sábado, 5 de outubro de 2013

Guiné 63/74 – P12118: Estórias avulsas (69): Balas de raiva: o meu amigo Toy Sardinha, da CCAV 1747 (Bissum, 1967/69), gravemente ferido em 24/12/1967, é evacuado para o HMP... Os médicos não lhe encontram a bala... que virá a sair, anos mais tarde, da perna... contrária! (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.



Homenagem a um velho amigo, e camarada, que muito estimo



António Sardinha, ferido numa emboscada na região de Bula no dia 24 de dezembro de 1967



Balas de raiva



Não quero, tão-pouco pretendo, lançar achas para a fogueira cujas labaredas se predispõem a mal entendidos quando em causa residem opiniões egocêntricas que cruzam um espaço onde se debitam ideias variadas e que ostensivamente merecem o nosso devido respeito.



Sublinho que a minha já longa experiência de vida, na escrita sobretudo, não me permite dirimir convicções, ou certezas absolutas, mas um alinhamento de conjugações factuais que literalmente elevam o teor da discussão. É credível a opinião de todos os camaradas, pese embora a precisão faturada de quem emite pareceres de um determinado acontecimento vivido em grupo. 

A pluralidade de um destinado confronto com a guerrilha é por vezes digerido, e comentado, de formas diferentes. Porém, existe na narração verdades pelas quais passámos, sendo que a maneira de explanar o chamado “embrulhar” tem perniciosos tentáculos amplamente complicados.

As emoções sentidas por cada um de nós na guerra da Guiné, levam-nos a extravasar díspares sensações vividas no meio do conflito onde eramos, apenas, pedras de um puzzle colocados em espaços anárquicos e ao serviço de interesses alheios.

A temática por ora exposta tem como título balas de raiva numa Guiné deveras surpreendente. Creio que era peculiar conviver de perto com o aforismo popular sangue, suor e lágrimas.

Todos, ou quase todos, conhecemos os amargos de uma guerra que não deu descanso. A luta trivial nas frentes de combate foi extremamente dura. Duríssima, acrescento. Perdas de vidas, estropiados e feridos com gravidade foram mato.

Desse imenso rol de camaradas que ainda hoje se deparam com problemas herdados da guerra na Guiné, trago à estampa o meu velho amigo António Manuel Moisão Sardinha, natural de Beja, que embarcou para aquele território em julho de 1967, sendo que seis meses depois, numa emboscada sofrida na zona de Bula, colocou fim à sua comissão.

O meu amigo e camarada Toy Sardinha, como é habitualmente conhecido em Beja, pertencia à CCAV 1747, independente, e que ficou instalada no aquartelamento de Bissum.

No dia 24 de dezembro de 1967, vésperas de Natal, o pelotão onde seguia caiu numa emboscada, sendo que o saldo final se cifrou num morto e quatro feridos. O morto, segundo o Toy, tinha como sobrenome de Silva.

Sendo o seu estado preocupante, o nosso antigo camarada foi evacuado para o Hospital de Bissau, onde se manteve dois meses, e transferido para o Hospital Militar de Lisboa. Foi operado naquela unidade hospitalar e a sua recuperação estendeu-se até ao mês de dezembro de 1969.

O nosso camarada é um homem que jamais escondeu a sua postura física. Ela é visível. A perna esquerda ficou mais curta. Ainda assim fez, e faz, uma vida absolutamente normal. Vive no seu recanto familiar com a sua eterna companheira Fernanda. Trabalhou na antiga Administração Regional de Saúde em Beja. Está aposentado. Mantém uma disposição ótima. É alegre. Os seus apartes desabam, normalmente, para descomunais sorrisos. Tem sempre uma anedota na ponta da língua. 

O Toy é e será um dos muitos milhares de deficientes das Forças Armadas Portuguesas. Assume. Um selo herdado de uma emboscada sofrida no malfadado dia 24/12/1967, lá para as bandas de Bula

Hoje, o nosso camarada não se refugia na herança que a vida, enquanto jovem, o carimbou. Ironizando, como é seu hábito, assegura: “Na altura da operação a equipa médica não conseguiu encontrar a bala alojada na perna, mas passados muitos anos a magana acabaria por sair pela perna contrária sem que nada o fizesse prever. Coisas do destino”, diz com um sorriso nos lábios.

Expressa o povo, e com razão, que o nosso corpo tem por hábito expulsar matérias estranhas e a bala de raiva que dilacerou as entranhas do nosso camarada, finalmente apareceu. 

Força, Toy! 




Junto ao rio


Com outros camaradas em Bissum


O segundo da fila


No Hospital Militar, em Lisboa

Com Rosa Santos, antigo árbitro de futebol internacional, amigo de infância e que foi ferido em Angola 
Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 


Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

___________
Nota de M.R.:



Vd. último poste desta série em:


2 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12105: Estórias avulsas (68): Do meu Álbum de Fotos sobre Galomaro 3 (José Ribeiro)

5 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro Zé:

São palavras sábias, avisadas, as tuas,as que leio na introdução. Quem, como tu, tem uma vida de escrita jornalística, sabe que a palavra é como o fogo: pode incendiar o capim...

Mas este não é um blogue de jornalistas, feito por jornalistas, com critérios jornalísticos... É inevitável que, a par do relato dos factos, venha sempre ao de cima a "ganga das emoções"... Afinal, fomos, quase todos combatentes, e de carne e osso...

Dito isto, às cinco da manhã, venho agradecer-te a história que nos contas hoje, dando voz a um camarada, teu amigo, de Beja, que de outro modo não mais conheceríamos se não foras tu a pôr, em letra de forma, o episódio que ditou o seu calvário, a emboscada de 24/12/1967...

Curiosamente, faltam-aqui histórias passadas com a malta da arma de cavalaria... Da CCAV 1747, por exemplo só tínhamos até agora uma referência, da autoria de um homem da artilharia... O João Martins, da BAC1, passou por lá, em Bissum, nessa altura, e confirma o teu relato. Cito:

(...) "Chegámos a Bissum a 21 de Dezembro [de 1967], portanto, na semana que precede o Natal, pelo que, como de costume, e talvez para esquecer as saudades das famílias que nessa quadra ainda são mais intensas, iniciámos a operação “Bolo Rei”, a que se seguiu a operação “Cavalo Orgulhoso”.

"Tive uma adaptação particularmente difícil, porquanto logo nos meus primeiros dias tivemos feridos e mortos, e, na véspera de Natal, de forma imprópria de gente civilizada, houve um elemento considerado afecto ao inimigo que foi muito, mas muito maltratado, pelo que fiquei a saber da selvajaria de que também éramos capazes. Foi um dos piores locais da Guiné por onde passei." (...)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2012/05/guine-6374-p9844-memorias-da-minha.html

Luís Graça disse...

Zè:

Já que estás com a mão na massa, pergunta ao teu amigo Toy Sardonha se ele ainda se lembra deste episódio, evocado pelo João Martins... Pode ter sido antes da operação em que o Toy foi ferido, ou pode ter sido depois... O que é que se terá passado, na véspera de Natal, com esse tal elemento da ppopulção "considerado afeto ao inimigo" e que terá sido maltratado, "muito maltratado", pela NT ?

Já agora, apadrinha a entrada do teu amigo e nosso camarada para a nossa Tabanca Grande. Ele já nos contou uma história (e que história!) e mandou fotos. Falta uma foto atual...

José Botelho Colaço disse...

A bala sair por a outra perna. Relembro que quando estive no Cachil acontecia que por vezes não conseguia-mos trazer as vacas vivas para o quartel e a solução para que ela não fugisse abate-la a tiro de G3,era impressionante o circuito, autentico labirinto que a bala fazia dentro no corpo do animal, conforme encontrava osso mudava de direcção até se imobilizar.
José Colaço C caç 557 1963/65 Cachil, Bissau, Bafatá.

José Botelho Colaço disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
MANUEL MAIA disse...

CARO ZÉ SAÚDE,


TAMBÉM ESTIVE EM BISSUM EMBORA SÓ EM72...

ESTÁS BEM DE SAÚDE.
ABRAÇO