Trigésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 14 de Setembro de 2015.
...voltaremos a encontrar-nos, talvez no além!
Subimos as escadas de ferro, em zig-zag, eram quatro andares. Chegámos ao telhado, andámos, com as mãos sobre os olhos, tropeçando em algumas peças de equipamento que por lá havia, olhávamos o horizonte para os lados de Nova Iorque. Um dos mais mortíferos ataques de que há memória atingiu o coração da capital do Mundo, não era um cenário de pôr do sol, pintado pelo pincel de um artista, era um cenário horrível, escuro, onde se definiam as nuvens de um fumo negro, vindo dum grande telhado de fogo que cobria a cidade, que se espalhava sobre a terra, lembrando-nos que estávamos debaixo de um fogo maldito. Tal cenário de guerra, onde havia milhares, talvez milhões de pessoas, pessoas inocentes. Os pássaros fugiam das árvores, voavam em qualquer direcção, talvez para sul, sem destino, tal com nós naquele preciso momento, também queríamos fugir, mas não sabíamos para onde.
Setembro, outono, o verão já tinha passado, era tempo das colheitas, as horas marcadas nos sinos da igreja de Águeda entoavam pelo vale do rio Águeda, a época da escola começava, a nossa sala de aula, no segundo andar da Escola do Adro, com duas janelas pequenas, mas que aos nossos olhos nos pareciam grandes, mostravam-nos um pouco desse vale. Um certo dia, para os lados da aldeia da Borralha, que fica ao fundo do vale
do rio Águeda, houve um fogo numa habitação, ouviu-se o som dos sinos da igreja a chamar os bombeiros, logo seguido pelo som típico da sirene do carro dos soldados da paz, esse cenário ficou gravado na nossa memória de criança, que foi reanimado naquele angustioso momento no telhado do quarto andar, daquela multinacional em Nova Jersey. Ali sentimos a presença de alguns companheiros de classe, descalços, que tal como nós, usavam calções de ganga azul, já coçados, com as duas “alças” apertadas no botão da frente do lado esquerdo, pois o do lado direito tinha sido arrancado para “jogar ao botão”, cheguei mesmo a ver aquele ar de pessoa rude, que era o nosso professor Silvério.
É Setembro, passados 14 anos, lembramos, com dor e emoção, os ataques que o solo americano estava a sofrer naquele momento, onde o nosso companheiro de trabalho, o “Mississippi”, nos olhou e abraçou, vendo-nos limpar algumas lágrimas, lágrimas de medo, e nos diz com os seus olhos bondosos:
- Tony, the war begins in the world today, everything will be different from now on!
Tomando a liberdade de traduzir, ele dizia mais ou menos isto:
- Tony, a guerra no mundo começa hoje, vai ser tudo diferente a partir de agora!
Os seus bisavós eram escravos, tinham vindo da costa de África, ele sabia do que falava.
No bairro de Staten Island, do lado sul do rio Hudson, logo à entrada da barra, em frente à ilha de Manhattan, no Estado de Nova Iorque, também existe um pequeno museu, com objectos trazidos pelos soldados da paz, que por aquela altura se esforçaram no resgate, trabalhando nos escombros das torres gémeas. Há algum tempo, numa nossa ida ao norte, foi por aqui que começámos uma visita ao “Ground Zero”, a zona de impacto dos aviões contra o antigo World Trade Center, naquilo que eram os escombros, hoje está lá um Memorial, onde entre outras coisas, existem dois lagos com quedas de água que ocupam o local onde se erguiam as antigas torres gémeas, onde se gravou na pedra o nome de todas as vítimas mortais do atentado, pois só lembrando o passado se constrói o futuro.
Os habitantes de Nova Iorque não simpatizam com os grupos que as agências de viajem para lá mandam, com roupas coloridas, numa algazarra própria de pessoas em passeio, alguns habitantes da cidade estão lá, recomendam silêncio e respeito, as pessoas ficam silenciosas, descobrem-se, existe um silêncio só quebrado pelo pequeno sussurro do cair das quedas de água, não é mais um qualquer local, hoje é um local de peregrinação, foi palco de uma grande tragédia, a que o Mundo assistiu quase em directo pelos mais modernos meios de comunicação. Entre outras coisas, existe uma
estrutura subterrânea, com um Museu, onde o ataque que os USA sofreram no seu território, está retratado, com um completo conjunto das mais variadas peças, restos de vestuário, partes de ferro, cimento, vidro, fotos, objectos pessoais das vítimas, tudo relacionado com aquele ataque, que nos fazem meditar, assim como algumas histórias sobre as vidas dos homens e das mulheres inocentes que ali perderam a vida.
Dizem que foi um milagre e hoje também é um local de peregrinação, é na avenida Broadway, onde fica a Igreja de São Paulo, pois apesar de se localizar próxima do lugar onde os aviões embateram nas torres, foi um dos edifícios da zona que permaneceu intacto, guardando-se no seu interior muitas recordações daquele dia e lembram-se as vítimas, assim como na rua Liberty, onde se situa o Quartel dos Bombeiros N.º 10, engolido pelos destroços das torres gémeas, onde alguns bombeiros perderam a vida, hoje, ali existe um mural de homenagem aos soldados da paz, que por aqui são muito respeitados, pois é frequente assistir a manifestação de carinho para com estes homens e mulheres que foram, talvez, umas das vítimas mais martirizadas daquele traiçoeiro ataque.
Sabemos que as flores não podem proferir nenhum som, não se pode ouvir uma violeta sussurrando, uma madressilva murmurando, isso seria um milagre, mas é quase um milagre o aspecto, passados 14 anos dos atentados de 11 de Setembro de 2001, que tiraram a vida a milhares de pessoas, a cidade voltou a viver, às vezes
parece-nos uma aldeia muito grande, as pessoas são mais humanas, neste momento, na área das antigas torres gémeas em Nova Iorque, quase tudo nos indica que a lembrança continua lá, numa simples coluna de ferro, um simples bocado de granito, fazendo-nos lembrar a dor e o sentimento dos mortos inocentes, mas o aspeto do lugar que agora chamamos “Ground Zero”, é bastante diferente, os novos edifícios dão-nos esperança, passámos a mão por cima de alguns nomes gravados nas pedras de granito que compõem as paredes dos lagos, lembrando os irmãos inocentes que lá morreram, ficou quase como uma promessa de que nunca se deve dizer adeus, continuamos abraçados, pela mão, pelo braço, juntos, pulando através de tudo, montanhas, vales, rios, oceanos ou continentes, com a certeza de que nos voltaremos a encontrar, talvez num qualquer Setembro, talvez no além.
Tony Borie, Setembro de 2015.
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15108: Libertando-me (Tony Borié) (34): Oh pá, empresta-me aí três pesos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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