quinta-feira, 9 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25498: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte V


Timor > Dili > Projeto CAFE (Centros de Aprendizagem e Formação Escolar) > "No passado dia 25 de fevereiro chegaram a Timor-Leste 36 docentes portugueses que irão desempenhar funções pela primeira vez no Projeto CAFE, juntando-se aos 107 docentes que renovaram, no início de 2024, os contratos de cooperação anteriormente celebrados. Foram recebidos pela Coordenação Geral tendo ocorrido posteriormente uma receção na Embaixada de Portugal em Díli (...).

"Este Projeto o qual constitui para o Estado Português e para o Ministério da Educação, o projeto de maior envergadura por si coordenado e cofinanciado no quadro dos acordos de cooperação bilateral na área da educação, mediante o qual se promove a educação e o ensino em Língua Portuguesa em 13 municípios daquele país, envolvendo no presente ano alunos cerca de 11 000 alunos, 150 docentes portugueses e mais de 300 docentes timorenses.

"O Projeto CAFE tem como principais vertentes desenvolver e consolidar o ensino em língua portuguesa naquele território, a nível do ensino não superior, reforçar a formação de docentes timorenses e promover a maior qualificação do sistema educativo timorense, respondendo a três necessidades concretas: (i)  formação complementar a jovens recém-qualificados;: (ii) ensino público de qualidade; (iii) Ações de formação e capacitação."

Fonte: Adapt de Direção - Geral de Administração Escolar > Notícias > 1 de março de 2024 (com a devida vénia...)


1. O Rui Chamusco  de regressar de Timor ao fim de 3 meses de estadia... É a sua quinta visita Chamas-lhe o Som Quixote da lusofonia e o seu 'mano' Eustáquio (da família Sobra, onde ele fca, em Dili), o Sancho Pança: resistiu e lutou nas montanhas contra a ocupação indonésia.  

Depois de terem construído, em 2017,  a Escola São Francisco de Assis (ESFA) ,  na montanha de Liquiçá, ele e a Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste, querem agora o  assegurar a colocação de professores, com formação específica. (*)

Nesta 5ª crónica volta a dar-nos exemplos das  particlaridades da(s) cultura(s) timorense(s) mas também das dificuldads que se depararam ao ensino da língua portuguesa, que é língua oficial, falada por poucos, a par do tétum.


O Rui Chamusco é um beirão admirável, generoso, solidário, amigo do seu amigo,  "lince" nascido na serra da Malcata, no concelho de Sabugal (terra de desterro na Idade Média, tal como Timor o foi do séc. XVIII até à II Guerra Mundial, "terra abençoada por Deus", diziam os nossos colonialistas republicanos, mas duramente castigada pelo Diabo em figura de gente, primeiro os japoneses, depois os indonésios e as milícias pró-indonésias, até à sua independência, já no início deste milénio). 

É professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã;  é cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste. Será, dentro de dias,  um novo membro da Tabanca Grande (pelo que ele tem feito por Timor-Leste e pela lusofonia).  Tem 77 anos, mora na Lourinhã.  Era grande amigo do nosso tabanqueiro Eduardo Jorge Ferreira (de resto, colegas, professores) e agora meu e do João Crisóstomo (o nosso "cônsul em Nova Iorque").


De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte V



Rui Chamusco e o seu amigo e 'mano'
Gaspar Sobral. Em Dili, fica hospedado casa do Eustáquio,
irmão do Gaspar. Foto: LG (2017)
Quinta crónica, enviada de Timor Leste, em 1 de maio último, às 1:14, pelo Rui Chamusco, na sua 5ª estadia (fev/maio 2024).


 
16.04.2024, quinta feira - E vivam os mortos!...

Há culturas assim. Viver é morrer; morrer é viver, dependendo daquilo em que se acredita. Também em Timor isso acontece.

Hoje foi o funeral de um vizinho.   A meio da tarde ouve-se grande agitação aqui nas redondezas                                                                                                                       e até o pátio dos “Sobrais” está cheio de pessoas que procuram entrar ou subir para as "microletes" (**) e as "carehs" a fim de acompanharem o féretro ao cemitério de Becora. 

Mas quando já tudo parecia tranquilo, com as cerimónias terminadas, eis que se ouve uma grande algazarra de vozes, músicas e outros sons, dando a entender que a “festa” ainda não tinha acabado. Fui ver e confirmar com o Eustáquio que assim era.

Faz parte do funeral. As pessoas voltam ao local donde partiram e continuam a celebrar a morte através da refeição e do convívio. Tudo muito naturalmente, sem grande estresse, porque todos ajudam. Isto é que é viver! Morremos nós, mas vivem os outros. A morte e a vida de braço dado.

E assim a vida continua...

17.04.2024, quarta feira - De encontro em encontro

Aquilo que já nem esperávamos aconteceu. A meio da tarde, o meu telemóvel chama, e vejo que é da Coordenação CAFE (***). Apreensivo atendo, mas fico estupefacto quando do outro lado da linha ouço alguém a dizer:

 É o professor Rui Chamusco? Daqui fala o senhor Roger Soares e é para saber se esta tarde pode vir à Coordenação CAFE, porque estou disponível.

 Ok!”respondi eu. Estamos de saída para aí.

E lá vou eu mais o Eustáquio para este encontro, na esperança de que nos ajudem a encontrar uma solução para a colocação de professores na ESFA. E, de um momento para o outro, conseguimos a audiência pretendida.

Para aquilo que nos tinham dito da nova coordenação, confesso que fiquei muito sensibilizado e surpreendido pela atitude dos coordenadores, a saber o dr. Roger Soares e a Dra. Lina Vicente (já conhecida de anos anteriores).

Ambos se mostraram muito recetivos às nossas informações e propostas, penso até que é por aqui que passará uma decisão favorável. Até nos prometeram uma visita à ESFA, ainda que por compromissos já assumidos não possam participar na celebração do 6º aniversário. Vamos a ver! Temos batido a tantas portas que alguma se há-de abrir. Nem que seja para severem livres de nós... “O pedinte tantas vezes bate à porta que o patrão, talvez já chateado com tantos batimentos, se levanta e vem dar-lhe a esmola.”

19.04.2024, sexta feira  - Hospital Guido Valadares

Hoje passámos toda amanhã no hospital, para acompanharmos a Nanda (Fernanda) que é (será a mulher do Zinon e, por conseguinte, a nora do Eustáquio), que foi a uma consulta de endocrinologia devido a um nódulo a tiroide. Este hospital de Dili está sempre cheio de gente. É um hospital público e por isso ninguém paga nada. Também por isso é muito procurado.

Não admira, portanto, o tempo que se tem de esperar para ser atendido. Não há marcação de consultas, e a chamada é por ordem de chegada. Mesmo assim, tudo numa boa nesta sala (?) de espera. Há que esperar até que chamem pelo nome. Até houve momentos de humor que os próprios doentes tentavam criar para aliviar o ambiente. E, para que isso acontecesse, oEustáquio muito contribuiu, conversando com as pessoas que já lá estavam ou as que iam chegando. 

Uma das pessoas que esperava pela consulta tinha a bengala que utilizam os deficientes visuais, e viu-se logo pelo seu comportamento que realmente não via nada. Foi então que o Eustáquio se abeirou dele e da sua esposa para se dar a conhecer. Mas afinal eles já se conheciam e até habitam perto um do outro. 

Quiseram saber da vida de um do outro e, claro está, com perguntas cujas respostas não eram nada agradáveis. Por exemplo quando perguntaram ao Eustáquio pela Aurora (sua mulher) e ouviram a frase “a Aurora já morreu, faz o dia 19 de julho um ano, ouviu-se um Ohhhh! impressionante pela surpresa. 

Também ficámos deveras impressionados quando o amigo revelou a causa da cegueira. Fizeram-lhe uma intervenção à tiroide, e teve como consequência acessória a falta devisão. Mas, no meio de toda esta tragédia, houve um grande momento de humor, quando ele diz para o Eustáquio: “Pois. Eu olhava para onde não devia olhar, e agora fiquei cego”. Toda a gente riu a bom rir com a piada. 

E é isto! Mesmo no meio da adversidade, há sempre a possibilidade de “virar o bico ao prego”. Que resiliência, meus amigos!... Ainda nós nos queixamos por tudo e por nada.

21.04.2024, sábdo  - História de um capacete de motorista

Tobias desde há uns dias que é figura diária na casa do Eustáquio, de quem é afilhado, e vem ajudar nas obras que estão em curso: colocação do chão em mosaicos. Também não teve vida fácil, e até já esteve preso, não sei nem me importam as razões, perdendo, entretanto, a primeira mulher que aproveitou a ausência dele para arranjar outro. Está claro que o Tobias teve todo o direito de, já liberto, poder também encontrar outra mulher, da qual já nasceram dois filhos. 

O mais velho, Marcelino, de quatro anos, há dias que vem com o pai e faz o encanto dos nossos olhos e ouvidos. Muito bonito e vivaz, fala com clareza o tétum e de vez em quando algumas palavras em português que o abô Rui vai debitando. Eu chamo-lhe “Marcelinho pão e vinho”, e é um regalo ver os dois “inhos” em ação: a criança e o velho; o menino e o velhinho. “De velhinho se volta a menino”. 

A primeira vez que lhe dei dois rebuçados foi a correr para o pai, dizendo: este é para o mano. Logo aí me cativou pelo sentido de partilha e de família.

Mas vamos à história do capacete. O Tobias viu uma criança com um capacete e foi logo a correr para ver se seria o seu, que estava junto da sua motorizada, não fosse ele a ficar outra vez sem o seu. E foi então que surgiu a história do capacete. Há tempos apareceram uns rapazes a quererem vender um capacete. O Tobias, como precisava de um, comprou-o e, legalmente, tudo estava bem, passando o Tobias a utilizá-lo nas suas deslocações e viagens. Até que uma vez, alguém que vinha atrás que por acaso até é polícia,  reconheceu o capacete e, ultrapassando-o,  se pôs à sua frente fazendo-o parar e dizendo: "Onde roubaste esse capacete?" O Tobias, que até tem dificuldade em começar a falar, respondeu-lhe: "Eu não o roubei, eu comprei”. E gerou-se ali a confusão habitual: "compraste a quem, etc, etc"... Então o Tobias disse ao polícia: “Se tem dúvidas vamos ali a casa do meu padrinho para confirmar". E assim foi. 

Na entrada da casa do Eustáquio esclareceu-se tudo. Um grupo de rapazolas aqui do canto, armados em larápios vão furtando as coisas que podem para depois venderem na candonga. Através da descoberta deste roubo concluíram que também sacos de cimento e outras coisas foram levadas da casa em construção desse mesmo polícia. Conclusão: o capacete foi devolvido ao seu primeiro dono, e os outros materiais furtados foram pagos através de uma multa que aplicaram a esses jovens. Só que, como esses jovens não tivessem o dinheiro suficiente para o pagamento da multa, então as famílias aqui do canto pagaram entre si mas com um sério aviso: "Se voltais a fazer isso deixamos que vos prendam e passem a cumprir a pena na prisão”. 

Tudo se resolveu, exceto o Tobias que ficou a arder, sem o dinheiro com que tinha pago ofamoso capacete.

22.04.2024, segunda feira - Vítima do massacre de Liquiçá

Esta tarde fomos ao município de Liquiçá falar do concelho de Sabugal, um encontro previamente combinado no âmbito do acordo de colaboração celebrado entre os dois municípios. Nada que superasse as expetativas, para além de dar a conhecer o nosso município, tal e qual como já se fez nonSabugal em relação ao município de Liquiçá. Vamos a ver, na prática, em que é que se traduz este acordo de colaboração.

À saída das salas da presidência estava o senhor Manuel Nunes Serrão, personalidade bem conhecida de Liquiçá, que amavelmente nos veio cumprimentar, falando a língua portuguesa. Irmão do amigo senhor Renato que em 2019 visitou o Sabugal e outras terras portuguesas que criaram laços com o município de Liquiçá, depressa nos envolvemos em conversa de amigos que estão contentes por se encontrarem e travarem conhecimento.

Foi então, quando fiquei a saber o que aconteceu com este senhor Manuel Serrão durante o “massacre na igreja de Liquiçá”. Em 1999, cinco meses antes do plesbicito sobre a independência de Timor-Leste, as milícias apoiadas pelas tropas indonésias irromperam pela igreja onde estavam à volta de 2000 pessoas ali abrigadas e, à catanada, massacraram aquelagente. Bastantes morreram (dizem que mais ou menos 100 pessoas), e muitos deles ficaram mutilados. Arrepiante!... 

Pois o senhor Manuel foi uma dessas vítimas que, por sorte ou graça de Deus, levou uma catanada no pescoço, sendo bem visível a enorme cicatriz. Segundo os médicos que o operaram, a sua sorte foi a veia principal não ter sido atingida, caso contrário faria agora parte da lista dos mortos desse massacre. 

São estes testemunhos vivos que nos fazem pensar se a violência, a brutalidade, as armas têm algum sentido em qualquer parte do mundo. Quanto mais não vale o diálogo, a tolerância, as relhas e os arados. “Não queremos mais o ódio /Não queremos mais a fome / Não queremos mais a guerra / Queremos pão para toda a terra”.

23.04,2024, terça feira  - Festa na aldeia!?

Tudo aconteceu ao final da tarde. Já tinha conhecimento de que hoje seria o jogo de estreia da equipa feminina de futsal de Ailok Laran, da qual a Adobe, a Elixce e a Felismina fazem parte. A equipe e a sua comitiva de adeptos deslocaram-se ao campo da aldeia de Tahan Timor, que até tem dois jogadores de futebol na seleção nacional. Tudo levava a crer que o mais certo seria a derrota de Ailok Laran. Aliás, ao intervalo já perdiam por 3 a zero, o que supunha virem de lá com um cabazada de golos. Mas o milagre aconteceu. A equipe perdedora ao intervalo remontou e conseguiu empatar e ganhar o jogo por 3-4. 

As heroínas são sobretudo as três moças da família Sobral: a Adobe pelas defesas que fez como guarda-redes, a Mina(Felismina) que fez o hattrik e a Elixce que marcou também o seu golo.

Conclusão: até ao lavar dos cestos é vindima.

23.04.204, terça feira - “Cultura” e medicina em conflito

Nem dá para acreditar, mas é verdade. Ontem à noite, depois de uma tarde cansativa, chegamos de Liquiçá estafados a Ailok Laran com uma vontade enorme de irmos descansar. Foi o que eu fiz e, assim faria também o Eustáquio se nada houvesse em contra. Mas não. Passadas algumas horas ouvia o Eustáquio ao telemóvel, conversando com a família da Nanda, que nos dias anteriores teve consulta médica, seguindo-se exames e análises para detetar a causa e a consequente solução para o problema, com apossibilidade de uma intervenção cirúrgica. E, quando supostamente todos esperavam o seguimento do processo, eis que chega o telefonema de um tio da Nanda para dizer:”Toda a família não está de acordo com esse processo. A nossa cultura tem outra explicação para a doença da Nanda, e é isso que vamos fazer”. 

E tudo ficou em standby, para seguir esse tratamento da sua cultura. Eu que já ouvi e tenho conhecimento de mais histórias destas, fico perplexo e nem sei o que hei-de pensar. Há rituais que respeito e acato, mas há coisas incompreensíveis que nos fazem duvidar e até rejeitar. E então esta de alguém ficar com determinada doença só por que comeu algo que a “cultura” não permite comer, é demais. Gostaria de explicar melhor, mas não posso, ou não devo. Valha-nos Deus!...

24.04.2024  - Ainda sobre culturas

Fiquei a saber que aqui, em Timor-Leste, há diferentes culturas segundo algumas regiões: cultura de Ermera, cultura de Dili, cultura de Açabe, cultura de Maubisse, etc. Todas elas ainda muito arraigadas nas populações.

Os mais velhos são os seus grandes defensores, e temem que os mais novos, influenciados pela modernidade, um dia as possam esquecer e abandonar.

São crenças que herdarem dos seus antepassados e que defendem “com unhas e dentes”. Muitas delas determinam o presente e o futuro dos seus cidadãos, nomeadamente no que se refere a comportamentos e atitudes perante os acontecimentos. Tenho ainda bem presente os rituais que os anciãos de Boebau / Manati realizaram por ocasião da inauguração da Escola São Francisco de Assis, nos quais exigiram a nossa presença e participação (eu e o Gaspar). 

E aqui vos deixo, como exemplo, esta descrição relativa às festas do “barlake”. É comum sempre que há uma festa ritual as famílias contribuíram com os seus “dotes” para as refeições, nomeadamente oferecendo animais (vacas, porcos, cabras), ou até dinheiro. 

Há regras muito rigorosas sobre quem tem de oferecer e a quem, quem pode consumir e o quê. Se um tio ou tia oferecer, por exemplo,  uma vaca ao sobrinho, todos podem comer esse animal exceto as pessoas do sexo feminino (sobrinhas). A pior parte do animal para consumo é sempre o pescoço, e sobretudo do fahi (porco). Quem fizer o contrário está sujeito a ter doenças do pescoço. Por exemplo, se alguém tem um problema de tiroide, é por que comeu carne do pescoço da vaca ou do porco. Já dá para entender alguma coisa do que escrevi anteriormente?...

24.04.2024, quarta feira - Mais uma do Eustáquio

Em amena cavaqueira, e depois de muitos comentários sobre a vida em Timor-Leste, mais concretamente em Dili e arredores, o Eustáquio sai-se com esta: 

“ Não compreendo por que é que aqui, em Timor, quando a gente vai fazer a inspeção aos carros, colocam a viatura em cima dos rolos e abanam para todos os lados. Então as estradas não estão já cheias de buracos que fazem a gente baloiçar de um lado para o outro? Precisam de mais provas de resistência?” 

Muito bem observado... E se quiserem mais provas que me chamem a mim, pois ao longo destas cinco estadias tenho sido vítima de todo este desconforto. Às portas de Dili, e até dentro da cidade, isso acontece. Quem tiver dúvidas faça o caminho do mercado de Perunas e outras circundantes, que logo se convence. Vão-se os carros mas ficam oscaminhos...

25.04.2024, quinta feira  - 25 de Abril, SEMPRE!...

Embora muito longe de Portugal, a celebração dos 50 anos da Revolução de Abril não me é indiferente. Até por que em 1974 tinha eu 27 anos, com vivências e episódios em que o anterior regime deixou marcas inesquecíveis.

Só quem de alguma maneira não sentiu na pele a vida em ditadura é que poderá ser a favor do “antigamente”. “Que los hay, los hay!...” Mas nem esses saudosistas, nem os que nasceram em “berço de oiro” da democracia, poderão abafar as conquistas e os valores que a Revolução dos Cravos nos legou. Felizmente que as forças democráticas bem presentes na sociedade portuguesa se mobilizaram para dar o devido destaque à celebração dos 50 anos. 

Todos nós sabemos que ainda há muito por fazer, sobretudo ao nível da justiça social. Todos nós somos críticos, e ainda bem, das políticas implementadas durante estes 50 anos. Todos nós queremos mais e melhor para nós e para os outros. Mas nada nem ninguém poderá aniquilar a valentia, a originalidade e, sobretudo, as consequências desta Revolução dos Cravos.

A luta continua! A vitória é difícil, mas é nossa!... 

Apraz-me registar que também aqui, em Timor-Leste, em Dili, os 50 anos são bem celebrados. Primeiro através da visita do Presidente Ramos Horta a Portugal para participar nas celebrações. Depois com um programa de atividades que se estende desde o dia 13 de abril a 4 de maio, e que tem como lema “Democracia e Liberdade pautam as comemorações do 25 de abril". E por fim, talvez a que mais agrada aos alunos das escolas, o governo deu tolerância de ponto. Seja como for, os 50 anos são bem celebrados neste canto do mundo, onde quase ninguém fala o português, mas que tem um grande carinho e afeição com os portugueses, com Portugal.

27.04.2024, sábado - Quando a emoção nos invade...

O fadista pergunta e responde: “Quando a tristeza me invade?... Canto o fado!” Mas não é de tristeza que se trata. É de emoção. E vem tudo isto a propósito do rescaldo das celebrações dos 50 anos de abril. Graças aos meios digitais, temos acesso às manifestações e ações que se desenvolveram em grande parte do nosso país. É uma confirmação de que abril está bem vivo, e que os seus valores continuarão a orientar a sociedade portuguesa.

Mas o que me emocionou até verter algumas lágrimas, foi ver como noutras paragens, por exemplo na Galiza, em Paris, em Timor-Leste e muitas mais, tanta gente cantava, com alma e coração, as canções de antes e depois, como que a agradecer a revolução dos cravos. 

E ouvir cantar “Grândola Vila Morena” por tantas vozes empolgadas pelo entusiasmo e a emoção deixa-nos extasiados, sem palavras, com os olhos embaciados de lágrimas. Quem viveu o antes e o depois de abril, não pode ficar indiferente à forma como o 50º aniversário foi vivido. E, Deus queira, que cada aniversário a caminho dos 100, seja a atualização deste espírito que o 25 de abril de 1974 nos ofereceu. 25 de Abril SEMPRE!... (...)

(Revisão / fixação de texto: LG)
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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25473: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte IV

(**) Microlete: o termo já vem grafado no Priberam

Timor: Veículo privado de transporte colectivo de passageiros. Etimologia: de oirgem obscura.

"microlete", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/microlete.

(***) CAFE > Projeto dos Centros de Aprendi<agem e Formação Escolar

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rui,penso que nas tuas primeiras crónicas (em 2017 ou 2018) abordas os tempos sangrentos da ocupação indonésia e a luta heróica dos tomorenses pela sua independêcia... Vou reler essas crónicas, que nunca passaram aqui...

Estive a ver a Wikipedia e sobre o massacre de Liquiça (abril de 1999) há duas entradas, uma em português e outra em inglês (mais completa). Emambas as versôes aponta-se oara 200 mortos.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Liqui%C3%A7%C3%A1

https://en.wikipedia.org/wiki/Liqui%C3%A7%C3%A1_Church_massacre

Vd. também a lista dos massacres em Timor Leste (entre 1975 e 1999, terá havido um genocídio em Timor Leste, estimado entre 100 mil e 300 mil):

https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_massacres_in_East_Timor

"Em 2008, o Governo da Indonésia expressou arrependimento pela violência que se registou em 1999, em Timor-Leste. Mas o presidente Susilo Bambang Yudhoyono rejeitou os pedidos para que os culpados fossem presentes a um tribunal internacional. Juntamente com os dirigentes timorenses, o presidente indonésio argumentava que os crimes do passado deveriam ser perdoados em nome do futuro."

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Excertos de:

RTP Notícias, 5 de abril de 2009 (Com a devida vénia...

https://www.rtp.pt/noticias/mundo/dez-anos-de-liquica-o-massacre-que-iniciou-a-orgia-de-1999_n212216

Pedro Rosa Mendes, da Agência Lusa

Díli, 05 Abr (Lusa) - O referendo em Timor-Leste, em Agosto de 1999, começou a ser pago meses antes pelos adeptos da independência. A grande cobrança de sangue iniciou-se em Abril, na igreja de Liquiçá, passam segunda-feira dez anos. O massacre de Liquiçá foi um marco na campanha que culminou na devastação de Setembro de 1999.

"Fomos avisados de que o ataque ia acontecer", recordou esta semana Marcelino Soares, de Maubara, mais a oeste de Liquiçá, à Agência Lusa. Marcelino Soares, caixeiro numa loja em Díli, recolhe aos fins-de-semana à sua aldeia isolada nas colinas de Maubara. Vive com a memória de dois massacres e três histórias de sobrevivência - incluindo a sua e a dos seus pais.

"Os meus pais estavam refugiados na igreja de Liquiçá a 06 de Abril. Quando a (milícia de Maubara) Besi Merah Putih (BMP) atacou, os que saíam da igreja eram mortos a tiro ou à catanada ou à cacetada", contou. Estavam cerca de duas mil pessoas na igreja e na residência paroquial, após um ataque na véspera à vizinha aldeia de Dato pela BMP.

"Só os que tinham algum conhecimento ou família é que se salvavam. Os outros eram mortos ali ou mais tarde, às escondidas. Os meus pais viveram porque ainda eram família de dois timorenses da tropa indonésia", prosseguiu o caixeiro de Maubara. Quando aconteceu o massacre de Liquiçá, Marcelino Soares estava em Lecidere, no centro de Díli, desde Fevereiro, refugiado na casa de Manuel Carrascalão, um dos líderes da plataforma independentista.

A 17 de Abril, a mesma milícia BMP de Maubara e a milícia Aitarak de Díli, dirigida por Eurico Guterres, atacaram a residência de Manuel Carrascalão, matando o seu filho adolescente e um número indeterminado de refugiados, talvez mais de cem segundo testemunhos recolhidos pela Lusa em Díli, Liquiçá e Maubara.

Marcelino Soares sobreviveu ao Massacre de Lecidere mas andou meses fugido nas montanhas a sul de Díli. Só muito depois do referendo conseguiu localizar os pais na fronteira com Timor Ocidental, para onde tinham sido levados à força após o referendo.

"O 06 de Abril anuncia o 17 de Abril e o que veio a seguir. Devem ser assinalados como um mesmo acontecimento. Os criminosos são os mesmos e as vítimas foram as mesmas, sobretudo gente de Maubara", afirmou à Lusa a filha de Manuel Carrascalão, Christiana, assessora do Presidente da República.

"O massacre de Liquiçá iniciou a orgia de violência de 1999", resumiu o historiador australiano Clinton Fernandes, em entrevista à Agência Lusa. Clinton Fernandes, entrevistado por telefone em Camberra a partir de Díli, recordou que o ataque de 06 de Abril "foi a primeira vez em que a santidade da Igreja foi violada". "Do lado indonésio a mensagem era clara: nenhum sítio é seguro, nem a Igreja pode proteger os timorenses", resumiu Clinton Fernandes, ex-oficial de informações das Forças de Defesa Australianas (ADF) que em 1999 acompanhava o desenrolar do drama timorense.

"Liquiçá foi também o primeiro massacre de larga escala em 1999 e a ocasião em que a Indonésia pôs em prática o modelo operacional que repetiu depois, desde a coordenação de forças militares e policiais com as milícias até à limpeza de provas e à eliminação dos corpos", explicou Clinton Fernandes.

O historiador exemplificou com "a limpeza do sangue ensopando o chão com café e o disfarce dos buracos de balas nas paredes". "O balanço mais exacto é de 86 mortos", disse Clinton Fernandes, citando a investigação conduzida pelo ex-diplomata australiano James Dunn.

Nenhum dos responsáveis superiores do massacre de Liquiçá e da campanha orquestrada de violência a que deu início foram até hoje trazidos à justiça, como salientou Clinton Fernandes. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rui, infelizmente há "práticas culturais" que podem pôr em risco (e põem) não só a saúde e a integridade física das pessoas como os seus demais direitos e liberdades fundamentais...Estou-me a recordar, na Guiné-Bissau, da festa do "fanado",os ritos de passagem da puberdade para a vida adulta, e que incluem a circuncisão (masculina e feminina), para mais feita em condições medonhas, em geral no "mato", fora das vistas da comunidade (sem anestesia, sem assepsia, etc.).

No caso das meninas, ainda mil vezes pior: trata-se de "mutilação genital feminina", uma prática "bárbara".. Estima-se que haja cerca de 140 milhões de mulheres mutiladas em todo o mundo... Apesar da campanha internacional e da ilegalização, ainda se pratica em 28 países de Africa mas também no Médio Oriente e na Ásia (incluindo a Indonésia)... sem esquecer a Europa (onde v9vem cerca de 500 mulheres mutiladas e mais de 180 mil mulheres e meninas em risco...).

https://www.europarl.europa.eu/topics/pt/article/20180122STO92230/mutilacao-genital-feminina-afeta-500-mil-mulheres-na-ue

Mas há outras práticas culurais que atentam contra os "direitos humanos" (tal como são universalmente aceites hoje), desde os casamentos forçados à poligamia...

O colonialismo europeu (e os seus "antropólogos", que enchiam de "etnografia" o Boletim Cultural da Guiné) aceitou, em nome do "relativismo cultural", estas práticas culturais dos povos colonizados e nalguns casos fiéis e preciosos aliados (como foi o caso dos fulas e outros na Guiné-Bissau).

Nem Amílcar Cabral nem Spínola alguma vez levantaram em público a sua voz de autoridade para falar da tragédia das meninas guineenses submetidas à "mutilação genital feminina"... Nem sequer as valentes combatentes do PAIGC, que eram apresentadas como heroínas do povo, a Titina Silá, a Carmen Pereira, e outras.

Tudo se passava no maior segredo do "gineceu", entre mulheres (inclundo as poderosas e sinistras "fanatecas"), sob a vigilância do poder falocrático do PAIGC (nas "zonas libertadas" onde estava a construir o homem e a mulher de amanhã) e das Forças Armadas Portuguesas (que defendiam os valores da civilização cristã e ocidental).

Nunca vi ninguém, no meu tempo, na Guiné, e na esfera das minhas relações, indignar-se contra a mutilação genital feminina e outras práticas culturais atentatórias da vida e da saúde da mulher guineense... Eu sabia que se fazia, mas nunca consegui pôr os meus soldados fulas a falar sobre isso. Era tabu. E eles aceitacam os usos e costumes dos seus pais, com nós aceitávamos os nossos...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rui, o drama de muitos países como Timor, Angola ou Guine-Bossau, que estão ainda, infelizmente, não lista, da ONU, dos "países menos desenvolvido
s", é que são muito jovens e a população está concentrada nas poucas cidades que há, no litoral...

Facilmente se constitui um "lumpen" que vive da e na economia paralela, incluindo a pequena delinquência. É um problema demográfico e social explosivo...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Hospital Nacional tem o nome de Guido Valadares desde 2003 em homenagem a dos combatentes da FRETILIN, morto em agosto de 1976 numa mina.

Nasceu em Dili em 1934, filho de pai goes e mãe timorense. Formou-se em enfermagem em 1959. Em 1971 era o enfermeiro-chefe do Hospital Central dr. António Carvalho.

Com a invasão da Indonésia, deixa mulher e cinco filhos e vai para as montanhas organizar o serviço de saúde da resistência timorense.

Morre em combate numa mina com mais camaradas do serviço de saúde, na zona de Aileu.