domingo, 11 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 – P25159: (Ex)citações (427): Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974" (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974"

Os tempos de vida, os nossos, lá vão caminhando por uma estrada cada vez mais apertada. Ambicionamos, e sempre, um presente ajustado às nossas capacidades físicas e intelectuais, assim como um amanhã onde suplicamos um bem-estar para a nossa presença neste planeta chamado Terra.

A idade não perdoa. Sim, é verdade que tempo voa. Ainda assim, lá vamos remexendo em histórias que nos enviam, em particular, para a nossa estadia forçada na guerra colonial da Guiné, ou aquando um dia partimos de Lisboa rumo ao conflito guineense, mas com a curiosidade a suscitar dúvidas em relação à futurologia que nos esperaria. Neste contexto, deixo-vos camaradas imagens por todos certamente relembradas. 

      Angola, Moçambique e Guiné, hoje países independentes, foram outrora palcos de guerrilha que marcaram uma juventude que vivia em plenos anos de autêntica exaltação. Nesses tempos, os clamores evocados pelos jovens desembocavam numa encruzilhada de cavaqueiras cujo destino se fixava amiudadamente com a guerra do Ultramar.

      A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.

      Aportei em solo guineense cerca das 14 horas locais no dia 2 de agosto de 1973.  Ao descer do avião deparei-me, de imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou, todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante, assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível realidade”.

      Os primeiros contactos com os nativos transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que dantes havia idealizado.

Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal. Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava fronteiras aéreas a caminho da guerra.

      Todas as histórias têm um vínculo que nos transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos diametralmente oposto: a guerra e a paz.

      A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos. As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN (inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram evidentes nos campos de batalhas.

      Do conflito da Guiné há retratos que ao longo dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha, nos tempos finais, perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às forças lusitanas.

      Teoricamente seria essa a intenção dos homens de Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito, mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a guerra operacional dos galões amarelos.

      Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta. As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.

      Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer, faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela dureza.

      Sabe-se que foram muitos os que morreram no palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram, felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.

      O stress de guerra é há muito uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas. Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes de autêntico desespero.        

Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

José Saúde,
Foste para a Guiné num avião dos TAM (Transportes Aéreos Militares, segundo creio)? Nunca me constou que os TAM tivessem aviões Boeing 727, mas sim dois Boeing 707, que eram maiores do que os 727 e que a TAP comprou à Boeing. Assim que recebeu os 707 do fabricante, a TAP "vendeu-os" logo a seguir à Força Aérea Portuguesa. É claro que, desde o início, os aviões se destinavam à FAP, para o transporte de militares para as guerras de África. A intermediação da TAP na compra dos aviões foi só um expediente para contornar as interdições internacionais. Aliás, esses dois aviões eram diferentes dos aviões 707 convencionais, pois a FAP queria-os adaptados ao transporte militar, com características próprias. Esses dois aviões foram, por isso, exemplares únicos.

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Certamente o aeroporto de Bissalanca, em 1973, tinha condições para receber aviões desta envergadura.

Pois eu também fui num destes aviões, mas para Angola, e também sobrevoei o deserto do Saara, que me deixou a recordação de imagens inesquecíveis, de indescritível beleza. Atravessei o Saara Ocidental, que ainda era uma colónia espanhola, ao pôr-do-sol. O interminável "mar" de dunas do deserto projetava então sombras longuíssimas, que contrastavam fortemente com as encostas ainda iluminadas pelo sol. As contrastantes ondulações de sombras e de luz pareciam uma pintura abstrata de uma beleza assombrosa. Nunca mais esqueci esta imagem até hoje, talvez porque eu ia para a guerra, com o cu tão apertadinho que não cabia um feijão. Assim que o sol se pôs e o deserto ficou todo mergulhado na sombra, acenderam-se as luzes de iluminação pública (muito poucas) de uma localidadezinha situada à beira-mar, que julgo que era Villa Cisneros, atual Dakhla.