JD, obrigado p'la observação. Mas repara que não é ACabral que diz ou escreve tal promessa. Sim o autor que atribui tal, a ACabral.
Ok, C Martins lá terá razões, concerteza plausiveis, para formular essa truncada opinião. Contudo gostava que indicasses quais os historiadores independentes. Devo andar muito distraido...e portanto sou um crónico desconhecedor da guerra em África. Ser-me-ia muito útil.
Se for para "chover no molhado" talvez não seja necessário ou de utilidade.
Já alguém me acusou de não ter humildade nas minhas apreciações (comentários). Não, não é falta de humildade. É honestidade intelectual e sinceridade dizendo o que penso baseado no que conheço, sei, ou apreendi.
Por isso a "chuva no molhado", de outro modo eu teria um outro qualificativo mais conservador (mais em conformidade). Concerteza que sim.
ps. Não li, nem conhecia o livro apresentado por Beja Santos.
Abraços.
Carlos Filipe
Caro Mário Beja Santos
Saúde para si e seus.
Gostaria de saber se conhece a seguinte obra - Lugar de Massacre - de
José Martins Garcia.
Isto porque o livro ficciona acontecimentos passados em Bissau entre 66-68.
Poderia dar-me o seu parecer e opinião, acerca da obra.
Em relação aos acontecimentos, alguns personagens julgo adivinhar,
especialmente o cantor, mas os restantes escapam-me.
Senão for muito o incomodo.
Um seu fiel leitor, atenciosamente sou ao dispor,
CCoutinho
À atenção do Zé Dinis, eventualmente de mais alguns camaradas distraídos.
Como é que um autor, Gérard Chaliand de seu nome, que escreve, segundo o recensor Mário Beja Santos, "com todas as imprecisões e sem disfarçar a carga apologética", um escritor que segundo o recensor Mário Beja Santos escreve "um livro encomiástico de exaltação da guerrilha" com "exageros e inverdades graves", é segundo
o mesmo recensor Mário Beja Santos
"um dos mais eminentes especialistas em conflitos associados à guerrilha e ao terrorismo. O seu nome é tido como indispensável na renovação da geopolítica e na estratégia".
Pois, o rigor, a seriedade, a honestidade intelectual.
Abraço ao Zé Dinis e a todos.
António Graça de Abreu
Caro António,
Não faço ideia sobre a origem dessa frase que "torna" o autor em personagem eminente. Pode tratar-se de uma mera passagem biográfica, prenhe de simpatia. Para mim não é relevante, nem o acompanhamento de dois meses me pareça que dê autoridade.
Na época, porém, em circulos intelectuais ou de snobismo intelectual, fervilhava uma espécie de anti-colonialismo.
Um abraço
JD
Neu Caro C Coutinho
Também possuo esse livro que me dá muito prazer. Trata-se de uma escrita escorreita, inteligente, e muito bem humurada, que nos proporciona (aos que por lá passaram) imagens de variados estereotipos. A minha psicóloga dá gargalhadas.
Não pude deixar de partilhar esse prazer de leitura.
Um abraço
JD
Caro Filipe
Só comento o teu comentário porque te dirigiste especificamente à minha pessoa.
Eu não disse historiadores independentes , mas o mais independentes possível, o que é diferente.
Quanto à "truncada opinião" formulas um juízo de valor sobre mim.
Poderia fazer o mesmo baseado nos teus comentários...não, não o vou fazer.
Aquilo que me move não é mudar a opinião de ninguém,apenas expressar a minha.
Sobre historiadores o mais independentes possível, não há ninguém completamente independente,poderia citar-te vários,mas cito apenas "GUERRA DE ÁFRICA" de ANICETO SIMÕES E CARLOS MATOS GOMES.
Estes autores basearam a sua obra em documentos militares supostamente fidedignos, e não em relatórios militares de operações que como todos sabemos muitas vezes eram empolados ao sabor das conveniências
C.Martins
Camarada Coutinho, Desculpa só hoje responder, vim ontem à noite de férias. "Lugar de Massacre", de José Martins Garcia é uma obra de enorme valor, excede a literatura de guerra. Penso ter-lhe dado a devida atenção quando aqui se fez a competente recensão. Irás encontrá-la facilmente quando aqui a procurares no blogue. Há pelo menos duas teses de doutoramento nos EUA em torno deste livro raro, irreverente e de uma capacidade corrosiva/humorística que nos prende a atenção do princípio ao fim. Como escrevi em "Adeus, até ao meu regresso" (no prelo), José Martins Garcia é um dos nomes maiores da literatura da guerra da Guiné, podemos, sem hesitação, equacioná-lo com Armor Pires Mota, Álvaro Guerra, José Brás, Cristóvão de Aguiar, no plano romanesco. É lamentável não haver nenhuma edição disponível. Um abraço do Mário
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