Foto: © Luís Graça (2011)
Contos com mural ao fundo (7) > Sozinho, como um cão
por Luís Graça (*)
Estive no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje os seus 80 anos, se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.
Era um dos meus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.
A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967, altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.
Era um dos meus amigos, da época da minha adolescência. Dele guardarei para sempre uma grande saudade, não obstante as nossas vidas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.
Nessa altura eu fui para a tropa e ele estava a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abruptamente.
A imagem mais dolorosa que guardo dele, é a da cama de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro, como virei a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço
Reconheceu-me só pela voz, não se moveu nem um centímetro, estava lúcido, mas já em grande sofrimento. Só lhe sussurrei, quase em cima do ouvido, um tímido “Olá, Doc”. E acrescentei, estupidamemente: "Coragem!".
As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas, inumanas, soaram-me a despedida, irremediável, sem retorno. Senti-as como um punhal cravado no meu peito. Guardei-as para o resto da minha vida:
− Luisinho (tratava-me sempre por Luisinho), vai-te embora, vai-te embora! – implorou. (Nunca saberei se era uma súplica, uma ordem ou uma expressão de raiva e impotência.)
Trinta anos depois, não me envergonho de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele proferiu, no seu leito de morte, na minha presença, ainda hoje me martelam a cabeça.
Senti um enorme sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha por ter sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... Por pudor ou medo atávico da morte, não consegui sequer tocar-lhe. Muito menos dizer-lhe uma palavra de consolo, de conforto, de carinho. Só um tímido, inócuo e cobarde... "Coragem!".
Mais tarde, talvez para tranquilizar a minha consciência e não sentir o peso da minha fraqueza e sentimento de culpa, iria interrogar-me sobre o significado que ainda poderia ter o meu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um homem… Que é quando um gajo agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que nos amaram e que nós amámos!…
Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).
Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos, pelo menos que se soubesse.
Tive um ataque de choro, convulsivo, enquanto saí dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do hospital, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno bosque que circundava o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.
Recuando há muitos anos atrás, lembro-me do seu regresso da Guiné. Eu era o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, eu era talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer.Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do colégio e do grupo de teatro amador, como era o meu caso. E eu, seguramente, era o mais novo.
De facto, nem sequer se dignara escrever-me, a mim, que era o seu correspondente e confidente (trocávamos correio enquanto ele esteve na Guiné, entre 1965 e 1967) e, no grupo de teatro, secretário, moço de recados, ponto, datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… Além de sermos amigos e vizinhos de bairro, se bem que eu fosse mais novo do que eu uns bons seis anos.
Sentia-me lisonjeado com a sua amizade, mas também sabia que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano”, como escreveu um dos seus "amigos críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica.− Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa!
Eram os dois parecidos, pai e filho, em muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia ter partido a louça posta para o jantar.
Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.
− Lusinho (tratar-me-ia sempre por Luisinho, até ao fim da vida), não me leves a mal, mas não ouças o tonto do meu “Velho”…
Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que me chocou e perturbou:
− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano!
Não alcancei o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:
− … Dormir um dia inteiro, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… Queria poder hibernar o resto da vida. Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…
Ainda ensaiei uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu comigo, pondo-me fora do quarto… Aí assustei-me, fiquei chocado com a sua brutalidade mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, a cor da pele amarelada, a barba de vários dias, por fazer…
Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-me a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de doenças tropicais…
Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.
Na altura, confesso, eu até pensei que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Fiquei assustado com o estado de saúde, física e mental, do meu amigo.
E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega meu de escola. Estava eu de piquete na redação do jornal, fazia os "faits divers", os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos, e ainda vi, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde trabalhava. Era o adegueiro.
Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, o Doc contou-me que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”.Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar (segundo depois me explicou).
Senti que esse episódio o marcara muito, mas nunca me deu grandes pormenores. E eu respeitei a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando de falar dele.
Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer à festa, comemorativa dos 30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para marcar as férias para o mês de julho de 1966!).
A releitura dos seus aerogramas não me permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás, a que eu nunca pus a vista em cima, se é que ele não o destruiu em vida).
Há dois episódios que poderão estar na origem da tal “porrada” ou castigo… Vejamos cada um, sem entrar em grandes pormenores.
O primeiro tem a ver com uma exaltada discussão com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconheço a patente, mas o mais provável era ser um 1º cabo).
O meu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça pelas suas próprias mãos, contra um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra" (amendoim), nas ruas da Bissau velha. frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas.
Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele, puxar dos galões. O grupo estava alcoolizado e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem.
Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da PM, que era ali mesmo ao lado, na Amura. Ficou lá cerca de duas ou très horas. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Nomeadamente, outros alferes que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia ou cautela, não se quiseram meter ao barulho. "Afinal, um militar fardado, para mais oficial, está ou não está 24 horas por dia de serviço?", interrogava-se o Doc, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.
O segundo episódio prende-se com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior (julgo que seria um major) que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc.
Resumo o essencial da versão do Doc, num dos aerogramas que me escreveu: os militares, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… Calaceiros, mandriões e outros epítetos ainda mais injuriosos terão acompanhado as ameaças do major (2º comandante, ao que percebi), impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros insultos de semelhante teor (que o Doc interpretou como sendo racistas)...
À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... Este, cobardolas, estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...
O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... Caiu o Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e dahontra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc, para se recolher de imediato ao seus aposentos.
O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá interferido a seu favor, junto do tenente-coronel. Em vão, ao que parece. Não sei o desfecho da história. A verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…
O castigo disciplinar, desproporcionado, teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul, onde a atividade operacional era mais intensa…
Tal como chegou, sozinho, assim partiu: nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele. Teve apenas, à mesa, dois ou três furriéis que o estimavam... E julgo que o médico.
E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…
Nunca soube ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para mim, como “o teu amigo Doc”…
Num dos últimos aerogramas que me escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-me:“Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, a exaustão física e emocional, os tufóes e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos”…
− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus, Mas não está nada bem da cabeça, o meu pobre filho!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...
A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada. Tinha sido minha professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, ao tempo do senhor Dom João V.
Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Era mais velho do que ela uns bons quinze anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se, do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.
Eu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o apenas por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora.
Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.
O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde, como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra.
Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").
Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locai.
O meu amigo Doc era, para mim, o irmão mais velho que eu nunca tivera, separavam-nos uma meia dúzia de anos. Tínhamos alguns interesses intelectuais em comum, a começar pelo teatro, a literatura, a arte e, claro, a política.
Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…
O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouvira falar... Só me lembro, na igreja, teria eu 10 anos, por volta de 1958, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...
Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais…
Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondiamo-nos regularmente, uma oiu duas vezes por mês. Eu guardei religiosamente os aerogramas que ele me mandava. Tinha intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como eu esperava que ele chegasse.
− Queima-os, Luisinho, queima-os!
Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )
Sabia que o meu avô, materno, era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:
− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…
O meu avô, coitado, era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer, tinha sido expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"..., para morrer, afinal, uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão, dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele ouvia a BBC.
De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.
O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.
Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…
− Então?... E as outras duas, avô?
− Tem-nas o padre e o médico!...
A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:
− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…
O Doc nunca me deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde eu trabalhava, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tínhamos uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde publicávamos notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".
O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, que não terá tido tempo, vontade e pachorra para ir à Torre do Tombo ver o seu processo).
O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embiora fosse um "segunda linha"...
Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego). O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.
A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.
A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.
Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).
Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.
Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”. O que toda a gente sabia, isso sim, é que ele tinha duas filhas casadoiras, as suas "princesas", que estavam à espera dos seus "príncipes encantados". E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.
O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica).
Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…
Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor, a quem, confesso, devo alguns favores. Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor, na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…
Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…
− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.
Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…
Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...
Voltando ao meu amigo Doc… que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez.
Sempre o tratei por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Eu, por meu turno, ainda estava longe de saber o queria fazer da minha vida... Mas começava a preocupar-me com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos meus vizinhos e conhecidos, mais velhos...
Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vim a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.
Parte da minha formação intelectual e até literária devo-lha a ele, ao meu amigo Doc. Emprestava-me livros, trazia-me livros e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…
Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, devo acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxe da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo. Houve mesmo quem apostasse comigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…
Mas foi também a época em que eu deixei de ver o Doc, com regularidade. Soube depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo de vez com a sua cidade natal. Há muito que deixara definitivamente o teatro da cidade, que de resto passou a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.
E eu nessa altura já estava na Guiné, onde votei em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ia tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo. Depois perdemos o contacto... Deixámos mesmo de ser íntimos, se bem que a nossa amizade estivesse para durar até ao fim da vida...
Soube, por outras vias, que o Doc se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).
Não tenho aerogramas dele do meu tempo de Guiné. Nunca nos correspondemos nesse tempo. E um ou dois que lhe escrevi, não tive coragem, confesso, de os pôr no correio...
Depois do meu regresso à Guiné, e da minha própria "cura de sono", soube notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa, da família do Doc: a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.
Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que paravam as modas.)
Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, em 1990?
Enfim, "ando por aí", como me garantiu, "a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade"... Mas nunca mais voltou à Guiné. Uma vez por outra falavámos ao telefone, ele é que me ligava (em geral, pelos meus anos), eu nunca sabia ao certo por onde ele parava... Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.
7 comentários:
Esta é uma bela forma de homenagear a memória de um amigo, daqueles que nos acompanham pela vida e dos quais não nos esquecemos mesmo depois da sua partida.
As tuas continuadas e rápidas melhoras Luís.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela
Obrigado, Eduardo, há imagens, muito fortes, que não nos largam...Um alfabravo. Luís
Este amigo de Luís Graça tinha todos os ingredientes para se transformar naturalmente num daqueles que foram os "Estudantes do Império" que fugiram para formar os Movimentos independentistas.
Que a maioria eram filhos ou netos de "velhos" africanistas.
Evidentemente que havia imensos filhos de africanistas que que ficaram abertamente contra os movimentos independentistas, e outros mesmo não sendo salazaristas, como este amigo do "Luísinho", ficou do lado errado, do lado do seu "velho".
Grandes retratos neste post de homenagem a um amigo.
Como conheci muitos velhos africanistas como o "velho" de Doc, exactamente com as mesmas ideias, anti-salazarista e pró Norton de Matos, não quero perder oportunidade de emitir minha opinião pessoal-
Como li muito sobre as ideias de Norton de Matos, e ouvi em Angola muitos admiradores dele, se Norton, em 1949 tem ganho as eleições (desistiu), o futuro colonial corria o risco de desastre maior do que aquele que conhecemos.
Norton não previa que um dia seria preciso mobilizar uma ponte aérea para milhões de retornados.
Antº. Rosinha
"Norton de Matos não previa que um dia seria preciso mobilizar uma ponte aérea para milhões de retornados."
Ponte aérea para milhões de retornados, milhões?
Dizem as "neps" que teriam saído de Angola 300.000 portugueses e 160.000 de Moçambique.
A 'ponte aérea' Luanda-Lisboa-Porto foi de 174.000 retornados.
De resto, sempre se falou na ordem de 900.000 de retornados que regressam a Portugal.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
O sonho de Norton era desviar aquelas enchentes para o Brasil dos anos 40 e 50 para Angola e Moçambique.
Queria acabar com aquele travão que era a carta de chamada.
E queria fazer daquilo o que foi a Rodésia e África do Sul.
Só com milhóes Norton chegava onde queria.
Ah!, percebo.
Na EPA, em Vendas Novas, havia um instruendo Moçambicano, de pais de cá, que era atleta do SLBenfica, tínhamos conversas sobre a questão da guerra das nossas Províncias Ultramarinas.
Ele dizia para guardar segredo mas estava em marcha a construção dos Estados Unidos da África Austral, que seria nas linhas de Angola ocid.ao Malawi oriente e a sul África do Sul.
A África do Sul já existia, a seguir veio a Rodésia e depois .....em África não havia índios como na América
Valdemar Queiroz
Valdemar, os moçambicanos eram gente fina, já guiavam »a esquerda com volante a direita.
Talvez com Norton de Matos ficassem todos a falar inglês tal a admiração pelos camones.
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