domingo, 30 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10878: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (20): 21.º episódio: Memórias avulsas (2): Uma banhoca em Bissorã

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422/BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 29 de Dezembro de 2012:

Caros amigos editores
Aí vai mais um pedaço de lembranças. Se acharem que não se encaixa, rasguem.

Abraços para vocês amigos e Bom 2013, cheio de felicidades e saúde para nós todos e também para os nossos familiares.
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA (21)

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS (2)

UMA BANHOCA EM BISSORÃ

Não passam sem mim? Bora lá...
Acompanhámos um pelotão dos ali residentes, ainda e também com fatiota amarela, e quase no fim da comissão.

A operação foi tremenda e ainda não percebi como findou sem que ninguém se aleijasse, pois que até no paintball acontecem acidentes. Isto do "pintarcombólinhas" é um jogo com que e também alguns matulões brincam à guerras, morrem e matam de mentira, atiram bolinhas de várias cores como o próprio nome dá a entender, assim do género: agora borro-te de verde e depois borras-me tu de vermelho. (cruzes canhoto... t'arrenego... digo eu).

"pintarcombólinhas", ou brincar às guerras

 Fiquei pensando quantos destes aperaltados com camuflado passado a ferro, não se tornariam objectores de consciência se lhes pusesse uma verdadeira canhota na mão, em vez daquela bem imitada e em plástico espingardinha de "sniper" ou quantos não desertariam se colocados perante a dolorosa realidade duma mobilização.

A dois, expus este meu pensamento e no fim fingi-me de convencido, (pois que se me acabou a pachorra para os aturar), que afinal eles é que sabem. Explicaram-me que fazem guerras no playstation e ganham e que o tempo aqui passado, nestes terrenos que deveriam ser apenas para a reprodução das lebres, lhes desenvolve o raciocínio, a coragem, a tenacidade... a resistência.

Na Guiné - A guerra a doer
Foto de © Amílcar Ventura (2006)

E lá me pus eu de novo a pensar e disse-lhes: Pois é, no meu tempo íamos para a tropa terminar a nossa formação como HOMENS. Último olhar para ver se já tinham barba, mas mirando aquelas cútis bem tratadas apenas vi que estavam cheias de cremes embelezantes, esparralhadas de cores, mas nem pelos, nem acne se topava por ali.

E mais pensei e percebi porque é que cada vez se passam menos certidões de nascimento.

Lá que senti saudades dos tempos de escola onde até as pedras e as fisgas eram a sério... lá isso senti.

******

Já me perdi... onde é qu'eu ia? "Ainda não percebi como findou, sem que ninguém se aleijasse"...era aqui.

Estivemos debaixo de intenso fogo, pr'ái mais d'uma hora e sem sabermos bem como dar a volta à critiquérrima situação. Dum lado o IN e do outro o rio que atravessáramos quase seco mas que aliado à maré, subira... subira... e a raivosa corrente parecia até querer morder.

Não havendo melhor hipótese, porque os emboscadores eram bem mais do que deviam ser, decidiu o Senhor Oficial, distinto comandante da força em presença, cavar dali em passo de corrida e tacticamente em retirada estratégica, forçando a que investíssemos contra o impetuoso aguaçal.

Um amigo Fur Mil do meu pelotão, indigitado e treinado para chefiar a Secção de metralhadoras Dreyse, que não tínhamos, pede-me ajuda para atravessar, porque não sabia nadar.

Peguei na coronha da sua G3 e aconselhei-o a que pegasse no cano e lá fomos. Quase a salvo, escorregou e foi uma carga de trabalhos para lhe deitar a mão, mas lá o coloquei em lugar seguro.

Fosse dos nervos... ou...  do que fosse, sussurrou-me:
- Já sei nadar... aprendi hoje pá..."

Fora o seu primeiro baptismo debaixo de fogo e d'água, tal como acontecera com alguns de nós, mas para ele não houve repetições devido a ter sido requisitado para a locução da Rádio em Bissau.

Prenunciando desgraças, andavam por ali na margem, dezenas de abutres, que como sabem se trata duma espécie de pardal de telhado mas muito maior e a quem chamam jagudis, passarões proibidos de apanhar (o que só soube depois de já ter aparafusado o pescoço a um), dada a profiláctica actividade que desenvolvem na limpeza de tudo o que é carne e não mexe.

Um Jagudi
Foto de © João Santiago com a devida vénia


No solo deslocam-se aos saltinhos e foi muito triste para mim não os poder caçar, dada que esta gulodice alimentar (passarinhos fritos) era e continua a ser, uma das minhas dietas preferidas.

Lá no K3 e com a pressão d'ar, muitos me passaram pelo estreito, caídos dos cajueiros que frequentavam e onde faziam os ninhos. Da cor do respectivo fruto, cabecinha verde e peitaça assaz gorda com'á dos piscos, que lá no meu burgo metropolitano apanhava com as costelas, debaixo das figueiras em Outubro, com os figuitos já meio-passados e usando o tradicional isco, as agúdias.

No quartel para que esquecêssemos o mau bocado passado, ofertaram-nos uma especial mistela, que eu já conhecia dos filmes de cow-boys mas que nunca houvera provado e tomei um trago, depois outro e outro.

Aquilo provoca habituação... ninguém me avisou e o resultado foi, que nunca mais e desde então até hoje e ainda porque foi também o xarope que me foi receitado pelo meu veterinário de família, "nunca mais e desde então até hoje..." consegui deixar o desbragado vício, sendo a dose diária feita em três tomas, ao almoço, ao jantar e... ao jantar.

Recentes pesquisas médicas, concluíram ser um produto natural, biológico e com propriedades vaso-dilatadoras e deve ser ministrado diariamente sem águas nem gelos. Responde pelo nome de Whisky, se o chamarem.

Claro que também nos homenagearam com um opíparo jantar: bifinhos de cebolada com batatinhas fritinhas e cortadinhas às rodelinhas, molhança à parte e feita de mostarda e cola e estando tão apetitoso... até repeti.

É que quando me enervo e mesmo quando não, fico com uma fomeca de todo o tamanho.

As bebidas estiveram consentâneas com a ocasião, a quantidade qb (qb significa: quanto mais melhor) e os digestivos também não estiveram mal, não senhor.

Veio depois o toque de silêncio e três horas depois fui-me à deita. Havia que descansar pois já tinha ordem de marcha para o regresso a Mansabá, pela matina, onde me aguardaria o TGV para Manhau.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10870: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (19): 20.º episódio: Memórias avulsas (1): Eu, turista em Mansabá

7 comentários:

Bispo1419 disse...

Meu caro Veríssimo:

Passado um belo período a "saborear os meus queridos netos" (é preciso aproveitar a suas férias), período este em que praticamente não vi o computador, regresso aqui ao blogue e fico logo bem disposto com este teu "discurso".
Se há quem não goste do teu estilo, eu não sou desses, eu gosto da maneira como rediges estas tuas memórias da Guiné.

Hoje recordas-me alguma da ambiência de Bissorã apesar da tua passagem rápida por esta terra onde cheguei pouco tempo depois da tua "visita", digamos que quase turística.

E essa passagem do rio traz-me logo duas lembranças:

Uma delas é parecida e refere-se ao que me sucedeu pela mesma altura, na área de Mansoa.
No meu caso o rio só exigiria natação para os mais pequenos (como eu). De braços esticados ao alto, a água chegava-me aos cotovelos. Aquilo era "saltinho para a frente/ inspirar no ar, afundar/expirar"!
Entretanto uma alminha ("almão"!) caridosa agarra-me pelos fundilhos, iça-me com toda a determinação, leva-me aí um metro à tona da água e depois atira-me com tal impulso que dou por mim afocinhado na lama da margem sem saber como!

A outra lembrança está relacionada com o personagem que "pescaste" com G3. Éramos amigos, ambos "especialistas" de Armas Pesadas e durante uns meses até fomos parceiros de cama, melhor dizendo para não haver confusão, até fomos parceiros de beliche, eu na cama de cima e ele na de baixo.
Na Guiné só nos encontrámos por uma vez, na messe de sargentos do quartel de Sta. Luzia. Ele, feliz, "chegado da guerra" para ingressar na radiodifusão local e eu, infeliz, à espera de "partir para a guerra".
Não quiseste nomear o náufrago que aprendeu a nadar de repente mas estou convicto de que ele não se importaria que o tivesses feito e, se fosse vivo, até daria uma grande gargalhada com aquela sua bela voz doce e pausada que muitos de nós recordarâo vinda da rádio e/ou da TV.
Meu caro Veríssimo, tenho a certeza de que nos referimos à mesma pessoa:
Raul Durão (fur. milº CCaç.1422).

Um bom Ano Novo!

Abraço
Manuel Joaquim
(fur. milº CCaç.1419)

Henrique Cerqueira disse...

Camaradas Veríssimo e Manuel Joaquim.
O nome do rio que passava em Bissorã era RIO ARMADA.Dividia Bissorã e Outra Banda que eram atravessados pela estrada que ligava Bissorã a Biambe.Existia uma ponte sobre esse rio feita em madeira.
Tambem lá estive.
Um abraço e Bom Ano
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Caro amigo Manuel Joaquim. Para além de camaradas, também somos muito ricos e refiro-me aos netos, Tenho dois já grandotes (19 e 21 anos) e aqui estou preocupado porque não estão comigo, agora porque e como é próprio foram passear com amigas. PARABÉNS e confessemo-nos: são o melhor que há na vida.
Quanto aos meus 40 meses, agradeço as palavras amigas, sei pouco escrever, mas cá me vou deliciando a ver a coisa publicada, com o beneplácito do editor Carlos Vinhal e de vós outros amigos que tão bem me aceitaram. Depois com comentários como o teu e d'alguns outros camaradas que também o vão fazendo.
No que se refere ao Raúl Durão, pois trata-se mesmo dele e voltámo-nos a encontrar a partir de 1968 em Lisboa, pois que vim para aqui trabalhar (trabalhar...não, o que eu queria dizer era : vim para o Banco) e estive 13 anos nos Restauradores. Almoçámos várias vezes eu e ele por ali no Ribamar, na Solmar e outros restaurantes que por ali campeiam.
São 22 horas do dia 31, portanto ainda vou a tempo de retribuir os teu votos de BOM ANO e oxala que possamos daqui a um ano dizer o mesmo.ABRA:OS
Verissimo Ferreira

Anónimo disse...

Camarada Henrique. Pois foi mesmo aí que se deu o acontecimento que descrevo graciosamente ao que penso, só que a coisa foi bem mais difícil. Éramos tropa acabada de chegar e a intenção ao mandarem-nos para ali era apenas para que nos treinássemos. A coisa deu para o torto, mas regressámos vivos embora esse dia nos tenha feito muitos cabelos brancos. Abraços, obrigado por me ires lendo, e BOM ANO.
De: Veríssimo Ferreira

paulo santiago disse...

Uma correcção:
A foto do Jagudi,não é da minha autoria,foi tirada,perto do Quirafo,pelo João Santiago,meu filho.

Alfredo Miranda disse...

Amigo Veríssimo gostei de ler o teu comentario mas este é direcionado ao Henrique Cerqueira como ele deu logo o nome do Rio Armada deve ter la estado e eu pergunto ao camarada se tem fotos do abrigo que se encontrava na outra banda o camarada tem facebook? gostaria de entrar em contacto consigo o meu email é alfredomiranda@sapo.pt abraço para o Veríssimo para o camarada Cerqueira bom 2013 para todos os combatentes

Anónimo disse...

Meu caro Veríssimo
Gostei imenso daquilo que li.
Lembro-me muito bem da cena de pancadaria entre Para-quedistas e Fuzileiro onde alguns do Exército aproveitaram para "molhar a sopa".Eu fiquei dois turnos de serviço porque devia sair à meia noite e só saí às 8 da manhã. Eu fazia serviço na PIDE em Bissau que ficava mesmo no centro da confusão.
Não sei se a memória me falha, mas pedia-te me confirmasses se o Capitão se Chamava Luís António Sampaio Tinoco Faria
Um grande Abraço
Artur Conceição