terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26274: Humor de caserna (87): A virilidade lusitana: das bagas do Sambaro ao estoicismo do Sousa (Jorge Cabral, 1944-2021)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71 >  O 1º cabo Monteiro (já falecido): "com um pequenino Alfero Cabral, às costas", legendou o cmdt do Pel Caç Nat 63, com graça ... A par da tragédia, a guerra da Guiné foi também um peça do Teatro do Absurdo... Jorge Cabral (1944-2021) tinha o grande talento e o especial mérito de nos mostrar, com um toque de genial humor castrense, esse outro lado da guerra, que era o nosso quotidiano de gente "saudavelmente louca", que se não fora esse "grãozinho de loucura" não teria vencido (leia-se: sobrevivido).

(Foto gentilmente cedida, pelo Jorge Cabral, em 2006, sem menção de autor, e que passou a ser parte do arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

 
1. Chega esta altura do Natal e eu sinto uma doce saudade de alguns amigos e camaradas que foram ficando pela picada da vida. Um deles é o "alfero Cabral", o Jorge Cabral (1944-2021), um dos "históricos" do nosso blogue... 

Já lá ficou ele, em plena pandemia, "sentado no marco quilométrico nº 77 da nossa picada da vida", cada vez mais cheia de minas e armadilhas...Sinto que tenho que ir reler algumas das suas "estórias cabralianas"... Para experimentar estar mais próximo dele, do seu legado, da sua irreverência mas também da sua empatia, da sua capacidade de compreensão e compaixão do outro...

Esta "estória" foi publicada há 18 anos, na quadra natalícia (*).. Talvez seja pouco ... natalícia mas é divertida, irónica, desconcertante. E a gente precisa de rir-se como só ele sabia pôr-nos a rir, a sorrir,  a pensar, com a sua graça brejeira e a sua ironia desarmante, desconcertante    (ninguém como ele para ser capaz de  "avacalhar" o sistema, a tropa, a guerra..., mas sem ódio, sem insultos, sem grosseria) .

Onde quer estejas,  Jorge, tu que foste noutra incarnação alferes miliciano de artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, região de Bafatá, Zona Leste, 1969/71), continua a inspirar-nos e dar-nos ânimo para podermos continuar a contar e partilhar as nossas estórias da Guiné, umas tristes, outras mais divertidas, umas mais safadas outras mais provocatórias, umas mais estúpidas outras mais inteligentes...

Bem sabes que nunca invejei (e tu também não...) o lugar de comandante de coisa nenhuma, no TO da Guiné, e muito menos deste tipo de destacamentos (como o de Missirá), isolados, na linha de fronteira dos setores, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos milícias com a sua numerosa família às costas, além dos cães e dos cabritos   e das galinhas (nunca vi gatos) 
,  e mais meia dúzia de graduados (1 alferes, 2 ou 3 furriéis, outros tantos cabos e especialistas de origem metropolitana), à beira do abismo, esquecidos e abandonados, sem eletricidade, sem bebidas, sem frescos, sem comida decente, sem artilharia... Enfim, entregues à sorte e ao azar...  E, ainda por cima, sem direito a um lugar na História. (No Arquivo Histórico-Militar, não há sequer  história destas subunidades, porque ninguém as escreveu.)

Amigos e camaradas da Guiné: não vejam nestas "estórias cabralianas" qualquer propósito de ofender a secular e nobre instituição militar, mas tão apenas o relato das manifestações de uma saudável loucura, própria dos seres humanos que são postos à prova em situações-limite...

Contrariamente a qualquer bestiário da guerra, as estórias cabralianas são um hino à idiossincrasia lusitana, à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de sobrevivência, de imaginação, de adaptação e de "desenrascanço" da nossa gente...

Eu sei que as estórias do Jorge têm fãs e detratores... Eu, que estou do lado dos fãs, tiro-lhe o quico, bato-lhe a pala, desfaço-me em adjetivos e louvores... Infelizmente este filão esgotou-se: uma doença crónica de evolução prolongada  cortou-lhe o fio da vida, o húmus do humor, a torrente da escrita,  já no final de 2021...

Fica a sua memória,  a sua verve, a sua capacidade de grande observador da natureza humana, o seu talento literário: ninguém como ele sabia, com duas pinceladas, criar uma personagem (um "boneco") e mostrar aquilo que é o único na espécie humana que é a compaixão (no seu sentido etimológico, cum + passio > sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor) e a capacidade de rir-se  de si próprio quando a gente se olha ao espelho... no outro.

O Jorge, que enquanto estudante universitário tinha devorado o Ionesco e o teatro do absurdo, não se colocava na situação, confortável, do marionetista, manipulando as suas criaturas... Ele fazia parte, de alma e coração, da peça e do cenário, e do "makng of" do seu teatro do absurdo...

Caro leitor: que não sejam precisas as bagas do Sambaro no teu/nosso sapatinho para nos pormos a sorrir, a pensar,  a ter esperança, saúde, boa disposição, amor, amizade, liberdade,  paz... E, já agora,  Bom Ano Novo, saudemo-lo, a ele que aí vem, cheio de promessas, de ilusões, de oportunidades e de ameaças como todos os Novos Anos que já vivemos... 


O "alfero Cabral", 
em carne e osso
A virilidade lusitana: das bagas do Sambaro ao estoicismo do Sousa

por Jorge Cabral
 (1944-2021)


Amigo Luís, cá continuo relembrando a vida nos Destacamentos, com a ajuda dos Amigos que me acompanhavam, e que me contam extraordinárias peripécias, algumas das quais eu já havia esquecido.

Num Destacamento isolado como era Missirá, a forma de estar e de viver dependia muito da personalidade do respectivo Comandante, suas capacidades, limitações e peculiaridades. Até porque as funções que lhe eram atribuídas, excediam a mera chefia militar. Médico, Psicólogo, Juiz, Conselheiro, superentendia em todos os assuntos, e do seu carácter podia resultar um férreo ambiente prisional, ou uma agradável comunidade de afectos, como creio ter sido o meu caso.

Claro que estávamos todos apanhados, mas numa loucura amena e saudável, que nos divertia e  
nos ajudava a mascarar a tristíssima rotina.

Todos, metropolitanos e africanos, alinhavam  n imaginação do alferes  que cada dia surgia com uma nova ideia. É por isso que devo ter material para centenas de estórias, desde a comemoração de São Mamadu, até o ter colocado as mulheres de sentinela…

As decisões mais difíceis aconteciam com as evacuações por doença, principalmente porque o meu enfermeiro, o maqueiro Alpiarça, quando não estava bêbado, para lá caminhava…
A estória que hoje remeto, descreve, precisamente, uma situação em que tive muitas dúvidas. Felizmente, o Sousa recuperou…

Bom Natal, Amigo! Grande Abraço!
Jorge (*)
______________


Aos domingos vestíamo-nos à paisana e dávamos longos passeios à volta da parada, imaginando praças, avenidas, ruas, adros de igreja e até estações de comboio. Depois entrávamos na Cantina e invariavelmente pedíamos:

− Um fino e uns  tremoços!!!

Não havendo tremoços, triplicávamos a cerveja, não sem o Pechirra, o nosso motorista, explicar a importância do acompanhamento em falta, o qual segundo ele possuía um monumental efeito afrodisíaco, pois…  E lá contava uma delirante estória das suas proezas sexuais. Só os soldados africanos e algum adido metropolitano periquito, ainda o escutavam, embora o seu calão portuense fosse dificilmente traduzível.

Uma vez o bazuqueiro Sambaro anunciou que possuía umas bagas suma (**) tremoço,  tão boas que um homem podia estar toda a noite… Achei piada. À basófia tripeira respondia a basófia fula… Afinal as diferenças não eram assim tão grandes…

O certo é que o Sambaro foi buscar as tais bagas, e calhou ao Sousa experimentar. Ao fim de uma hora resultou. Passadas quatro horas continuava a resultar. Oito horas depois o Sousa uivava de dor, e suplicava-me a sua evacuação. Que fazer?

Reuni com os furriéis. Podia eu lá evacuar um soldado com aquele motivo ?! Que escreveria na mensagem? Ataque de tes*o…? 

Pragmático,  o Amaral sentenciava:

− O que sobe, desce. 

E o Branquinho acrescentava:

− Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.

E quanto ao Pires inventava:

 − A curiosidade não matou, inchou o gato.

Tomada a decisão, o pobre do Sousa aguentou três dias, como um herói.

Quando terminei a comissão, deixei-lhe proposto um louvor “porque durante setenta e duas horas suportou com estoicismo a dor resultante de fogo interno, devendo ser apontado como exemplo da virilidade lusitana"...

Parece que o Polidoro (***) não concordou. Enfim, injustiças…

Jorge Cabral

( Revisão / fixação de texto, títulos, itálicos e negritos, notas, título: LG)
________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa

(**) Igual a, como (em crioulo)

(***) Polidoro Monteiro, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). Substituiu o tenente-coronel Magalhães Filipe.

(****) Último poste da série > 12 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26260: Humor de caserna (86): O ”turra” e a boina verde da enfermeira paraquedista (Maria Arminda, ex-ten graduada enfermeira paraquedista, FAP, 1961/70)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum!... Aquele que um dia foi atrás dos turras, gritando-lhes na orla da bolanha: "Não fujam, não tenham medo!... Sou o Cabral!"...

Anónimo disse...

Obrigado, é de morrer a rir!
Já tinha lido várias estórias, calabrianas, esta não.
Um Hino à virilidade dos tripeiros!!!
O Cabral é um dos meus ídolos do blogue, pelo que merece mais tempo de antena, mesmo que seja repetida muitas vezes.
Nasceu um ano depois de mim, e acabou em fins de 2021, tal como eu, aos 78 nos.
Só que o médico cirurgião quando me foi ver disse-me:
- Você já esteve do lado de lá, mas eu salvei-lhe a vida. Mais ou menos isto.
Só que eu não percebi o que ele tinha dito, porque eu não sabia onde estava e o que me aconteceu. Soube isso depois pela minha familia, mas demorou tempo a eu encaixar , tal as doses de droga que me foram metendo ao longo de muitos dias.

Cá estou, já celebrei os 3 anos da minha nova vida. Sou uma criança...

VT.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Cabral também era filho de militares e "menino da Luz" (leia-se: aluno do Colégio Militar). Embora não fizesse grande alarde disso...Ele era um iconoclasta!