terça-feira, 25 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16637: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): Abibe Tal tinha um coração grande, o dos sentimentos e dos afectos



1. Mais uma memória, enviada em 17 de Outubro de 2016, pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68).


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

8 - Abibe Tal


O Abibe era muito feio. Negro como um tição. A única coisa que no seu corpo branqueava eram os dentes, inseridos à distância da boca. Mas tinha um coração grande, muito maior que a feiura. Não o coração de carne que lhe batia no peito, mas o irmão gémeo, o coração dos sentimentos e dos afectos.

O Abibe pertencia à milícia e era nosso empregado, ajudando na cozinha e na limpeza. Fez-se por sua livre vontade meu impedido, afeiçoado e amigo. Limpava o quarto, fazia a cama, conseguia arranjar uns mangos e umas bananas e tratava de tudo o que eu lhe pedia.

A densidade de incidentes bélicos no pequeno território da Guiné era muito maior do que nas outras colónias. A terrível fama da sua guerra alastrou como fogo. Ser destacado para a Guiné constituía uma condenação ao apodrecimento e ao risco de regressar encaixotado. Os aquartelamentos eram rodeados de arame farpado e troncos de palmeira, com abrigos subterrâneos, frequentemente flagelados. Eu próprio ajudei a cavar trincheiras, ligando os nossos quartos às casernas e a uma enfermaria subterrânea, onde guardava soros e medicamentos de urgência, indispensáveis em situações de ataque. Em tais condições de vida, era grande o valor de um companheiro e amigo como o Abibe Tal.

Mas não era só a guerra o mal que se temia. As doenças constituíam outro flagelo que a ninguém poupava. Nem ao médico. Por isso adoeci com paludismo. Mais do que uma vez. Para quem não sabe, contrair o paludismo ou malária é uma coisa terrível. A doença mais espalhada no mundo, uma das mais frequentes nos trópicos, e terrivelmente penosa nos acessos agudos. Mais de 250 milhões de pessoas afectadas em todo o planeta. De características clínicas particularmente graves nas regiões tropicais. O surto febril é indescritível. Arrepio súbito e violento, grandes picos de febre, mal-estar do outro mundo, astenia intensa, machadadas na cabeça, palpitações, contracções, sufocação, sede de toda a água, fenómenos sensoriais indefiníveis, corpo derretido em suores por dentro e por fora. O tremor generalizado mais parece uma terramoto com epicentro no peito. O vómito não mede distâncias.

Neste estado o Abibe me encontrou.
- Ché dotô, tu tá memo lixado, mim ter que dar mezinha, mim ter que ser dotô de dotô!
- Meu caro Abibe, preciso que me descubras sem falta uma galinha, custe o que custar, não consigo comer nada, e uma canja sabia de mais.
- Mim fala no Seco, dotô manga de favor a Seco, dotô sempre trata filho de ele, mulher de ele, dotô sempre dá mezinha todo família, ele tem que arranja galinha.

Pouco tempo depois o Abibe entra no quarto com a cara do avesso. Os dentes pareciam mais salientes e uns laivos de espuma apontavam os cantos da boca. Os olhos faiscavam de raiva.
- Dotô, aquele fideputa diz ca tem galinha, manga de ingrato, mim sabe que ele tem galinha, ele escunde galinha mas eu mato ele.
- Deixa lá Abibe, tudo se há-de arranjar.

A noite caíra, mansa e quente, noite da Guiné. O meu corpo sossegara, trégua das sezões e da acção dos remédios. Novas réplicas do terramoto seriam de esperar, mas o que contava era o momento. Estava eu ruminando a fraqueza, quando entra o Abibe, sorridente, com todos os dentes de fora, segurando entre as mãos um prato de canja fumegante.
- Dotô aqui tem canja, toma ela.
- Onde encontraste a galinha?
- Munto fácil, dotô, mim espera noite, Seco vai na reza, mim faz emboscada e fana dois galinha, pa hoje, manhã e outro dia.

O Abibe era solteiro e mais tarde ou mais cedo haveria de casar. Por isso precisava de quinhentos pesos e duas vacas, o preço da noiva. Eu disse que lhe daria tantos quinhentos pesos quantas as mulheres que ele comprasse, mas vacas é que não tinha.
Quando me vim embora o Abibe continuava solteiro. Choramos os dois num abraço eterno de despedida onde cabia o mundo. Sei que ele faria feliz quem dele se achegasse.

Escreveu-me muitos anos depois, dizendo que tinha duas mulheres e oito filhos. Soube há pouco tempo que estava quase cego.

Se fosse mais perto levava-lhe um prato de canja.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk

6 comentários:

Anónimo disse...

Magnifico como sempre!

"... Choramos os dois num abraço eterno de despedida onde cabia o mundo...."

".. Se fosse mais perto levava-lhe um prato de canja...."

Obrigado mais uma vez por estas filigramas que nos vai contando.

"Gratidão é o que transforma dias comuns em memórias"

Alberto Branquinho disse...



Isto é assim como uma "tautologia": para que um padre capelão possa cair numa emboscada ou sofrer um ataque a um quartel, são necessárias TRÊS COISAS:
1º. - Haver capelão;
2º. - Haver emboscada e o capelão estar na área da emboscada;
3º. - Haver ataque a um quartel e o capelão estar nesse quartel.

Se na área de um dado capelão (o teu/vosso?) não havia emboscadas ou ataques ao quartel, esse capelão não é a "medida de todas as coisas".

Mas dou-te uma receita: Pergunta ao Horácio Fernandes (que, depois da Guiné, abandonou a vida eclesiástica - vide "A construção e a desconstrução de um padre"), que talvez ele (se tiver pachorra para isso) te possa contar alguma coisa.
Abraço
Alberto Branquinho

Juvenal Amado disse...

Dr
Todos deixamos alguma coisa lá, mas trouxemos uma coisa muito importante que foi a memória e as suas são profundas e claras.
Continuo a ler a gostar e a esperar sempre por mais

Um abraço

Valdemar Silva disse...

Extraordinária descrição do estar com paludismo.
Excelente texto, Sô Dotô.
Já estamos à espera de mais.

...atenção Estocolmo, em 2017, vai ser canja.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro Adão Cruz:

As histórias vão "jorrando", à medida da memória e do talento, que são notáveis. No fim, vamos ter por certo um livrinho, em papel, com sessão de lançamento a agendar numa ou mais das nossas tabancas, daqui a um ano ... Ainda não nos conhecemos, pessoalmente, eu e o camarada Adão Cruz, mas haveremos de nos encontrar. Nada como o conhecimento pessoal, que começa aqui no blogue. O Adão Cruz já ganhou o nosso apreço, admiração, amizade e camaradagem. E as suas histórias valem ouro.

Como todos nós também apanhei, forte e feio, o paludismo. Ai de quem andasse no mato, dias e dias, noites e noites, e sobretudo na estação das chuvas... Não me lembro de ter comido canja de galinha, mas conheci na pele os sintomas da maldita doença, aqui tão bem descritos:

(...) "Mas não era só a guerra o mal que se temia. As doenças constituíam outro flagelo que a ninguém poupava. Nem ao médico. Por isso adoeci com paludismo. Mais do que uma vez. Para quem não sabe, contrair o paludismo ou malária é uma coisa terrível. A doença mais espalhada no mundo, uma das mais frequentes nos trópicos, e terrivelmente penosa nos acessos agudos. Mais de 250 milhões de pessoas afectadas em todo o planeta. De características clínicas particularmente graves nas regiões tropicais. O surto febril é indescritível. Arrepio súbito e violento, grandes picos de febre, mal-estar do outro mundo, astenia intensa, machadadas na cabeça, palpitações, contracções, sufocação, sede de toda a água, fenómenos sensoriais indefiníveis, corpo derretido em suores por dentro e por fora. O tremor generalizado mais parece uma terramoto com epicentro no peito. O vómito não mede distâncias". (...)

Fantástica a lição de humanidade, amizade e solidariedade que nos dão estes dois grandes seres humanos, o tuga, o jovem médico militar Adão Cruz, e o negro Abibe Tal... São histórias que nos honram, a todos nós, amigos e camaradas da Guiné, que fazemos e lemos este blogue.

Cherno Balde disse...

Caros amigos,

O Adao Cruz que eh medico, bom observador e excelente narrador ja nos fez a descricao da terrivel doenca que eh o Paludismo. Nao obstante, deve ter esquecido o pior que eh o delirio.

No ano transacto, nesta mesma altura, tive o segundo ataque de paludismo (normalmente tenho mais de dois por ano, para ser mais sincero, acho que tenho um paludismo interior e cronico, que de vez em quando vai saindo para fora em forma de ataque paludico).

Uma noite, sentindo-se completamente paralizado e sem capacidade de mover qualquer dos meus membros (superiores e inferiores), chamei os meus tres filhos maiores (poupei o mais novo dos transtornos e do expectaculo de ver o pai morrer) e disse-lhes que tinha a certeza que ia morrer e pedi-lhes que me acompanhassem ao Hospital principal (HNSM), ao mais velho recomendei que se por acaso nao pudesse guiar ate ao hospital, ele que o fizesse em meu lugar.

No hospital a medica escreveu um bilhetinho e pediu-me para fazer o teste de malaria, fiquei irritadissimo e nao colaborei, pois eu tinha a certeza de que estava a morrer de tensao arterial e ela manda-me fazer um teste de malaria, estupidez dela.

Depois fui obrigado a cumprir a ordem da medica e o teste saiu positivo. Comprei os medicamentos e, em menos de dois dias, fiquei bom, de corpo e de espirito, era um simples mas forte ataque de paludismo como nunca tinha tido antes.

Com abraco amigo,

Cherno Balde