O luso-francês Antoine Ben Oliel, desta história, teve a sorte de ter escapado a esta cena final, sendo gravemente ferido, logo no início da batalha, em 13 ou 14 de março de 1954.
(Continuação)
− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.
− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?
− Stress, como nós dizemos aqui.
− Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…
− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.
− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.
O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia…
Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.
A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos...
IV (e última) Parte (Luís Graça) *
(Continuação)
− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.
− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?
− Stress, como nós dizemos aqui.
− Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…
− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.
− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.
O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia…
− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie...
− Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…
− Mas também sobrava para si, não ?!...
− Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!
− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.
− Era a minha sina!... Afinal, tive dois homens que me batiam.
Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era ciumento. Sugeri à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…
− Qu'est-ce que ça veut dire ?
Referi o facto de ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada… Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário.
Na minha opinião, a minha interlocutora nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.
− A minha mãe era uma santa – recorda ela.
− E o pai ?
− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.
− E a mãe, consentia ?!...
− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas.
Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela, como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.
− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!
Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….
E pormenorizava:
− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.
− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão ? – perguntei eu.
− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!
E acrescentava:
− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.
Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.
− A minha mãe era uma santa – recorda ela.
− E o pai ?
− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.
− E a mãe, consentia ?!...
− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas.
Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela, como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.
− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!
Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….
E pormenorizava:
− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.
− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão ? – perguntei eu.
− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!
E acrescentava:
− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.
Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.
−Os meus manos foram muito amigos dele!
Todavia, a Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.
− Jalousie, ciúmes! – achava ela.
O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o “Francês”. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine.
Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida, a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.
Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito comigo sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…
− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo para aquele gajo!
Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.
− Heuresement, felizmente! − exclamava.
Nunca soube nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de culpa "por não ter dado filhos ao Antoine". Talvez fosse “estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)
Em resumo, admito que ela terá tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu-me a entender que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.
Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…
Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não me escondeu, de resto, que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…
Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir de 1974... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!, com uma carreira artística como fadista em França!...
Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada.
Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...
− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.
Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património…
Foi ela, a Rosemarie, quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.
Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.
Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.
Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.
Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne. Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.
Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.
No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos, que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.
− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.
Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...
−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!
Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.
Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu. Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.
Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada. Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...
Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto...
Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.
Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.
Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.
Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne. Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.
Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.
No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos, que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.
− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.
Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...
−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!
Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.
Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu. Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.
Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada. Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...
Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto...
Sorriu quando lhe prometi esperar, "até aos seus cem anos", para então lhe publicar a sua "histoire de vie".
Estava determinado (e condenado) a respeitar a sua vontade: agora que ela partiu, ao quilómetro 82 da sua "estrada da vida" (aliás, mais 'picada' do que autoestrada...), deixo aqui a sua história. A sua "petite histoire"... Caberá aos leitores ajuizar se ela fica bem, ou não, na "galeria dos meus heróis".
© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:
Postes anteriores da série:
11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)
(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)
Postes anteriores da série:
11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)
(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.
Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)
16 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)
(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)
Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi, ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.
Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)
25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)
(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.
Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)
(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)
Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi, ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.
Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)
25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)
(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.
Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)
10 comentários:
Li "La Bataille de Dien Bien Phu", de Jules Roy (1962), edição de bolso de 1972, quando regressei da Guiné...
Foi seguramente o maior desastre militar francês, após a II Guerra Mundial. E marca o "toque de finados" do grandioso império colonial francês...
Na Guiné, em 6 de fevereiro de 1969, as tropas portugueses retiram de Madina do Boé. Na altura eu já estava mobilizado para a Guiné. Tinha ainda pouca informção sobre Madina do Boé e muito menos sobre Dien Bien Phu. Mas imaginava que Madina do Boé poderia ter sido a "nossa" Dien Bien Phu...Eu sei que não foi (ou não chegou a ser)...
Em todo o caso, havia algumas similitudes...dada a topografia da região do Boé... O aquartelamento ficava rodeado de colinas e, tal como em Dien Bien Phu, não possuia abrigos á prova do morteiro 120...
Mas o PAIGC não era o exército de toupeiras do Giap, nem tinha milhões de camponeses para mobilizar...
Hoje sabe-se que, face ao cerco de 55 dias ao "buraco" de Dien Bien Phu, os franceses chegaram seriamente a ponderar o uso de uma bomba atómica táctica!...
Que loucura pode atingir os dirigentes políticos e militares de um país, quando estão em causa questões de honra!...
... Claro que os americanos não aprenderam nada com os franceses e cairam no mesmo "vespeiro"... A "guerra do Vietname" foi mais do mesmo...
Uma batalha hoje totalmente esquecida...
Será que alguém a estudou na nossa Escola do Exército / Academia Militar ?...
Gandembel, Madina do Boé, Guidaje, Guileje, Gadamael, Copá... foram ou poderiam ter sido os nossos pequenos Dien Bien Phu no TO da Guiné...
Vejam aqui um interessante documento do arquivo da AP - Associated Press sobre o exército de toupeiras do general Giap. que falava impecavelmente francês, bacharel em filosofia e licenciado em direito (, informação que dizem que é controversa)...mas cuja grande escola vai ser a guerrilha no mato contra a ocupação japonesa. Em 1941, é um dos fumndadores da Liga Vietnamita para a Independência (acrónimo, Viet Minh).
https://www.youtube.com/watch?v=eg2CLcx_O_o
Eis o que a Wikipedia diz sobre o Jules Roy (que visitou Dien Bien Phu uns anos depois, para poder escrever "La Bataille de Dien Bien Phu", 1963):
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jules_Roy
Jules Roy
Nascimento 22 de outubro de 1907
Rovigo (actual Bougara), Argélia
Morte 15 de junho de 2000 (92 anos)
Vézelay, França
Nacionalidade França Francês
Ocupação Escritor e militar
Prémios Prémio Renaudot (1946)
Grande prémio de literatura da Academia francesa (1958)
Magnum opus: "La Vallée heureuse"
Jules Roy (Rovigo, actual Bougara, Argélia, 22 de Outubro de 1907 – Vézelay, 15 de Junho de 2000) foi um escritor e militar francês.
"Pied-noir", estudou no seminário, foi oficial nos Atiradores Argelinos, no Norte de África, e passou à Força Aérea, em França, antes da guerra. Depois do desembarque dos Aliados no Norte de África, parte para a Grã-Bretanha onde combate no Exército francês de Libertação, como comandante de bordo no grupo de bombardeamento Guyenne.
Em 1946 é laureado com o Prémio Renaudot, pela sua obra "La Vallée heureuse". Em 1953 rompe com o exército, em protesto contra a Guerra da Indochina, e vira-se então totalmente para a literatura.
Em 1978, Jules Roy instala-se em Vézelay, onde passará os últimos vinte anos da sua vida a escrever. Depois da sua morte, a sua casa tornou-se num centro literário onde se organizam saraus literários e exposições.
Eis o "Écolde Guerre de Paris" (onde se formams os oficiais superiores das Forças Armadas Francesas), diz sobre este livro, clássico, mas polémico, do Jules Roy. "La bataille de Dien Bien Phu":
Tradução rápida de LG:
Diên Biên Phu ficará na memória da França e de seus soldados como uma batalha muito particular. Mais do que muitas outras, ela está imbuída de um heroísmo e romantismo que marcou toda uma geração. Mas é também portadora de lições estratégicas, operacionais e táticas que os próprios atores, e uma série de críticos, autorizados ou não, se esforçaram por compreender e comentar ... Honestas ou não, lúcidas ou partidárias, as lições da época não perderam nada de sua importância para os soldados de hoje e de amanhã. Para aqueles que nos governam também ...
Diên Biên Phu, de Jules Roy, livro "engagé", comprometido e, portanto, polémico, que permanece uma referência formidável e propícia à reflexão, é a primeira obra de uma nova coleção, denominada "Cidadela", que oferece a reedição de textos transportados para a posteridade ou caídos no esquecimento, elogiados ou injustamente ostracizados, que, no entanto, ocupam um lugar na literatura militar, suas perspectivas ou suas linhas de fuga.
https://ecoledeguerre.paris/livres/la-bataille-de-dien-bien-phu/
???!!!??? ???
Provavelmente tentando responder ao desafio do autor, o leitor "anónimo" respondeu em linguagem de código: ???!!!??? ???... Sendo mais os pontos de interrogação do que exclamação, e tentando "descodificar" a mensagem, infiro que a Rosemarie não merece figurar em "A galeria dos meus heróis"...Confesso que fico triste, não por mim mas por ela...ou pela sua memória!
Caro leitor, para a próxima ponha o seu nome debaixo do seu comentário... Afinal,não custa nada. Luís Graça
Ser viuva de um ex-legionário, para mais de um legionário que sobreviveu a Dien Bien Phu, tem que ser heroína perante qualquer pessoa.
Os legionários da legião estrangeira francesa têm (ou tinham) muito pouco do comum dos mortais.
Conheci na minha actividade profissional um ex-legionário que estava preparado para ir para a Indochina, e foi dispensado com o desastre de DIen Bien Phu.
O que era ele, o que ele contava (pouco se espandia)do que era aquilo, era tão desumano que essa mulher Rosemarie enviuvar desse tal legionário é de ser mesmo uma heroina, maior que ele.
Esse meu ex-colega era inteligentíssimo, de uma capacidade de trabalho excepcional, açoreano, em Angola, suportava trabalhar horas e horas, sem descansar, sem comer, e se fosse fim de semana não descansava porque ia para ambientes duvidosos onde bebia e «partia a loiça toda» porque tinha que arranjar uma grande zaragata com alguem com coragem para lutar com ele.
Tinha família, mas não fazia vida familiar, e só era suportado profissionalmente com mil e um pedidos de todos os colegas,perante os superiores.
Tive também um colega na Guiné que era pai de um legionário, vivia num pesadelo permanente com isso, ele e toda a família.
Luís, tens aí uma grande heroina, mas tantas heroinas que foram a assalto para a França! Mas só se fala nos refratários.
António, eu gosto de dizer, não sem uma ponta de humor negro, que "os heróis são mais do que homens, menos do que deuses"... Na hierarquia dos seres superiores, na mitologia grega, havia os deuses e os heróis, ou semideuses...como o Homero. Precisamos de deuses e de heróis, porque é trágica a nossa condição humana...
Nunca conheci nenhum legionário. Mas ouvi pelo menos falar de dois. Este Antoine Ben Oliel, e um outro, sul-americano, que foi pai de um filho de uma aluna minha, de doutoramento. Neste caso, conheceram-se algures em Espanha (, por razões óbvias, não vou dar muitos pormenores) e tiveram um filho, que ficou "apátrida" durante anos, até ele ir para a escola... Lembro-me da alegria da minha aluna, portuguesa, quando conseguiu finalmente obter o cartão de cidadão português para o filho... Do pai perdera o rasto h+a muito... Julgo até que a sua alegria foi maior do que quando obteve o grau académico de doutora, depois de meia dúzia de anos de calvário...
Há vidas duras, estas duas mulheres tiveram vidas duras...Não sei se foram ou são heroínas, foram ou são isso, sim, mulheres de coragem.
Tens razão, meu velho camarada, estas mulheres (, para não falar dos homens que dormiram com elas na cama,..) também têm direito a ter história... São vidas que tu, eu e tantos de nós conhecemos...
Fico-te grato pelo teu comentário que, mais uma vez, é um "valor acrescentado" a esta discreta "galeria dos meus heróis"...
Estou agora a reler o livro de Jules Roy sobre a batalha de Dien Bien Phu: quase dois terços das tropas francesas eramm constituídos por legionários, boa parte deles, eram homens sem pátria, sem futuro: alemães por exemplo, sobreviventes da II Guerra Mundial...Cantaram canções de Natal na sua língua, na noite de 24 para 25 de dezembro de 1953, na presença do general Navarre, antes da batalha final (que vai de 13 de março a 7 de maio de 1954).
A França perde, só nestes 55 dias, dois mil homens, entre os quais dois coronéis e outros 100 oficiais, sem falar dos milhares de feridos feridos... e depois dos prisioneiros (só uma pequena parte irá sobreviver ao duro cativeiro).
Jules Roy, resistente antinazi ba II Guerra Mundial militar de carreira, que discordava da guerra da Indochina, rompendo com o exército em 1953 para se dedicar ao jornalismo e à literatura, têm páginas extraordinárias quando, no início dos anos 60, visita o matadouro de Dien Bien Phu.
E indigna-se, perante os vencedores, à frente deles, por não terem dado uma sepultura condigna aos mortos, ou posto um simples cruz por cima dos abrigos e valas onde ficaram os restos mortais dos vencidos... Muitos deles eram legionários que morreram pela França...
São páginas pungentes, de que um dia gostaria de traduzir e publicar aqui alguns excertos.
Não creio que o livro tenha sido traduzido em português.
MInto, há uma edição portuguesa da Bertrand, sem data... Encontrei uma ficha bibliografia num "site" de uma biblioteca pública, a Biblioteca Municipal de Sintra:
http://biblioteca.cm-sintra.pt/Opac/Pages/Search/Results.aspx?Database=10222_BIBLIO&SearchText=ASS%3D%22Batalha+de+Dien+Bien+Phu%2C+1954+(Vietname)%22
Título: A batalha de Dien Bien Phu
Autor(es): Jules Roy ; trad. Augusto Gomes Pastor Fernandes
Publicação: Lisboa : Bertrand, [19--?]
Descrição física: 417 p., [15] p. il. ; 22 cm
Colecção: (Documentos de todos os tempos)
Notas: Tít. orig.: La bataille de Dien Bien Phu
Assuntos: Batalha de Dien Bien Phu, 1954 (Vietname) | Guerra da Indochina, 1946-1954
CDU: 355.48(597)"1954"
Veja também: Roy, Jules, 1907- | Fernandes, Augusto Gomes Pastor
Localização: 355.48 ROY (BMS-PC) - 64673 PC
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