sexta-feira, 19 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24327: Notas de leitura (1583): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
É livro de leitura obrigatória, Onésimo Silveira não só exerceu funções relevantes no PAIGC, como representante na Escandinávia, é um exímio conhecedor da realidade cabo-verdiana e mostra que sempre afrontou com coragem tal dogma da unidade Guiné-Cabo Verde. O entrevistador é José Vicente Lopes, um jornalista com pergaminhos, não há ali uma pergunta que não venha a propósito, sempre cheia de acicate para dar espaço ao entrevistado para prender a assembleia de leitores. Obviamente que aqui se fará uma leitura restrita destas mais de 400 páginas de alguém que, além de combatente nacionalista, tem no seu currículo a poesia, o romance e o ensaio, a diplomacia e a experiência autárquica na Câmara Municipal de São Vicente, alguém privou ao longo da vida com Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Olof Palma, Karl Popper, Leopold Senghor e outros destacados líderes africanos. Ninguém que se pretenda informado sobre a vida do PAIGC e a luta de libertação pode dispensar esta leitura, conhecer o olhar de um cabo-verdiano que aspirava pela independência mas que nunca duvidou que havia um fosso profundo entre aqueles dois países que Amílcar Cabral tratava como uma união sagrada.

Um abraço do
Mário



Onésimo Silveira, o PAIGC e a unidade Guiné-Cabo Verde (1)

Mário Beja Santos

Onésimo Silveira, Uma vida, Um mar de Histórias, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 2016, é de leitura obrigatória por vários motivos, que destaco: temos aqui uma grande angular com olhares sobre a sociedade cabo-verdiana, o papel do PAIGC neste Estado independente, e o contributo de alguém que foi combatente nacionalista, embaixador do seu país e diplomata das Nações Unidas, autarca, poeta, romancista e ensaísta. Quem o entrevista é um jornalista conceituado, José Vicente Lopes, a quem devemos obras de referência tais como Os bastidores da independência, As causas da independência e Aristides Pereira, minha vida, nossa história.

Obra aliciante, questões bempostas e a propósito, espicaçando o entrevistado, dando o máximo de fluência à narrativa: logo sobre a infância, a exaltação que faz da mãe, o que reteve do ambiente familiar e social, o Liceu Gil Eanes, os professores e colegas. E depois vem para Lisboa, uma vida de boémia, um estudante que não o foi, o regresso a Cabo Verde, de onde segue para S. Tomé, Angola e depois o retorno a Portugal. Recorda a influência que nele teve Mário António de Oliveira em Luanda, acaba desterrado no Luso, vão vindo à flor da conversa os nomes dos intelectuais cabo-verdianos da sua geração e igualmente dos mestres, como Manuel Lopes.

Passa por Portugal, mas já escolheu outro destino, o exílio. Na Argélia trabalha com Abílio Duarte e Dulce Almada na representação do PAIGC. Fascinado pelo sistema político chinês, viaja para a China, fica horrorizado com o que viu, ali permaneceu dois anos, fala detalhadamente do nacionalista angolano Viriato da Cruz que ali teve um fim trágico e a conversa deriva para o problema do dogmatismo em Angola, como observa Onésimo:

“Muitas das desgraças que aconteceram a Angola, decorrem da forma radical e intransigente como os seus líderes encaravam a realidade, o seu processo histórico. Veja o Viriato da Cruz. Apesar da sua importância para a independência de Angola, só muito recentemente é que o seu nome foi resgatado. A mesma coisa acontece ao Mário de Andrade, que também morre no exílio porque não tinha lugar em Angola independente. No entanto, ele foi o primeiro presidente do MPLA, juntamente com o Viriato da Cruz. Isto põe um problema de transcendência histórica, normalmente o de saber se os melhores pensadores são sempre os melhores dirigentes”.

E da China parte para a Suécia, onde vai viver dez anos, trabalhando e estudando, fazendo um doutoramento sobre o socialismo africano, e encarregando-se de representar o PAIGC. Faz amizades com líderes africanos e conta histórias: 

“O Nyerere, estando em Estocolmo, mandava o embaixador telefonar-me para a gente se encontrar. Eu era correio das mensagens que Cabral lhe mandava. O Nyerere tinha uma admiração profunda por Cabral. Uma vez, o PAIGC estava com problemas financeiros, Cabral mandou-me e ao Vítor Saúde Maria a Dar-Es-Salam, o Nyerere não hesitou, sacou logo um cheque de 3 milhões de dólares”

E faz realmente referências a Senghor, Sékou Touré e Kenyatta.

Quando morre Domingos Ramos, em 1966, Onésimo escreve a Cabral, será o princípio de uma estreita cooperação, é chamado a Conacri e passa formalmente a representar o PAIGC na Suécia, o que lhe vai dar acesso a contatos com os governantes escandinavos, logo Olof Palme, que admirava profundamente Cabral. 

A entrevista centra-se, depois, no PAIGC e em Cabral, com quem ele diz nunca ter tido problemas, foi sempre um relacionamento com total abertura, podia-se discutir com o líder do PAIGC qualquer assunto. Refletindo sobre o passado, ajuíza alguns aspetos em que Cabral não fora feliz na medição dos cenários, por exemplo:

“Hoje, eu vejo que ele esteve o tempo todo numa situação difícil. Conhecia Cabo Verde, mas não tão profundamente como se poderia pensar. Tinha que dialogar com toda a gente, recorrendo, por vezes, a uma linguagem padrão, que nem sempre deu resultado. O seu desaparecimento foi uma tragédia. Mas também me interrogo se ele teria sido capaz de evitar todos os dramas que a gente vê na Guiné”

E o entrevistador questiona se seria só na Guiné ou também em Cabo Verde, para Onésimo seria sobretudo na Guiné.

O relacionamento de Onésimo com o PAIGC estende-se até ao assassinato de Cabral, segue-se a rutura, a causa do rompimento foi a unidade Guiné-Cabo Verde:

“Já nessa altura punha-se a recusa de discutir o problema da unidade. Mas mais do que possa parecer à primeira vista, nós eramos uns tantos, dentro do PAIGC, que não estávamos de acordo com a unidade orgânica entre a Guiné e Cabo Verde. Vendia-se, diplomaticamente, uma imagem dessa unidade como se ela existisse já, quando eu entendia que ela tanto podia dar resultados como não podia”.

 E dá exemplos de discussões tensas em Conacri, estiveram envolvidos vários interlocutores, é citado o caso de Osvaldo Lopes da Silva. Onésimo chegou a dizer a Luís Cabral: 

“Eu estou lá fora a vender um quadro que eu não sei bem muito o que é, e por causa disso não me sinto bem, a vender uma unidade que vocês têm como adquirida, mas que, do meu ponto de vista, não está adquirida. A unidade da luta é uma coisa, mas a unidade da governação é outra. Após a independência dos países o quadro de pertença terá de ser uma coisa diferente. Com o agudizar da situação, acabei por me ir embora”.

Lembra que os cabo-verdianos em Conacri se agrupavam, que estava envenenado o ambiente da luta. Numa reunião de quadros em que participaram Nino Vieira, Osvaldo Vieira, Chico Té, Vítor Saúde Maria, José Araújo, Pedro Pires, Abílio Duarte, Osvaldo Lopes da Silva, Amílcar Cabral denunciou gente que estava a criar divisão no partido por causa da unidade Guiné-Cabo Verde, uma coisa que, para ele, era sagrada. O mais acusado dos agitadores era Momo Turé, e Cabral tinha procurado mostrar-lhe reconhecimento e agradecimento por ele ter sofrido muito no Tarrafal. É aqui que Onésimo profere uma declaração que está hoje comprovadamente sem fundamento: 

“É através desse mesmo Momo Turé que a PIDE dá o grande golpe de morte ao PAIGC”

Decorrente desta denúncia, Momo Turé e João Tomás Cabral foram levados para a prisão, terá sido nesta prisão, conjuntamente com Aristides Barbosa, que se planificou o assassinato de Cabral, diz Onésimo. Observo eu que é uma maneira simplificada de procurar encontrar o móbil e o quadro dos figurantes do assassinato, importa não esquecer que estiveram envolvidas centenas de pessoas e dentro dessas centenas dezenas interferiram diretamente no quadro conspirativo. Aqueles três divisionistas não tinham estatuto para levar tão vasto plano por diante, mas compreende-se que Onésimo ao fazer esta declaração procure encontrar alívio e explicação para uma charada que continua sem resposta plausível, desapareceram pessoas e documentos, agora qualquer um de nós pode dizer o que lhe apetece, sabe-se que a PIDE não interferiu e não há comprovantes de que Sékou Touré também tenha ajudado à festa.

A entrevista ciranda os acontecimentos do assassinato e fala-se de Sékou Touré, Onésimo assiste ao funeral de Cabral, tem lugar uma receção do presidente da Guiné Conacri, ele diz que o PAIGC cometeu erros graves. 

“Na lógica dele, devia haver dois partidos, um da independência da Guiné e outro da independência de Cabo Verde. Por causa disso, fiquei com a impressão de que Sékou Touré tinha sido influenciado pelos indivíduos que tinham assassinado Cabral. Segundo ele, a divisão entre guineenses e cabo-verdianos tenha minado o PAIGC por dentro. Fiquei também com a sensação de que o Sékou Touré não tinha vertido uma lágrima pela morte do Amílcar. Encontro estranho, quase como falar em corda em casa do enforcado. Por maiores que fossem os problemas do PAIGC e da luta, aquele não era o momento para aquele suplício, sabendo ele que o Luís era amigo do Amílcar. O certo é que no meio da confusão que se seguiu à morte de Cabral, a polícia guineense, com o auxílio dos soviéticos, atuou imediatamente. E a conclusão: nenhum cabo-verdiano sabia que se ‘complotava’ contra Cabral, ao contrário de todos os guineenses em Conacri, que estavam a par. Quando o Cabral foi assassinado, havia uma casa em Conacri onde estavam os mutilados de guerra e quando souberam que Cabral tinha sido morto, indivíduos sem pernas, nem braços, aos gritos, davam saltos de contentamento, viram na morte de Cabral a sua libertação. A cena destes indivíduos a pularem de contentamento dá ideia dos recalcamentos criados pela luta, atesta o nível de contradições que o PAIGC, enquanto movimento de libertação, já tinha gerado no seu próprio interior”.

(continua)

Onésimo Silveira e Amílcar Cabral em Helsínquia
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24316: Notas de leitura (1582): Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

"Fiquei também com a sensação de que o Sékou Touré não tinha vertido uma lágrima pela morte do Amílcar".

Mas qual era o caboverdeano que não teria exatamente essa "sensação"?

Só que Cabral estava confiante que o apoio internacional (URRS, Cuba, Suécia, etc.) lhe dava a segurança e a proteção necessárias contra inimigos perigosos, mais perigosos que Spínola, aliás, que ele sabia disso muito bem.

"os mutilados de guerra e quando souberam que Cabral tinha sido morto, indivíduos sem pernas, nem braços, aos gritos, davam saltos de contentamento, viram na morte de Cabral a sua libertação".

Isto foi um milagre que o senhor Onesimo teria presenciado, gente sem pernas aos saltos de contentamento...! com a morte de Amílcar?

Claro que Onésimo como caboverdeano, politicamente correto, não tem dúvidas no papel determinante da PIDE, talvez junto até daqueles "sem pernas" contentes.

Mas como Beja Santos nos vai trazer a continuação, vamos ver mais novidades de Onésimo Silveira, um caboverdeano de vida bem repleta.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Este "ódio patológico'ao 'pai' das duas nacionalidades, guineense e cabo-verdiana, é no mínimo muito perturbadora...

Afinal, o Cabral estava longe de ser um santo e um herói em Conacri... E essa 'sanha anti-Cabral" não podia ser só obra do Spinola e da PIDE... Gostava de ter tempo para ler o que dizem os biógrafos...

Fernando Ribeiro disse...

A propósito de Amílcar Cabral e do angolano Viriato da Cruz, referido por Onésimo Silveira na sua entrevista, está na internet uma carta que Amílcar Cabral escreveu a Lúcio Lara e Viriato da Cruz e que se encontra em https://tchiweka.org/documento-textual/0006000097

Independentemente da sua trajetória política, Viriato da Cruz foi um poeta de grande qualidade. O seu poema "Namoro" é muito conhecido, por ter sido cantado por Fausto e Sérgio Godinho. Começa assim: «Mandei-lhe uma carta em papel perfumado / e com letra bonita eu disse ela tinha...»