sábado, 13 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19975: Os nossos seres, saberes e lazeres (339): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XI: A grande muralha, Pequim, 2 de julho de 1980


China > Jinshanling > A Grande Muralha da China, património mundial da humanidade. Foto de Severin.stalder (2013). Cortesia de Wikipedia.



 
1. Mensagem de António Graça de Abreu:

Data: quinta, 27/06/2019 à(s) 21:37

Assunto: Meu caro Luís, para eventual publicação no blogue. Não tem a ver com a nossa Guiné, mas será interessante. Abraço.


Mais um excerto do "diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983", do nosso camarada do António [José] Graça de Abreu. (*)

[ Nota biográfica: (i) viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; (ii) foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras; (iii) na altura, ainda era, segundo julgamos saber, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduíno Gomes), alegadamente o único reconhecido pela República Popular da China; (iv) ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74); (v)membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 240 referências; (vi) compulsivo viajante, tem "morança" em Cascais; (vii) é um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo; (viii) nasceu no Porto em 1947; (ix) é  casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro.]



Pequim, 2 de Julho de 1980 (**)



"Do parapeito, meio desmoronado da Grande Muralha, arrancámos um pesado tijolo. Carregámos com ele até Badaling e conservá-lo-emos como a mais preciosa relíquia de toda a nossa peregrinação pelo mundo."[1]

Estas palavras foram escritas em Outubro de 1887 pelo Conde de Arnoso, um dos raríssimos portugueses a viajar pela China na segunda metade do séc. XIX. De regresso a Lisboa, via Paris, Bernardo Pindela, o conde de Arnoso trouxe uma cabaia chinesa que ofereceu ao seu amigo Eça de Queirós, e um tijolo da Muralha da China que levou para sua casa.

Em Maio de 1980, o governo chinês fez publicar um decreto-lei onde se diz: "A remoção de tijolos, terra ou pedras da Grande Muralha, sob que pretexto for, está sujeita a pesada multa ou pena de prisão."

Quase cem anos depois da história do tijolo do nosso conde de Arnoso, a China parece apostada em não deixar que se cometam mais atentados contra o seu património cultural. Recentemente, li na imprensa chinesa uma acusação contra uma determinada unidade militar que, estacionada junto da Grande Muralha, não hesitou e foi lá buscar pedra, já cortada, para construir o seu quartel. 


Ao longo dos séculos, esta fabulosa construção que se estende por seis mil quilómetros, tem visto alguns dos seus sectores serem esventrados e destruídos. Todavia, não tem sido apenas a Muralha a sofrer as consequências da insensastez ds homens. Ruínas arqueológicas, templos, pagodes, palácios antiquíssimos foram deixados muitas vezes ao abandono ou transformados em arrecadações de cereais, mesmo em casas de habitação.

A China tem 45 séculos de história ininterrupta que se estende por 24 dinastias, o património arquitectónico e cultural é extraordinário, mas a incúria e a ignorância chinesa quanto à sua própria História são também muito grandes. Refiro-me sobretudo aos camponeses e a gente do campo, são 800 milhões de almas. Um voluntarismo e utilitarismo extremo na vida de todos os dias tem levado, muitas vezes, os chineses a ignorarem os valores do seu passado.

No início dos anos sessenta, a muralha que rodeava a cidade de Pequim foi literalmente arrasada, em nome do progresso, da abertura de novas avenidas e da construção da rede do metropolitano. Hoje são os próprios chineses a reconhecer que se foi longe demais ao acabar-se com a muralha construída no início do século XV, que dava à capital da China um cunho de cidade medieval, raríssima no mundo. 


Na mesma altura, no plano geral de alargamento das ruas de Pequim, foi decidido cortar a meio a "cidade redonda", no parque Beihai. Trata-se de um fabuloso conjunto arquitectónico, com pequenos pavilhões e pagodes, uma ponte em mármore entre dois belos lagos, tudo isto construído a partir do século XIII. Zhou Enlai, que era primeiro-ministro, soube do sacrilégio que ia ser cometido e opõs-se terminantemente. A "cidade redonda" salvou-se e a nova avenida acabou por circundá-la.

Durante a Revolução Cultural, o ímpeto revolucionário dos guardas vermelhos, em nome da "destruição de um passado feudal", não poupou templos, igrejas, bibliotecas. Muitas vezes foi necessária a intervenção do exército para se impedir o vandalismo desenfreado. Hoje, restaura-se o antiquíssimo património construído, procuram-se cicatrizar as feridas do passado, embora algumas já não tenham cura.

Os ocidentais também são responsáveis por muita da delapidação do património cultural chinês, antes de 1949. Em Guilin, província de Guangxi, vi, há dois anos atrás, várias grutas antigas com centenas e centenas de estátuas de budas esculpidas na pedra. De muitas delas, restava apenas o lugar, tinham sido cuidadosamente cortadas da pedra, embaladas e transportadas para os Estados Unidos da América. 


Coisas deste género, aconteceram no passado um pouco por toda a China. Os museus de Nova Iorque, Paris ou Londres, ou as colecções particulares, estão cheias de valiosíssimas peças chinesas.

O que vale é o facto do património arquitectónico e artístico da China ser quase inesgotável, ser capaz de resistir a muitos dos atentados, antigos e recentes. De qualquer modo, o nosso Conde de Arnoso, se pudesse voltar hoje à China, já não regressaria certamente a Lisboa com um tijolo da Grande Muralha.[2] 

___________

[1] Conde de Arnoso, Jornadas pelo Mundo, Porto, Magalhães e Moniz Editores, 1895, pag.366


[2] No "Diário de Notícias", de 13.07.1980

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19932: Os nossos seres, saberes e lazeres (335): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte X: Pequim, 5 de dezembro de 1977, visita a uma unidade militar

(**) Último poste da série >  8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19957: Os nossos seres, saberes e lazeres (338): em louvor da tradicional batatada de peixe seco da Marquiteira, Lourinhã (Luís Graça)

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito grato ao Amigo,Camarada,Poeta e Sinologista A.G.Abreu por mais um muito intressante,por factual, texto.
Näo menos quanto ao tijolo da grande muralha da China.
Finalmente as origens distantes da täo cultural ”Dä-lhe c’a pedra pa!” (julgada por este humilde como originada na distante Lusitänia aquando das lutas contra os invasores romanos) fica devidamente esclarecida.
Diz-se ocupar hoje—o tijolo chines—lugar destacado na colecäo historica dos descendentes do Sr.Conde de Arnoso (1855-1911).

Ab. do J.Belo

Valdemar Silva disse...

A construção de muros/muralhas, com o instinto de defesa, atravessa todos os tempos da civilização. Uns mais pequenos defendiam os castros no cimo dos montes outros, de maior dimensão, defendiam toda uma região da incursão de invasores.

Mas, hoje muros pra quê? Passam as mercadorias e não passam as pessoas.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...


2ª versão do meu comentário, originalmenet muito "gralhado":

Lembro-me de ter lido, há muitos anos, e tenho-o na minha biblioteca, o livro do Jaime Roseira, meu amigo, "Eu subi a grande muralha", edição do autor, 1988, 237 pp.

O Jaime era nessa altura um compulsivo viajante, e a China abria-se "lentamente" à curiosidade do mundo, depois do "pesadelo" que foi o maoismo e a "revolução cultural"... Lembro-me do Jaime ter escrito, de rajada, esse "guia romanceado" da China, três meses depois de regressar da sua grande viagem ao colosso asiático...

O Jaime, felizmente ainda vivo, foi um dos pioneiros, entre nós, da "literatura de viagens", agora tão em moda. É justo recordar aqui o seu nome. Era uma época difícil, para todos nós, portugueses, em que viajar era um luxo... O FMI (e o Banco de Portugal) é que mandava nas nossas vidas e carteiras...

Todos os povos tem os seus "desvarios"... A "grande muralha" é qualquer coisa de megalómano, que me aflige, que me esmaga, que me repele... Confesso que nunca teria vontade de a visitar, se fosse à China... Mas não é muito diferente de outros monumentos como as pirâmides do Egito, criados por milhões de homens anónimos, debaixo de chicote, para satisfazer os caprichos dos deuses e dos seus criadores...

Um abraço para o Jaime e para o António Graça de Abreu, dois grandes portugueses e amigos. Luís