terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26307: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (36): uma guerra que também era... ototóxica!

Uma relíquia farmacêutica: o célebre medicamento contra o paludismo, Pirimetamina, 25 mg,, LM (iniciais de Laboratório Militar)... Havia duas tomas (a pastilha à base de quinino dissolvida em água) por semana, às quintas e domingo, segundo o nosso camarada médico, Rui Vieira Coelho... A imagem é do António Tavares (ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), Havia diversos "mitos" à volta deste perofilático, e que levavam à recusa em tomá-lo: um deles é que “fazia mal...à tusa”!...

Segundo o nosso camarada Rui Vieira Coelho (ex-alf mil médico BCAÇ 3872 e BCAÇ 4518, Galomaro, 1973/74, hoje médico, refomardo do Porto), "nas crises palúdicas o tratamento era feito com Resochina em soro polielectrolítico e aplicação endovenosa e dava sempre uma incapacidade de alguns dias, sobrecarregando os colegas e diminuindo a capacidade operacional do grupo de combate a que pertenciam ou levando á substituição por outro pessoal o que moral e eticamente era reprovável no caso de serem feridos em combate" (...) (*)

Foto: © António Tavares (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



Uma guerra que também era... ototóxica

por Luís Graça


Um dia sonhaste que tinhas uns 'ouvidos novos' . Ou melhor, sonhaste que tinhas encontrado no lixo uns 'ouvidos novos'... e que os mandaste recuperar. De outra vez, o sonho era que tinhas recebido em "herança", de um amigo querido que acabara de morrer, um par de próteses auditivas novinhas em folha, além de uns  "mocassins" (que nunca chegiou a usar)...

Surdo que nem uma porta, o teu amigo nunca se habituara aos malditos aparelhos. Deixou de conviver,de aparecer na tertúlia dele, isolou-se e morreu sem um ai nem um ui, vítima do Covid-19...

Afinal, tens má consciência por toda uma vida em que foste predador do planeta. Agora, tarde e a mais horas, 'andas numa de reciclagem', gozam contigo os teus filhos e os teus amigos. Reciclas tudo o que podes, até querias pôr "ouvidos novos", reciclados, imagina!... (Pois é, não sabes que raio de planeta vais deixar para os teus netos e bisnetos, se os tiveres.)

− Rins, fígados, corações, e outros órgãos, dá para transplantar... Mas ouvidos, ó senhor professor ?!... Implantes cocleares, queria o senhor dizer − gozou contigo o otorrino.

− Có... quê ?! ... Ouço mal, desculpa.

Foste fazer um audiograma, mas primeiro passaste pelo otorrino, teu velho amigo e conhecido, para limpar a merda dos ouvidos. Um deles tinha "favos e favos de mel e cera". 

−  Mais cera do que mel. Ou era só cera ?...

− Um "pedregulho"! − disse ele, para teu espanto, apresentando-o na cabeça do dedo mindinho.

Ficaste assustado. Costumvas usar cotonetes...

− Qual quê ?!... Os ouvidos limpam-se com os cotovelos... E também podes usar um óleo, até o creme Nívea, para lubrificar o ouvido... Todos os dias.

Há já uns anos que ouvias mal, já não ouvias os alunos da terceira fila na sala de aulas. Muito menos o safado e emproado locutor de serviço ao telejornal. Deixaste de ouvir e ver televisão, que, além disso,  só te trazia más notícias.

Nem podias ir ao teatro, que os atores só falavam para eles e entre eles. E a primeira fila era só para os convidados e amigos bons de ouvido. E mesmo para ouvir a tua querida 9.ª sinfonia tinhas que levar um "funil" (punhas a mão atrás da orelha, a fazer de funil), o que irritava o espetador da fila de trás. E logo tu que eras um melómano... Então, música de câmara, só sentado na primeira fila. 

Desististe.

− É mau sinal um gajo começar a desistir. De fila em fila acabas na última. E depois é o corredor do hospital, o terminal da morte.

Mas não eras tão melómano como aquele professor do conservatório nacional de música que te garantia que de vez em quanto tinha que ir a Berlim "limpar o ouvido"...

− "Limpar o ouvido ?

− Sim, ouvir a orquestra filarmónica de Berlim.

O sacana do otorrino, teu amigo, há uns anos atrás, lá no consultório dele, encolheu os ombros, e interpelou-te:

− Mas o que é o senhor professor quer que eu lhe diga ?!... A idade não perdoa, meu caro, a perda auditiva é irreversível"...

− Merda para a idade, senhor doutor, e então os milagres das novas ciências médicas para cujo peditório também dei durante anos e anos ? Eu quero uns ouvidos novos, quero uma anca nova, quero uma recauchutagem do esqueleto, como deve ser, da cabeça aos pés... Tudo a que tenho direito...

O otorrino riu-se à gargalhada.

− A saúde custa cada vez mais caro. É já um bem de luxo. Nunca será para todos.

Nunca foste egoísta, agora estás a sê-lo... Andaste cinquenta anos a descontar para a ADSE (e continuas a descontar), nunca tomaste um medicamento, nunca foste à faca, nunca gastaste um chavo ao SNS, nem ao provedor da santa casa da misericórdia lá dá tua terra de que eras irmão... Foste amigo de ministros da saúde. Tinhas saúde para dar e vender. Nunca meteste uma cunha a Deus nem ao Hospital de Todos os Santos, também nunca te calhou o euromilhões ou a sorte grande, mas a verdade é que também não jogavas, e quem não arriscava não petiscava, lá dizia o saloio do Zé Povinho, que aprendeu a acender uma vela a Deus e ao Diabo....

Não jogaste, não ganhaste, não arrombaste os cofres da santa casa da misericórdia quando foste mesário. Agora andas a fazer as contas à vida: tanto para os ouvidos, tanto para a anca, tanto para os joelhos, tanto para a farmácia...

− E que Deus nos livre do raio do Alzhemeir! − pediste tu, à tua médica de família como "prenda de Natal"....

E no outro dia foste à audiologista:

− Otites líquidas, teve em pequeno? −perguntou-te ela, inquisitorial.

− Minha querida, quem as não teve, em pequenino, ou no Portugal pequenino em que nasci, vivi e cresci ?

E depois acrescentaste:

− E o meu médico era a ti'Gertrrudes, minha vizinha, da minha rua, guardadora de segredos terapêuticos milenares... Do sarampo à varíola, da pleuresia aos furúnculos, do quebranto à espinhela caída, tinham soluções milagrosas para tudo...

Algumas "repugnantes", como a gordura de galinha em compressas no peito...

− Médicos ?... Só havia um lá na terra, e a gente só o chamava no estertor da morte ou nalgum parto de má hora.

E por descargo de consciência, ainda a esclareceste, a tua audiologista, sobre o teu passado:

− Depois disso, estive no século passado na Guiné, na guerra, ouviu falar ?... A menina é jovem, já nasceu depois do 25... E mesmo que fosse antes, nunca iria para a tropa. Só se fosse enfermeira paraquedista, conheci algumas na Guiné... Mas contavam-se pelos dedos a mulheres que foram à guerra...

− Já nasci depois, mas ouvi falar! − ripostou ela.

−  De quê, da guerra ?...

E enumeraste um rol de situações que só se viam nos filmes:

− Tiros, explosões, emboscadas, minas anticarro, acidentes com viaturas, quedas mais ou menos aparatosas, picadas, solavancos, cabeçadas, cones de fogo nas trombas, trambolhões, bezanas, esquentamentos, febres palúdicas... sabe como são estúpidas as brincadeiras da guerra, quando se tem vinte anos, sangue na guelra e as hormonas a rebentar a pele...

− Ah!, já sei!... Quinino, ototoxicidade!

− O quê... ?

− Há certos medicamentos que são otóxicos... Já passaram por aqui alguns antigos combatentes da guerra do Ultramar que se queixavam do mesmo mal... Surdos que nem uma porta!

− Ah!, o quinino, a pastilha LM, do Laboratório Militar, que a gente tomava regularmente, às refeições... Por causa da malária ou paludismo... Lembro-me !

E, retomando o fôlego:

− Eureka!... Se me lembro !... Um pacotinho de sal e outro de quinino, ao almoço!... O quinino, pelo menos duas vezes por semana.

−Parece haver evidência científica de que o quinino pode provocar danos ao sistemas coclear e/ou vestibular"...

− Desculpe, não percebo nada da anatomia e da fisiologia do ouvido... Mas com essa do quinino, é que a menina me estar a lixar!... Não sabia, mas devia saber, porra, afinal andei anos e anos a falar de saúde e segurança do trabalho, de surdez profissional, de efeitos extra-auditivos do ruído como o stress..

− Não sou farmacêutica, mas há para aí mais do que uma centena de medicamentos ototóxicos. Acrescente-lhe o antibiótico, a penicilina, medcimentos oncológicos...

− Porra, tomávamos aos milhões, a penicilina...

− Agora, não há remédio, e não precisa de dizer palavrões... Sou sensível de ouvidos... Ou melhor: felizmente há remédio. Deixe isso comigo.

− Remédio ?!...

− Vamos lá ver o audiograma e, depois, pôr estes brinquinhos no ouvido, devidamente regulados...

− Com essa é que me tira o sono, que a guerra era tóxica, eu já o sabia, mas que também podia ser ototóxica, não me passava pela cabeça!... Devia pedir uma indemnização ao Estado!...

− É mau para o Estado... mas é bom, para nós, multinacionais que vendemos aparelhos auditivos, um negócio de milhões (aqui para nós que ninguém nos ouve)... − e olhou para a porta do gabinete para confirmar que estava fechada.

Não podias estar mais grato à tua audiologista:

− Já percebi, é bom que os antigos combatentes não saibam certas coisas que faziam mal à saúde... Afinal, só os juízes é que são cegos, surdos e mudos como o macaco...

− E têm que ser bem pagos por isso... − arrematou a audiologista.  
− Adminitrar a justiça sem olhar a quem.

− Minha querida, estou encantado por ouvi-lo... Sabe, estou até a simpatizar consigo!".

... Saieste da loja com uns 'ouvidos novos'. Feliz como o gaiato, que acaba de receber um brinquedo novo. Podias agora ouvir todas as conversas, mesmo baixinhas... Até as bisbilhotices e as conversas dos espiões!... Mais importante: podias ouvir o mar no mês de agosto, e o vento a dar nos búzios dos moinhos da tua infância...

Algumas conversas bem tu as dispensavas... Mas não há mundos perfeitos... Mais vale, afinal, andar neste mudo de muletas do que no outro em carretas...

Em boa verdade, compraste uns aparelhos novos. Os do teu amigo, esses, é que foram para a  "pubela",  para a reciclagem... Que desperdício!.. Também não quiseste  os sapatos do defunto, uns belíssimos e confortáveis "mocassins" que ele comprara em Paris,,, Por superstição, por preconceito, por respeito .... Ias lá usar sapatos e próteses auditivas do norto!

Mas queixaste-te, à menina audiologista, que era era indecente pedirem-te 8 mil euros por um aparelho auditivo XPTO... Mesmo com desconto de 50% por seres conhecido da casa... e a tua patroa já ser cliente da marca.

Preferias uns, em segunda mão, reciclados. Do teu amigo defunto, que nunca os usou. Sentiste ofendido com o preço altamente inflacionado do raio dos aparelhos, tu que lutaste na guerra pela tua Pátria e que, se calhar, foras vítima da ototoxicidade provocada pelas drogas antimaláricas do Laboratório Militar... 

Em vez de uma cruz de guerra, o Estado devia dar-te uns 'ouvidos novos', como tu chamavas às próteses auditivas... Humor negro à parte, pagaste e não bufaste!... Quatro mil euros, já com desconto e com IVA. A ADSE deu-te mil e tal e já está. Ainda estavas a pagar a p...da fatura da guerra. (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13743: Os nossos médicos (80): Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico dos BCAÇ 3872 e 4518 (12): Até a Maria Turra dizia que o antipalúdico Pirimetamina, do Laboratório Militar, fazia mal à tusa...

(**) Último poste da série > 6 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer

1 comentário:

Eduardo Estrela disse...

Querido Luís! Andamos todos a pagar a factura da merda da guerra. Duma forma ou outra todos temos mazelas resultantes da defesa do império da CUF. O meu ouvido esquerdo tem uma capacidade auditiva de 5%, resultado obtido através duma audiometria que fiz há anos . atrás. Vou convivendo com quem me rodeia, obrigando-os a repetir a maior parte das coisas de modo a eu as entender. O ouvido direito tinha 95% de eficiência aquando do exame feito mas agora deve estar menos eficiente. Que o natal nos traga a nós e a quem nos fala a paciência necessária para essa forma de comunicação.
Abraço fraterno e boas festas
Eduardo Estrela