quinta-feira, 1 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P831: Tripas à moda do Celestino (Zé Neto)

Depois de uma longa travessia pelo deserto anti-tabágico, eis que temos de volta, curado do cigarro, o nosso patriarca Ze Neto que exerceu funções de primeiro-sargento na CART 1613 (Guileje, 1967/68) e é hoje um capitão reformado que gosta de contar estórias do preto da Guiné aos netos (1)... Hoje temos mais uma boa estória do Zé, divertida, bem contada, reveladora do sentido de humor castrense que a malta tinha que ter, lá no cú de Judas. (LG)

Meu velho:

Isso [o blogue] está a ficar muito fúnebre.

Vê lá se num intervalo metes mais uma do meu celebrado comandante, que segue em anexo apenas com o intuito de alegrar as hostes.

A propósito, já agradeci ao Zé Martins o excelente trabalho que nos proporcionou. Detectei um ligeiro erro que já lho indiquei. Isto até sem cigarros funciona!!!

O abração

do Zé Neto
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Tripas à moda do Porto

(Excerto das "Memórias da minha vida militar")

José A S Neto


Durante a inclusão das minhas Memórias de Guilege no blogue (1), o nosso chefe Luís titulou, por sua conta e risco, o Post DXXXIV de Gazela com chouriço à moda do Celestino (2).

Para os distraídos ou mais recentes nestas coisas do blogue quero apenas salientar que este senhor era o meu comandante de batalhão. Um grande gourmet e artilheiro nas horas vagas.

O episódio aconteceu nos primeiros tempos da nossa estadia na Guiné, faustosamente aquartelados em Brá, enquanto o Estado-Maior do CTI se entretinha a cortar o batalhão em fatias e mandá-las de presente ao comando de outras unidades espalhadas pelo território para reforço. Estávamos em fins de 1966, princípios de 1967.
Então, parafraseando o nosso amigo Luís, vamos às tripas à moda do Celestino:

Uma das preocupações doentias do Celestino era a alimentação. Não tanto pela quantidade e qualidade (isso era da responsabilidade da delegação do MM) mas mais pela apresentação da ementa que, diariamente, lhe era mostrada pelo oficial de rancho.

A descrição dum prato de carne do borrego guisada com batatas e feijão verde, tal como vinha enunciada pela MM, não satisfazia o Celestino. Havia que dar um nome ao manjar, como por exemplo: Borrego au sauté ou coisa parecida.

Foi assim que o Alf Mil Sampaio, oficial de Manutenção de Material do batalhão e, por escala, na altura oficial de rancho, uma certa manhã levou o Menu ao comandante.
- O que é isto? Tripas à moda do Porto com feijão branco? Você não sabe que este prato é feito com grão-de-bico?
- Meu comandante, eu sou de Vila Real, fiz o liceu no Porto e sempre comi tripas com feijão.
- Qual quê? É com grão.

Com grão, com feijão, não havia meio de chegarem a um entendimento.
- Você já vai ver. Oh Pereira, vai às casernas e traz-me um soldado do Porto.

Veio o tripeiro e o Celestino perguntou-lhe qual era o vegetal seco que acompanhava as tripas.
- É feijão branco, meu comandante.
- Põe-te a andar. Não sabes o que comes!
- Pereira, vai buscar outro mais esperto do que este.

Veio o segundo e o diálogo repetiu-se. E a resposta continuava a ser feijão branco.
- Pereira traz-me um gajo do Porto com boas parecenças que estes devem ser uns vira-latas da Ribeira.

Presente o terceiro, um cabo, o Celestino fez a sacramental pergunta e o rapaz respondeu sem vacilar que lá no Porto as tripas se comiam com grão-de-bico.
- E feijão branco?
- Nem pensar, meu comandante, o grão é que dá substância às tripas.
- Estão a ver?... Estou condenado a lidar com amadores…

Já fora do gabinete, o Alf Sampaio, que conhecia o cabo mecânico entrevistado e sabia que ele era da área de Santarém, perguntou ao cabo ordenança:
- Que truque é este, Pereira?
- Oh meu alferes, já viu o que é fazer cem metros para lá, outros cem para cá e a coisa ia dar sempre ao feijão?
- Agarrei este ali na estrada, ensinei-lhe o padre-nosso, meti-lhe um bocado de sotaque na cabeça - eu até sou de Gondomar - porque se não fosse assim a esta hora ainda andava a rebocar gajos do Porto até ao teimoso do nosso comandante.

O almoço daquele dia foi Dobrada com farrepas de couve e grão duro que nem balas. Com um bocado de sorte lá aparecia uma rodela de chouriço.

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(1) 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

Guiné 63/74 - P830: O meu avô Victor Vaz Martins, dos 'Gã' Martins de Empada (Leopoldo Amado)

Texto do Leopoldo Amado, historiador e membro da nossa tertúlia:

Caro Marques,

Fico contente em saber que estiveste em Empada e que mantens relações com população local. Empada foi o torrão onde nasci, apesar de ter crescido em Bolama e depois Bissau. O meu avô, Victor Vaz Martins, pai da minha mãe, era ali agricultor e comerciante, tendo mesmo chegado a desempenhar as funções de chefe do posto administrativo local.

Certamente deves ter ouvido falar dele, pois era uma figura muito conhecida não só em Empada, mas igualmente em Cubisseco, Dar-es-salam e outras localidades circunvizinhas de Empada. Porém, Victor Martins morreu em 1962, após ter sido preso e acusado pelas NT de prestar apoio e colaboração ao PAIGC. Soube-se mais tarde que fora fuzilado e enterrado numa vala comum, com muitos outros guineenses, todos acusados de subversão. Mas isso é uma outra história…

Eu próprio já escrevi sobre Empada, numa tentativa literária de evocação desse passado meio verídico e meio mítico em que o meu avô é referenciado como o verdadeiro patriarca da família e em que Empada prestou-se como cenário de uma quase epopeica dimensão da partilha, protagonizada na época pelo Martins. ( significa em crioulo família, no sentido alargado).

Prometo partilhar contigo esse texto ficcionado que escrevi há já uns anos, onde procurei ficcionar várias estórias entrecruzadas sobre Empada, as quais foram-me contadas e reproduzidas pela minha mãe e tios, mas também onde paradoxalmente narro a minha própria tentativa de reconciliação com Empada, afinal, terra que me viu nascer e que, por capricho do destino, só fui conhecer 29 nove anos após o meu nascimento.

Assim, caro Marques, agradeço de antemão qualquer outra arremetida textual ou iconográfica sobre Empada, qualquer coisa suplementar que possas saber ou ter guardado (fotos, p.e.) e que queiras partilhar, pois ainda vivo com a sensação algo curiosa de estar em divída com a terra que me viu nascer e em que cetamente os Martins conheceram o auge dos tempos idos e a grandeza da terra.


Um abraço amigo

Leopoldo Amado

Guiné 63/74 - P829: Cancioneiro de Empada (Xico Allen)

Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > Abril de 2006 > O Xico Allen e a sua filha, Inês, observendo um abrigo em ruínas do antigo aquartelamento das NT. Ele esteve por aqui, com os seus camaradas da CCAÇ 3566 - Os Metralhas (1972/74).


Foto: © A. Marques Lopes (2006)


Enfim, esta foi uma agradável surpresa que o Xico Allen nos fez: em primeiro lugar, ao seu companheiro de viagem, o Marques Lopes; e depois a nós, membros desta tertúlia.

Quando, em Abril de 2006, ele voltou à Guiné, de jipe, e revisitou Empada, pela enésima vez, mas desta vez com a sua filha Inês e o Marques Lopes, o Xico, que é uma homem de acção, mostrou uma outra face que, se calhar, nem a filha conhecia de todo, a de poeta popular, nortenho, da Ribeira, ao rapar de uma folha de papel onde tinha escrito estes versos no seu tempo de metralha, em Empada, mesmo no local do crime... Com a devida autorização, vamos aqui divulgá-lo em primeira mão (embora já tenha circulkado pela tertúlia)...

Já pedi ao Zé Teixeira, seu vizinho de Matosinhos, para dar os meus parabéns ao Xico Allen, por esta amostra do Cancioneiro de Empada... E fiz-lhe um pedido: "E se ele tiver mais, que nos mande (por teu intermédio ou do Marques Lpes ou da Zélia, mãe da Inês, já que ele insiste em não ter endereço de e-mail e não querer ouvir falar em computadores)...

Este pedido é, de resto, extensivo, a todos os amigos e cmaradas: "De facto, há para aí muito poeta escondido nos abrigos do nosso tempo... Esse material poético é precioso: ele diz mais do que muita fotografia... Vê se apanhas mais coisas destas... Já leste os versos, que o A. Marques Lopes mandou para a tertúlia ? Vou publicar, para chegar ao grande público"...

Depois do Cancioneiro de Mansoa (1), de Canjadude (2) e de Bafatá (3), temos agora o de Empada, sem esquecer o de Gandembel (4). Bem hajam os poetsas da nossa terra. (LG)

I
Antes de chegar à Guiné
Recebi uma medalha
Hoje ainda a conservo
Com o nome de METRALHA
II

Viajei de avião
Rumo à cidade de Bissau
Às primeiras impressões
Não me pareceu muito mau

III

Depois de lá chegar
Segui pr’ó Cumeré
Fui conhecer o mato
Para saber como é

IV

Quinze dias durou o estágio
P’rá condução na picada
Depois fui obrigado
A juntar-me à macacada

V

Quando cheguei a Bolama
Muita fome lá passei
De fome julguei morrer
Mas desta ainda escapei


VI

Bolama ficou para trás
E rumei para Empada
Lá ia ser melhor
Era o que tudo pensava


VII

Empada estava à vista
Que era o nosso destino
Andei pela mão dos grandes
Como se fosse um menino


VIII

De noite cheguei a Empada
Estava tudo iluminado
De manhã fui passear
Fiquei decepcionado


IX

Comecei a comer melhor
Depois que cá cheguei
Mas foi à minha custa
Pois cá me desenrasquei


X

Houve cabritos e cabras
Mortos a tiro e paulada
Que para matar a fome
Não nos custava nada


XI

Neste rol de matança
Também há porcos e leitões
Que para nós mais tarde
São grandes recordações


XII

Nos dias de avionete
Anda tudo em reboliço
Não só esperamos correio
Como presunto e chouriço


XIII

Agora que somos velhos
Esperamos rendição
Porque estamos quase
No fim da comissão


XIV

E o tempo vai passando
Com muita dificuldade
E vivo ansiando
Voltar à minha cidade


XV

Nas noites de Inverno
Mil amarguras passei
E nas horas de reforço
Muita chuva apanhei


XVI

Trovoada e relâmpagos
Iluminavam como o dia
Não desejo que ninguém passe
Aquilo que eu não queria

Xico Allen


Comentário do A. Marques Lopes:


Ainda deu para poemas... trovas à fome que passa, trovas à chuva que cai.


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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

(2) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

(3) Vd. post de 31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (1): Obras em Piche

(4) Vd. post de 30 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P828: 'Retido pelo IN': o caso do meu amigo Tala Djaló, ex-fur grad 'comando' da 1º CCmds Africanos, desaparecido em Conacri, no decurso da Op Mar Verde, em 22/11/1970 (Hugo Moura Ferreira, ex-alf mil 1621, Cufar, e CCAÇ 6, Bedanda, 1966/77))




Cópia do aerograma (frente) enviado pelo comando africano Tala Djaló, com data de 21 de Outubro de 1970, enviada de Fá Mandinga (Zona Leste, Sector L1, Bambadinca) , onde estava colocada a sua Companhia de Comandos Africanos, à ordem do Com-Chefe, a um mês da sua trágica partida para Conacri.

Foto: © Hugo Moura Ferreira (2006).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Luis:

Tal como me pediste para te informar quando soubesse algo do meu amigo Tala, depois de ter pedido ajuda ao nosso amigo tertuliano, José Carlos Mussá Biai, de que não recebi feedback (1), junto estou a enviar-te, em anexo Um desabafo.

Abraço.

Hugo Moura Ferreira
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Luís:

Estou triste… Deixa-me desabafar…

Vou fazê-lo ao correr da pena sem rever para que o que aqui te vou contar se apresente como a forma mais pura do meu sentir.

Recordas-te de uma mensagem que enviei, de que te dei conhecimento, a solicitar ajudas no sentido de tentar encontrar o meu amigo Furriel Graduado Comando Tala Biu Djaló?

Pois o facto é que o encontrei.Mas parece-me que estou a viver um daqueles filmes que retratam os problemas entre as famílias dos desaparecidos na 2ª Guerra Mundial em que as viúvas (?) casavam, tinham filhos e mais tarde os maridos, dados como mortos, por desaparecidos em combate, apareciam.

Quem me dera que este fosse um filme e que, como tal, acabasse com um final feliz com o aparecimento do Tala. Mas eu sei que não vai ser assim! Isso dá-me uma tristeza tamanha e ainda mais quando sei, embora de forma oficiosa, e o compreenda, o seu nome, tal como o de outros nunca irá aparecer nas nossas listas de mortos nas Campanhas de África.

Pois ele faz parte de uma lista de mais de uma vintena (ele é o 3º) de militares da 1ª Companhia de Comandos Afriacanos que ficaram em Conacri, na Operação Mar Verde, que tem como titulo "Retidos pelo Inimigo".

Ao falar com quem está envolvido nesta operação de registo histórico, foi-me afirmado que, como os vários Governos, desde essa época até hoje, não podem (esta é a palavra exacta, dado que à face do Direito Internacional poder-nos-ia ainda hoje obrigar a pagar indemnizações elevadíssimas a um país estrangeiro – foi esta a explicação) assumir oficialmente o episódio. Como tal não poderemos envolver, nem sequer a diplomacia para saber de forma oficial o que aconteceu àqueles militares que todos nós sabemos foram fuzilados logo a seguir ao fiasco da Operação ou morreram durante a mesma, mas cujos corpos não atravessaram a fronteira.

Durante a conversa falaram-me de um Alferes Comando europeu, que teria sido morto em combate e que tinha ficado no terreno, mas que o pessoal voltou a trás para o ir buscar e que passou a fronteira às costas dos camaradas.

Perante esta situação de "Retidos pelo Inimigo", apenas me interrogo o porquê desta situação, que certamente será comum aos diversos teatros de operações, não fazer parte das listagens de baixas que tivemos com as nossas campanhas em África.

Poderia eventualmente ser uma listagem paralela às dos mortos em combate, em que constassem os "Desaparecidos e os Retidos”. Gostaria de ver essa lista publicada oficial ou oficiosamente, nem que fosse no nosso Blogue-fora-nada.

Realmente eu entendo que não podem ser dados como mortos porque o podem não estar. Conta-se nos vários departamentos por onde passei a ocorrência de um determinado militar de uma das Companhais de Comandos Africanos ter sido dado como morto e, quando da entrada em vigor da Lei 9, apareceu um requerimento de contagem de serviço para efeitos de aposentação, do referido militar que se veio a constatar que era vivo e residia em Portugal.

Bom, deixa-me viver a recordação do Tala… Para isso vou juntar, a título de curiosidade, a reprodução do último aerograma que o Tala me mandou e que periodicamente dou por mim a lê-lo.

Um abraço.

Hugo Moura Ferreira


PS – Estou a enviar-te isto desta forma para que faças uso dela da maneira que melhor entenderes. Era minha ideia, quando comecei, apenas desabafar, sabendo que tu compreenderias, mas se entenderes publicar alguma parte, já que não referencio ninguém, nem nenhum serviço, em especial, não haverá qualquer problema.

Gostaria, no entanto, de alvitrar que, como nós gostamos da Guiné, também de alguma forma seria interessante fazer referência aos que morreram do outro lado. Seria talvez o mínimo que nós, no Blogue-fora-nada, poderíamos fazer. Aliás seguindo a ideia que está expressa no ponto (vi) das Regras da Tertúlia dos Amigos e Camaradas da Guiné: "respeito pelo inimigo de ontem (que, sempre o disse pela boca do seu líder histórico, nunca lutou contra o povo português, mas contra um regime político)"...

Não haverá ninguém que tenha sido do PAIGC e que queira, sem ressentimentos, entrar neste grupo? Certamente depois viriam mais, pois com toda a certeza veriam que seriam bem recebidos. Estou certo ou não? Se calhar isto é uma ideia utópica... ou talvez não.

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Nota de L.G.:

(1) Cópia da mensagem enviada pelo Hugo Moura Ferreira, em 19 de Maio último, ao José Carmos Mussá Biai, com conhecimento ao editor do blogue:

Assunto - Operação Mar Verde

Caro Eng.

Começo por me apresentar e para tal faço-o da forma mais simples, indicando-lhe o link do nosso Blogue.

Depois desta cómoda apresentação queria, caso lhe seja possível dar-me algumas indicações ou se possivel me indicasse alguns contactos para o fim que tenho como objectivo. Mas passo a explicar-lhe, tentando ser sucinto.

Entretanto, embora leve esta mensagem ao conhecimento do Luís Graça, apenas por questões éticas, já que entendo que, tendo ele tanto trabalho com o Blogue, promovendo também estes contactos e ser justo que saiba o que cada um de nós anda a fazer, gostaria de lhe solicitar que não fosse levado ao conhecimento dos Tertulianos o seu conteúdo, visto que este é apenas mais um passo para eu ver se chego a alguma conclusão do que a seguir vou expor.

Assim, se o verificar no Blogue, eu já fiz algumas referências ao Tala Biú Djaló ou Manuel Talabiu Djaló. Então a questão coloca-se da seguinte forma:

Embora sabendo, de forma oficiosa, da morte do Tala, em combate, na Operação Mar Verde, em Conakry, nunca consegui encontrar o nome dele referênciado nas listagens até hoje publicadas, nem no Monumento do Bom Sucesso.

Perante tal, resolvi pesquisar e desloquei-me ao Arquivo Geral do Exército onde localizei a ficha dele como Alferes do Pelotão de Milícia 143, junto da minha CCAÇç 6, que terminava com a indicação de um ferimento em combate em 1967 e a transferência para a 1ª Companhia de Comandos Africanos.

Confirmo essa transferência porque já ele ali era Furriel, quando me enviou o último aerograma, em 23 de outubro de 1970 (ver anexo). A Operação Mar Verde foi em 22 de novembro de 1970. No entanto, continuando a pesquisa nada mais foi encontrado. Tive inclusivamente na minha presença uma listagem dos militares daquela Companhia , mas na mesma também não constava o seu nome.

Perante esta situação enviaram-me para o CECA (Comissão de Estudos das Campanhas de África), onde são tratadas as listagens relacionadas com estas matérias. Ali ainda não fui definitivamente esclarecido, tendo tal situação sido transferida para a próxima 4ª feira, quando ali voltar, mas foram-me avisando que se calhar haveria dificuldade em saber algo mais do que aquilo que eles já tinham. Vamos a ver.

Então o que me traz até si, muito objectivamente é o seguinte:

- Será que terá contactos com antigos elementos da 1ª CCmds Africanos ?
- Estaria disposto a colocar-me em contacto com esses elementos?
- Poderia dar-me alguma opinião acerca de outra forma de eu encontrar a memória deste meu amigo?

Desculpe trazer-lhe esta questão mas como verifiquei que o meu caro amigo está bem relacionado e é guineense, talvez possa proporcionar-me alguma ideia ou hipótese para eu, de forma oficiosa, me apresentar junto das entidades oficiais com elementos objectivos que possam, no caso do Tala que chegou a visitar Portugal, com o prémio Governador da Guiné, ser feita a justiça de o integrar nas listas dos que morreram, como neste caso, por algo em que acreditavam.

Ainda tenho presente, como se fosse hoje, a resposta que me deu quando eu lhe disse, referindo-me ao risco que ele corria com tantos anos de actividade operacional, que o "Cântaro tantas vezes vai à fonte que um dia quebra-se". Então disse ele, "Pois mas eu tenho que o fazer. Se eu vou ser o próximo Régulo do Cantanhez, os outros vêm-me perguntar: Então tu é que és o Régulo e nós é que andamos a defender aquilo que depois vai ser teu?".

Afinal, tinha dito que seria sucinto, mas parece que não o fui. Como tal, vou terminar aqui e agradecer-lhe antecipadamente qualquer ajuda que me possa prestar... E ao Tala, naturalmente.

E caso vá até ao Bom Sucesso no 10 de Junho... Quem sabe se não nos encontraremos. Eu não falho!

Cumprimentos.
Hugo Moura Ferreira

Guiné 63/74 - P827: Cruz de paz com palma... (A. Marques Lopes)

Texto A. Marques Lopes:

Caro amigo Luís

Eu não sei se a cruz de guerra tinha palma... mas eu não tenho dúvidas que mereces uma cruz de guerra de primeira classe com (muitas) palma(s). Porque fizeste um trabalho de sencional militância na procura das referências àquelas lápides que eu fotografei no cemitério de Bissau (1). E a tua militância merece condecoração, se calhar uma torre e uma espada pela luta que vens a travar pela recolha da nossa memória, que é mesmo bom que não seja esquecida.

O teu contributo e o incentivo ao contributo dos outros têm sido um elemento fundamental para que esta história, e a estória de cada um, não caia no esquecimento. É uma luta contra uma tendência que se pretende imprimir na nossa sociedade, e tu és um vulto de topo nesa luta. Parabéns!

Sempre me interroguei como seria possível encontrar os dados completos daquelas campas. Tive dúvidas, até porque, embora conhecesse a página do Jorge Santos, nunca me deu para ver o Memorial. Mas tu, um homem prático da ciência, estás atento. Ainda bem!

Aproveito para fazer uma crítica àquele memorial que está em Belém:

(i) não estão lá os que morreram no cativeiro em Conacri (por causa da guerra...);

(ii) não estão lá os desaparecidos em campanha (também na guerra..., os três da CART 1690 sei que morreram mesmo);

(iii) e não estão lá todos os mortos por doença (porque lá estiveram, na guerra...). Critério que não me parece justo.

Um grande abraço
A. Marques Lopes

Comentário de L.G.:

Querido amigo e camarada António: A condecorarem-me (de que Deus me livre!, como se dizia até finais do Séc. XVII, quando se pronunciava a terrível palavra Peste), a condecorarem-me, algum dia, que seja ao menos com a Cruz da Paz (sim, pode ser com palma...)!...

O teu elogio é generoso mas excessivo. Todos, na tertúlia, procuramos fazer o nosso melhor, utilizando diferentes talentos, habilidades, competências, saberes, experiências. Pegando, enfim, no instrumento que sabe, melhor ou pior, tocar. A grande verdade é que nenhum de nós é perfeito, mas juntos... podemos sê-lo. Espírito de corpo: não era assim que nos ensinaram em Mafra, nas Caldas, em Tavira, em Lamego, em Santa Margarida ? E que depois pusemos (ou tentámos pôr) em prática em Sinchã Jobel, na Ponta do Inglês, no Choquemone ou em Guileje ? Pelo menos, para saírmos da Guiné com a cabeça levantada, sem a morte na alma, com a cabeça entre as orelhas, com a dignidade de homens e de portugueses...
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

quarta-feira, 31 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P826: A legenda do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)

Texto do João Tunes:

Caro Luís,

Muito me impressionaram as imagens trazidas pelo nosso camarada Marques Lopes sobre os "restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram".

Dei conta do meu grito de indignação partilhada no meu blogue e conclui assim:

"Um país que não respeita os corpos dos mortos que mandou combater por ordem do governo da pátria, ou do governo do raio do império, permitindo dar a dignidade do luto pelos seus, é um país sem vergonha perante os vivos porque despreza os seus mortos."

Fazendo o meu percurso de dor e repulsa pelo abandono, através das imagens, reparei que a lápide do "lendário Capitão Comando João Bacar Jaló" (tombado no tempo em que ainda estava na Guiné, tendo-lhe deus - o deus da guerra - poupado, desta forma piedosa e antecipadora, a ignomínia de ser fuzilado, sem julgamento, pelo PAIGC e no pós-independência, isto se não tivesse podido fugir e voltar a estar sob as ordens de Alpoim Calvão e Spínola no MDLP e a participar na rede bombista) se apresenta não só com melhor aspecto de conservação, como é diferente, nas inscrições, das dos restantes camaradas mortos em combate, por acidente ou por doença.

Quanto à conservação, entendo as razões aventadas - terá por lá família que a cuide e lhe dê lustro. Quanto à inscrição, já não entendo a falta, para mim incompreensível, da usada nas outras lápides do PELA PÁTRIA.

Talvez o camarada Marques Lopes tenha indagado das razões e possa esclarecer se a lápide é a original ou não terá sido, para que se compreenda a sua diferença, refeita posteriormente em trabalho de reescrita histórica. Mera curiosidade, já que nada adianta ou atrasa quanto à sorte do Bacar Jaló que, neste momento, tanto lhe fará quais os dizeres da sua lápide funerária.

Também fiquei perplexo por, nas legendas das imagens das lápides, o camarada João Bacar Jaló ter tido direito ao epíteto honroso de lendário com que foi distinguido, no blogue, em realce relativamente aos outros nossos camaradas tombados e com os restos para ali abandonados. Que lendas teve este camarada que o diferenciem, na sorte e na missão, dos outros camaradas? Além da lenda do mistério da lápide diferente, o que se alude ou sugere? Combateu mais e melhor que os outros? Foi generoso e humano para com os prisioneiros? Terá sido o Che da contra-guerrilha?

É que das lendas de Bacar Jaló nada sei. Sei apenas que foi um valoroso e impiedoso guerreiro. Apenas me encontrei com ele e os seus guerreiros ou em trânsito ou quando ele se albergava momentaneamente nos quartéis onde estive ou então (isso, várias vezes) em Bissau, na messe de oficiais, quando ele entrava lustroso dos galões novos e arrastando atrás de si uma multidão de esposas bem ataviadas, provocando a debandada enojada da maior parte das esposas dos oficiais metropolitanos ali a tomarem chá e jogarem canasta e que não queriam tais misturas.

E quantos oficiais ao serviço do PELA PÁTRIA olhavam de imediato para o relógio, metiam logo fim ao king ou ao bridge e zarpavam para o cumprimento imediato das obrigações militares no Estado Maior, antes que o Jaló se lembrasse de abancar na mesma mesa?!

Será esta a lendaque referes? Mas, se foi, isto não é lenda, viram os meus olhos, repetidamente e então fazendo-me rir que nem um perdido pelo insólito (mas não era por mal, os copos bebidos é que já eram - sempre - em demasia) e que a terra, se não for o mar ou o ar, há-de comer.

Desculpa as minhas curiosidades. Que são, apenas, isso mesmo.

Grande abraço para ti e saudações camaradas e amigas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes


Comentário de L.G.:

João:

(i) O teu olho clínico não deixa escapar nada. E ainda bem, que alguém exerce essa função de vigilância (crítica) sobre os nossos dizeres, a forma e o conteúdo. Claro que se não trata aqui, como no goulag ou na caserna do antigamente, de vigiar e punir. A nossa paixão é a da verdade e do rigor. Felizmente que, não sendo um partido revolucionário ou contra-revolucionário, não sendo um movimento social, nem sendo uma corporação, não sendo sequer um grupo jantarista e excursionista, a nossa tertúlia (virtual) não precisa de comissário político, ideólogo, líder, professor, educador, animador sócio-cultural, pai, mãe ou outras figuras que tais. Liberdade de escrita, liberdade de crítica: eis o nosso lema (implícito na nossa prática bloguista).

(ii) Dito isto, tens toda razão: o adjectivo lendário aplicado ao Bacar Jaló é tão excessivo como a ideia do Marques Lopes me mandar condecorar no 10 de Junho com cruz de guerra com palma e tudo!... Que grande amigalhaço!...

A verdade é, segundo consulta ao meu dicionário etimológico, lendário deriva de lenda, e este vocábulo por sua vez vem do latim medieval legenda que queria significar "vida de santo"... Imagina só!

(iii) Eu não sei se o Bacar Jaló era ou não era em vida um bom muçulmano, mas santo é que eu não posso dizer que ele era (pelo menos, santo da minha devoção), a avaliar, de resto, por testemumnhos como o teu e o do Jorge Cabral (este, para mais, tinha de o gramar como hóspede em Fá Mandinga)...

(iv) Para abreviar razões, e poupar o meu e o teu tempo: O raio do adjectivo saltou-me do saco lexicográfico, por puro automatismo. Lapsus linguae ou acto falhado, eis a questão ?

(v) Pensando bem, sou capaz de inclinar-me mais para a interpretação psicanalítica: eu, tropa-macaca, tão pacifista como tu, tão suspeito de ser do contra como tu - ao ponto de me apodarem de camarada sov - também tinha as minhas fraquezas (humanas), quiçá, as minhas fantasias sadobelicistas... E até um dia tive, por uma fracção de segundo, o desejo secreto de comprar uma Kalash aos gajos dos comandos africanos, acabados de chegar do triste safari de Conacri... Imagina como é o psiquismo de um gajo!... Felizmente que o meu lado solar, racional, diurno, se impôs ao hemisfério lunar, romântico, irracional, nocturno, na outra fracção de segundo em que eu confrontei o desejo com a realidade... Preferi comprar 10 garrafas de uísque com os 500 pesos que me pediam pela bela Kalash...

(vi) É óbvio que o Jaló não merece o epíteto. Chamar-lhe lendário (logo, santo) era pô-lo no Olimpo dos guerreiros e mandar o resto dos nossos camaradas, insepultos, para a miserável vala comum... Era tirar-lhes, como tu insinuas, sugeres ou até afirmas, o resto de dignidade que é devida a um morto pela Pátria, um morto, qualquer morto...

(vii) Depois desta autocrítica mal amanhadas, espero que me releves a falta... de leviandade. Prometo ter mais cuidado com o verbo.

(viii) Escusado será dizer-te que é sempre um prazer ler-te e (re)ver-te mesmo à distância de muitos bytes (ou baites), enquanto a gente não se mete nas nossas tamanquinhas e reserva aí um lugar numa esplanada à beira Tejo para a prova real do blogue, fora nada... Um abraço caloroso. Luís.

Guiné 63/74 - P825: Antologia (40): A vergonha em debater a guerra colonial (Luís Graça)

Caros amigos e camaradas de tertúlia:
Este blogue, colectivo sobre a experiência da guerra colonial na Guiné, tem sido um espaço privilegiado para dar voz (e rosto) aos antigos combatentes, de um e de outro lado. É um espaço plural, logo de liberdade, onde as diferenças (de pontos de vista, de sentimentos, de valores, de percepções,de estilos comunicacionais, de idiossincrasias, etc.) não impede que haja comunalidades na procura da verdade, no diálogo, na construção de pontes entre o passado, o presnete e o futuro, na reconstituição do puzzle da memória (de dois povos, dois países, dois continentes...). Espaço de liberdade, mas também de solidariedade, com o povo irmão da Guiné-Bissau... Não somos um clube de saudosistas, de africanistas, de veteranos...

Temos sido muito proactivos na produção e divulgação de textos e imagens, de preferência inéditos, pessoais, datados... Tal não impede, que de vez em quando, se reproduzam aqui documentos que trazem alguma luz sobre a complexidade realidade deste tempo histórico de que todos, de um lado e de outro, fomos protagonistas.

Serve este preâmbulo para justificar a reprodução, com a devida vénia, da entrevista ao DN - Diário de Notícias, em Abril passado, dada por Luís Marinho, que acabou de publicar um trabalho de investigação jornalística sobre a Op Mar Verde que, ainda hoje, tantas paixões de sinal contrário desencadeia entre nós...

O autor que teve acesso a fontes privilegiadas, a começar pelo cérebro da operação, Alpoím Galvão, diz pelo meso duas ou três coisas que eu gostaria de aqui sublinhar e reter: (i) o processo oficial da operação foi mandado destruído, em nome da segurança de Estado; (ii) a instituição militar portuguesa não quer (pou ainda receia) abrir "caixa de Pandora que são os dossiês da guerra colonial: isso eu já o sabia, desde a minha colaboração com o o jornalista Afonso Praça no defunto O Jornal, no princípio da década de 1980; e, por fim, (iii) temos ainda vergonha de falar, em privado e em pública, da guerra dita colonial ou do ultramar (de liberatção, dirá o Pepito ou o Leopoldo Amado): não apenas nós, também os nosso amigos guineenses... Será verdade ? A generalização não é abusoiva ? Nóis, peo menos, neste blogue aprendemos a falar em voz alta, olhos nos olhos, desta experiência, individual e colectiva, que nos marcou a todos de maneira indelével... Todos quisemos esquecer a Guiné, em algum momeno, e acabámos por estar aqui, rindo, falando, escrevendo, cantando, chorando, blogando em conjunto, numa caserna que é do tamanho do mundo... (LG)

PS - Aproveitem para comprar e ler o livro, aproveitando os descontos da Feira do Livro, de Lisboa e Porto, a abrir agora, nos próximos dias do mês de Junho. É apenas uma sugestão de leitura, nunca esquecendo que há muito mais mundo para lá da Operação Mar Verde bem como da própria guerra colonial e até da nossa querida Guiné-Bissau...

'Mar Verde': revelados documentos sobre operação militar ainda secreta.
Manuel Carlos Freire. Diário de Notícias. 17 de Abril de 2006

A Operação Mar Verde, realizada em Novembro de 1970, foi uma das maiores e mais controversas missões executadas pelas Forças Armadas portuguesas nas guerras coloniais (1961-1974). Mas só agora vê rompido o secretismo decorrente da falta de documentação nos arquivos civis e militares oficiais e do seu não reconhecimento pelo Estado.

António Luís Marinho, autor do recém-lançado livro Operação Mar Verde, Um Documento para a História, contou ao DN que o seu trabalho de pesquisa documental confirmou "a tradição de não dar aos arquivos os documentos oficiais" produzidos.

O jornalista (e actual director de informação da RTP) revela pela primeira vez um conjunto de textos oficiais sobre aquela operação. Contudo, "não acredito que haja uma discussão" sobre o assunto porque há "pouca tradição, infelizmente, de discutir" as questões da guerra colonial. "Parece que metemos a cabeça na areia, que há vergonha" de a debater, lamenta o autor.

O livro começou a ser preparado há 11 anos, quando "o entusiasmo" com que Luís Marinho ouvia o comandante Alpoim Calvão falar do ataque por si liderado contra a República da Guiné-Conacry "não [o] deixou indiferente". "Percebi também que estava ali uma história que valeria a pena contar", escreveu o jornalista no prefácio do livro editado pelo Círculo de Leitores. A importância de contar essa história era tanto maior quanto o marechal António de Spínola (comandante-geral e governador daquela colónia à data dos acontecimentos), assumira perante o Centro de Estudos das Campanhas Africanas (em 1989) que "o processo oficial sobre a "Operação Mar Verde" foi destruído".

A obra, escrita em estilo de reportagem e com recurso a fontes das duas partes em conflito, revela na íntegra 18 documentos de arquivos particulares, permitindo conhecer as posições (tanto no plano político como militar) de vários dos actores envolvidos. Além de divulgar A solução do problema da Guiné preconizada pelo general António de Spínola, o livro publica a "ordem de operações" manuscrita daquela operação, o relatório elaborado por Alpoim Calvão após a sua realização ou o redigido pelo comandante do único dos navios que tinha como missão "abicar em terra para desembarcar forças", o primeiro-tenente Costa Correia (um dos poucos que verbalizaram reservas à operação).

No livro, onde o jornalista lembra o contexto político, diplomático e militar da época, e historia a preparação e execução da Mar Verde, sobressaem precisamente as dúvidas e reservas existentes ao nível político e militar contra a operação.

Esta foi pensada por Alpoim Calvão, que a apresentou a Spínola em Agosto de 1969. O brigadeiro do monóculo "ouve com visível agrado a proposta de Calvão e diz-lhe para avançar com os preparativos", escreve Luís Marinho na página 62. Mas só no fim desse ano é que a missão ganha contornos definidos, quando dissidentes da Guiné-Conacry (ligados aos serviços secretos franceses) pedem apoio ao Ministério do Ultramar para derrubar o Presidente Sékou Touré.

O autor diz, ainda na mesma página, que "as Informações constituíram, desde o início, o 'calcanhar de Aquiles' da operação, e uma constante preocupação para Alpoim Calvão". Mas esta consciência, que a operação validaria, não fez vacilar o chefe fuzileiro. E tanto ele como o general Spínola deram ordem de prisão e fizeram ameaças directas aos que ousaram exprimir dúvidas sobre a exequibilidade da operação.

Outro aspecto singular da operação é que, já em Novembro e a poucos dias do início da acção, "há passos decisivos que não foram ainda dados" (página 86). Spínola, tendo pareceres negativos dos ministros da Defesa, Sá Viana Rebelo, e do Ultramar, Silva Cunha - o chefe da diplomacia, Rui Patrício, desconhecia o assunto -, "decide jogar o tudo por tudo e vai até ao limite", escrevendo ao presidente do Conselho uma carta que manda entregar por "um enviado especial" - o próprio Alpoim Calvão, recebido por Marcello Caetano a 16 de Novembro.

Luís Marinho revela também o diário pessoal do comandante da Defesa Marítima da Guiné (CDMG), comodoro Luciano Bastos, em que este revela "a fúria" de Spínola com os resultados da operação. Tendo-o chamado ao seu gabinete, o brigadeiro disse-lhe, "por vezes com grande excitação, que o Calvão, embora tivesse planeado tudo muito bem e que, sem ele, a operação não se realizaria, havia falhado redondamente no campo da execução". Spínola "acrescentou ainda que o Calvão actuara como para realizar um golpe de mão, sem ter percebido que o fundamental ali era o golpe de Estado", lê-se no diário do comodoro.

Guiné 63/74 - P824: Ainda sobre os fuzilamentos (Jorge Cabral)

Texto do Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71).

Caro amigo, companheiro e camarada
Muito atarefado embora, tenho procurado seguir todas as intervenções produzidas sobre as questões dos Fuzilamentos.

Mantenho a opinião que sempre tive sobre a Guerra Colonial, uma guerra absurda, injusta e cruel. Já assim pensava em Mafra, quando conheci o camarada Tunes (1), por intermédio do amigo comum Resende.

Como já escrevi, as nossas experiências foram diferentes. Cada um de nós conheceu uma pequena parte da Guiné, e o contacto com tropas e populações africanas, que para uns foi diminuto ou inexistente, constituiu para outros o dia a dia, comendo juntos, dormindo lado a lado, partilhando medos comuns, e chorando os mesmos mortos. Será pois natural, que a sensibilidade com que abordamos o problema, reflicta essa realidade. Obviamente que uma coisa é analisar em abstracto, outra é sentir, recordando Homens concretos, com nome, família e sonhos, executados sumariamente.

Que o Exército Colonial cometeu crimes é verdade, o que não fez (nem faz) de nós todos violadores, torturadores ou massacradores. Inerentes ao colonialismo foram a violência, a opressão e a injustiça. De quem o combateu era legítimo esperar outro tipo de comportamentos mais idóneos à construção de uma sociedade mais Justa, Humana e Solidária.

Podemos evidentemente explicar e até procurar entender, mas tal não pode implicar a concordância ou aceitação, justificando porque sempre foi assim e transformando a vingança em regra. O crime não se combate com o crime, e o direito a ser julgado não é um luxo burgês, nem o "olho por olho, dente por dente" bíblico poderá ser tolerado. Trata-se de uma conquista da Humanidade, que deve ser vigente em todo o Mundo. Não existiram bons ou maus Gulagues, nem existem bons ou maus Guantanamos...

Informou o nosso historiador [Leopoldo Amado] que foram mortos cerca de 11.000 homens, e que em 1976 ainda se fuzilavam colaboradores dos Portugueses. Tal número é impressionante, e certamente ninguém de bom senso, admitirá que todos tenham sido criminosos de guerra, torturadores ou pides. Tratou-se de uma matança injustificada e absurda, cujas sequelas perduram até hoje, cá e lá. Também alguns dos meus soldados pereceram e nunca nenhum, durante os vinte e sete meses que os comandei, cometeu qualquer crime de guerra. Eram homens cansados, alguns com mais de quarenta anos, que faziam a guerra por necessidade e rotina, uma tropa fandanga sem heróis.

Quanto aos Comandos Africanos, conheci-os como Pessoas, em Fá Madinga, no período de instrução da Companhia. Nunca os acompanhei em combate e os temas das nossas conversas raramente incidiam sobre a guerra. Ensinavam-me costumes e tradições da Guiné, e eu retribuía, descrevendo a beleza do meu País.

Acredito que tenham cometido crimes de guerra como aliás todos os Africanos que~, aliados aos Portugueses, lutaram nas Campanhas de Pacificação. Falar no meu tempo, aos Homens Grandes Mandingas, no nome de Abdul Injaí, impunha ainda o respeito e o medo, mas também a admiração. Toda a história da Guiné do Séc. XIX e inícios do Séc. XX, está prenhe de violência, massacres, razias, saques.

Claro que não conhecíamos a História, tendo-nos sido inculcada a ficção de um País idílico, de pretinhos obedientes e portuguesíssimos, posto a ferro e fogo por traidores comunistas. Nós não sabíamos mas certamente a elite conselheira do Spínola havia estudado o passado e aprendido a manobrar as profundas inimizades étnicas. Sabiam eles, já então, também, qual seria o destino da Guerra, e o que iria acontecer à tropa africana.

Perdoa-me, Luís, a extensão do desabafo, mas qualificar de ingénua a minha intransigente posição sobre a dignidade da Pessoa Humana, em todas as circunstâncias, custa-me, porque há muitos anos ensino que nenhum Homem é monstro, que os monstros se abatem, mas que os Homens se julgam.

Um grande, grande Abraço
Jorge

P.S. – Se Amílcar Cabral fosse vivo, teria permitido o que aconteceu?
___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

(2) Vd. post de 16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIV: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

Guiné 63/74 - P823: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

Texto do João S. Parreira (ex-Furriel Miliciano Comando, Brá, 1964/66), acrescentando mais nomes à lista de ex-militares, de origem guineense, que combateram nas NT e foram executados a seguir à independência, pelo PAIGC ou em nome do PAIGC (1). Não sei qual é a fonte usada pelo João (associação de comandos? ex-camaradas dos comandos? familiares?), mas esta é uma missão do nosso blogue, uma missão nobre, útil e necessária (mesmo que dolorosa) que temos de cumprir.

Mais: é um dever dos tugas que conhecerem, treinaram e foram camaradas de armas destes homens, uma obrigação de Portugal e da Guiné-Bissau, dois países que se dizem irmãos e onde ainda existe uma enorme complexo de culpa e um sentimento de vergonha que nos impede falar publicamente, olhos nos olhos, da guerra colonial e pós-colonial, das suas sequelas e dos seus fantasmas... Em Portugal e na Guiné-Bissau, os armários da nossa memória colectiva estão cheios de cadáveres, reais ou fantasmagóricos: temos que os abrir, por mor da verdade histórica e da nossa saúde mental... (LG).

Caro Luís Graça,

Sobre o que tem vindo a lume, posso garantir que durante o tempo que permaneci na Guiné, 1964/66, nunca assisti ou ouvi falar de assassinatos de guineenses pelos comandos africanos que integraram os Grupos existentes na altura.

Estávamos em estado de guerra, onde ninguém pediu para ir, e a intenção, julgo eu, era matar para não morrer. Assim, em ambas as partes, por vezes era inevitável não haver mortos ou feridos em combate. Felizes os camaradas que nunca estiveram metidos em combates, e por isso desconhecem quanto traumatizante é essa situação.

Como todos nós que por lá andámos sabemos, os Grupos de guerrilheiros, a que muitos guineenses se juntaram voluntariamente, estavam nìtidamente em vantagem pois conheciam bem o terreno, tinham grande resistência e mobilidade, sobreviviam com pouco, estavam bem armados e conheciam bem as tácticas de guerrilhas, aprendida em vários países estrangeiros, para além de terem a colaboração natural ou forçada das populações. Em caso de necessidade tinham a vantagem de terem santuário em países vizinhos.

Se os guineenses que mais tarde fizeram parte das companhias de comandos não tivessem optado por se alistarem, e como tal sido treinados pelo nosso Exército, seriam por certo forçados a lutar ao lado dos guerrilheiros.

Agora visto por outro prisma. Se estes africanos eram assim tão sanguinários e assassinos como dizem, pois desconheço, pobres de nós, militares portugueses, se os mesmo se tivessem aliado aos seus irmãos de côr. Ou pior ainda, se mais tarde desertassem e se juntassem à causa da guerrilha.

Veio a verificar-se que fizeram uma opção errada, pois não seriam executados e hoje seriam, talvez, heróis nacionais, já que com o seu treino e perícia, teriam por certo no seu palmarés a morte de manga de portugueses, e quem sabe se algum de nós.

Outros fuzilamentos após a Independência da Guiné:

1º. Sargento Enfermeiro João Baptista (Depósito de Adidos)
2º. Sarg Inf Agnaldo Quinde Baldé (CCS/QG)
Soldado Infantaria Dicó Baldé (CCS/QG)
Sold Inf Miguel Francisco Pires (CCS/QG)
Sold Artilharia Henrique Sello Jaló (GAC 7)
Sold Art Jaló Seidi (GAC 7)
Sold Art Bacar Seidi (GAC 7)
Sold Inf Sello Jaló (GAC 7)
Sold Inf Demba Ganó (CCAÇ 11)
Sold Inf Sidi Jaló (CCAÇ 12)(2)
Sold Inf Aliu Baldé (CCAÇ 18)
Sold Inf Baba Gallé Jaló (CCAÇ 18)
Sold Inf Bacar Baldé (CCAÇ 18)
Sold Inf Mori Baldé (CCAÇ 18)
Sold Inf Braima Jau (CCAÇ 18)
Sold Inf Amadu Baldé (CCAÇ 21)(3)
Sold Condutor Napoleão Jaló (Marinha)
Cmdt Milícia Bacar Alansó Cassamá (Empada)
Cmdt Mil Cabá Santiago (Bissorã)
Cmdt Mil Dantil Mendes (Jolmete)
Cmdt Mil Mamadu Seidi (Mansabá)

Um abraço.
João Parreira
___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

(2) Sold 82116369 Sidi Jaló (Apontador de Dilagrama), futa-fula, pertencente à 1ª secção do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 (Bambadinbca, 1969/71). Era Comandante deste Gr Comb o Alf Mil de Inf 13002168 António Manuel Carlão. A ele também pertenciam os nossos queridos amigos e camaradas, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Simões.

Vd. post de 21 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)

(3) Poderá tratar-se do Sold 82105669 Amadu Baldé, futa-fula, que pertenceu à 3ª secção do 1º Grupo de Combate da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), grupo esse que era comandado pelo Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira. O comandante da secção era o Fur Mil António Manuel Martins Branquinho, natural de (e residente em) Évora. Houve sodlados e graduados da CCAÇ 12 que integraram, em 1973, a nova CCAÇ 21. O Amadu Baldé poderá ter sido um deles: é apenas uma hipótese.

Vd. post de 21 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)

Guiné 63/74 - P822: Cancioneiro de Mansoa (8): a amizade e a camaradagem ou o comando da 38.ª (Magalhães Ribeiro)

Dos cadernos (1) do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612/74 (que esteve em Mansoa por escassos dias, cabendo-lhe a honra de arriar a nossa bandeira em 9 de Setembro de 1974, por ocasião da transferência de soberania do território para o PAIGC) (2):

Um Comando da 38ª

Era a minha sombra nas deslocações a Bissau
O meu guarda-costas preferido!... O número um!
Eu conhecia-o bem e sabia!... Que se necessário...
Dava a vida pelo amigo!... Como mais nenhum!

Na longínqua e bela Guiné,
Mais do qu’em qualquer outro lugar,
Encontrar um conterrâneo
Era o rei dos motivos p’ra festejar.

Para nós... do Porto e Lisboa,
Como éramos a maioria,
Amíude os encontros se davam
Sempre com renovada alegria.

Quando chegamos a Mansoa
Na recepção a nós, os periquitos (1),
Alguns velhinhos perguntavam
No meio daqueles pios esquisitos:

- Quais são os periquitos do Porto?…
Duas coisas tendes que fazer:
Pagar uma bebedeira mestra
E contar as novidades... que houver!

Fomos então p’rá cantina beber
E conversar, entusiasmados;
Nós, do Porto... do presente... de Abril
Eles... dos momentos ali passados.

Dias depois estes partiram,
O seu tempo de guerra... findara,
Foram estes os primeiros amigos
Com que a Guiné me brindara.

Um dia o Comandante disse-me:
- O vagomestre está muito doente,
Você vai substitui-lo como souber...
Vai alimentar toda esta gente.

Se mais proveito não lhe fizer,
Vai muitas vezes a Bissau… passear;
É um privilégio raríssimo,
Espero que não vá regatear!

Eu... um Operações Especiais?
Ouço, obedeço e não discuto!
Serei o Rei do desenrascanço?
Se calhar!... avancei, pois, resoluto!

No dia seguinte, surgiram-me ali
Num jipe, três Comandos , sedentos
Da 38ª Companhia (3)
Risonhos, amigáveis e... barulhentos.

Eram do Regimento de Comandos,
Sito na estrada p’ra Bissau, em Brá,
A cerca de sessenta quilómetros,
Que me convidaram a visitá-los… lá.

Mas entre eles estava um Cabo,
De seu nome Moreira Barbosa,
Que ao saber qu’eramos patrícios.
Exigiu comemoração honrosa.

Bebemos então e conversámos,
Ali cimentamos forte amizade
Daquele tipo hoje muito raro,
Com raízes par’a eternidade.

Ora... sempre qu’eu tinha d’ir à capital
Entrava nos Comandos a correr
- Ó Barbosa, queres vir comigo? -
Perguntai ao cego s’ele quer ver...

Provocavam enorme alarido
As viagens e as petiscadas
No Portugal, no Ronda, etc.
Estórias, anedotas... gargalhadas.

Ele conhecia metade do pessoal,
Apresentava-me toda a gente,
A nossa mesa depressa s’enchia
De malta faladora e contente.

Barbosa perto... tristeza longe,
O seu feitio guerreiro, destemido,
Completavam a sua forte alma
E contagiava o mais encolhido.

Como é lógico... muitas conversas
Versavam o tema da guerra,
As grandes operações e combates.
O sangue derramado na terra.

Os golpes de mão e emboscadas,
Os acidentes graves conhecidos,
O 25 de Abril...
Enfim... os mortos e os feridos

- Manga de ronco!... Compr’uma coisa?
Era o pregão local dos artesãos
Pululantes, insistentes, chatos,
Até qu’o Barbosa fechava as mãos!

Quis Deus que partisses mais cedo, amigo, irmão!
Quantas saudades deixaste dessa tua energia,
Da tua dinâmica... do teu empolgar pela acção,
Do teu espírito de aventura, do riso, da alegria!...
___________

Nota de L.G.

(1) Posts anteriores:

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá

7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...

10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDIX: Cancioneiro de Mansoa (5): Para além do paludismo

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLIX: Cancioneiro de Mansoa (6): O pesadelo das minas

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

(3) A 38ª CCmds teve como unidade mobilizadora o CIOE - Lamego. Esteve no TO da Guiné entre Junho de 1972 e Abril de 1974. Fui a última CCmds, de origem metropolitana, a ser mobilizada para este território.

Guiné 63/74 - P821: As Companhias de Caçadores Indígenas (Hugo Moura Ferreira, CCAÇ 6)



1. Mensagem de Hugo Moura Ferreira

Caro Luís:

Como é comum, tenho maior interesse em tudo o que é inserido no Blogueforanada, mas no caso do Post nº 87 houve algumas questões que por me dizerem respeito (4ª CCAÇ /CCAÇ 6) gostaria de esclarecer melhor.

A determinado passo é afirmado, perante elementos retirados da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 3º Volume: Guiné, edição do EME, que “também ficamos a saber que a mais antiga Companhia de Caçadores, de recrutamento local, foi a CCAÇ 3, formada em Março de 1967, tendo como unidade mobilizadora o CTIG - 3ª Companhia de Caçadores Indígenas. Manteve-se em serviço até Abril de 1974. Estava sediada em Barro, como sabemos”

É precisamente sobre esta afirmação que eu gostaria de esclarecer que realmente em Março de 1967 foram formadas mais companhias com origem nas Companhias de Caçadores Indígenas (CAÇ I), como aconteceu com a CCAÇ 6 que foi formada na mesma altura tendo como unidade mobilizadora o CTIG – 4ª Companhia de Caçadores Indígenas.

A confirmar que houve três mais antigas e não uma mais antiga estão os factos a seguir descritos.

Assim:

Encontramos a páginas 62 daquela obra a referência a três Companhias de Caçadores Indígenas (1ª, 3ª e 4ª CCAÇ I) que, perante a Carta de Situação a 8AGO62, são localizadas em Farim, Nova Lamego e Bedanda.

Por outro lado pode verificar-se nos Gráficos das Unidades que participaram, a pags 122, 123 que:

(i) A 1ª CCAÇ I se manteve no activo até Março de 1967, em Barro;

(ii) A 3ª CCAÇ I esteve em Nova Lamego até Março de 1967, tendo passado, a partir dessa data, a ser designada por CCAÇ 3, tendo sido transferida para Barro, nessa data, onde se manteve até Março de 1969, quando foi transferida para Guidaje de onde passou para Saliquinhedim, Bijene, onde se manteve até Abril de 1974;

(iii) A 4ª CCAÇ I esteve sempre localizada em Bedanda, até Março de 1967, quando passa a ser designada por CCAÇ 6, mantendo-se sempre no mesmo local, até Abril de 1974;

(iv) Entretanto, em Março de 1967, quando foi efectuada a alteração de designação e de conceito de operacionalidade das Companhias de Caçadores formadas por pessoal africano, foi criada a CCAÇ 5 que se veio a localizar em Nova Lamego. Que em Agosto de 1968 se muda para Canjadude, onde se manteve até Abril de 1974;

(v) A partir daqui passaram então a ser formadas outras CCAÇ de Guarnição Territorial, das quais uma delas muito falada no nosso Blogue é a CCAÇ 13, do nosso amigo de Tertúlia Carlos Fortunato .

Esperando ter esclarecido e não confundido, mando abraços a todos.

Hugo Moura Ferreira
CCAÇ 6 – Bedanda
Julho de 1967 / Agosto de 1968

terça-feira, 30 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P820: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o Soldado Anastácio Vieira Domingos, nº 688/64, que pertencia à CCAÇ 727. Era muito provavelmente alentejano. A CCAÇ 727 teve como unidade mobilizadora o RI 16, de Évora. A comissão foi de Outubro de 1964 a Agosto de 1966. O Soldado Anastácio não chegou a conhecer a época das chuvas: morreu ao fim de dois meses de Guiné, mais exactamente a 13 de Dezembro de 1964. O seu nome consta do memorial aos mortos das guerras do ultramar, junto à torre de Belém. (LG).



Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o 1º Cabo Augusto Quintã, de 1966, nº ...204/66, que pertencia a uma unidade do Exército [número ilegível] .

Morreu "pela Pátria" a 19 do Outubro de 1967, conforme se pode confirmar pela lista que consta do memorial aos mortos das guerras do ultramar, junto à torre de Belém, em Lisboa. Obrigado ao Jorge Santos, pela ajuda. (LG).


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o Soldado [Comando ? ] Ramajó Candé (ou Canté ?) que morreu a 23 de Junho de 1968, conforme se pode confirmar na lista dos nomes dos mortos nas guerras do Ultramar, no memorial junto à torre de Belém (LG).



Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o Soldado, de 1966, Manuel da Costa [Sacramento], pertencente a uma unidade do Exército, e que morreu a 16 de Agosto de 1967, conforme se pode confirmar através do memorial erguido aos mortos da guerra do Ultramar, junto à torre de Belém (LG).


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o Soldado nº 021208/64, João Gomes, pertencente a uma unidade do Exército, e que morreu a 16 de Junho de 1967, conforme se pode confirmar através do memorial erguido aos mortos da guerra do Ultramar, junto à torre de Belém (LG).

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o Soldado Manuel Rogério L[opes] Torres, pertencente a uma unidade do Exército, e que morreu a 10 de Novembro de 1964, conforme se pode confirmar através do memorial erguido aos mortos da guerra do Ultramar, junto à torre de Belém. Era muito provavelmente do Norte do país: pertencia à CART 566, cuja unidade mobilizadora foi o RAP 2, de Vila Nova de Gaia. A CART 566 esteve na Guiné de Agosto de 1964 a Novembro de 1965. O Soldado Torres também morreu na época seca, ao fim de escassos três meses de Guiné (LG).

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o Soldado Apa Ié, pertencente a uma unidade do Exército, e que morreu a 10 de Agosto de 1968, conforme se pode confirmar através do memorial erguido aos mortos da guerra do Ultramar, junto à torre de Belém (LG).

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o lendário Capitão Comando João Bacar Jaló, natural da Guiné, morto em combate em 16 de Abril de 1971 (LG).



Guiné > Bissau > 1966 > Cemitério onde ficaram sepultados os primeiros combatentes da guerra colonial. Há placas funerárias de militares de origem metropolitana que vão, pelo menos, até 1968. O estado de abandono do cemitério faz doer oc oração, diz-nos o Marques Lopes, que esteve lá recentemente, em Abril de 2006, com o Xico Allen (LG).

Foto: © Virgínio Briote (2005)


Texto e fotos (excepto a última): © A. Marques Lopes (2006)


1. Estes são os restos mais dolorosos da nossa passagem pela Guiné. Muito mais do que o que resta de abrigos e casernas. São placas de sepulturas no cemitério de Bissau, aquelas em que se pode ainda ler algumas letras ou números. Mais há, mas já nada se pode ler.

Soube, em tempos, que chegou a haver uma comissão encarregada de fazer a trasladação dos corpos lá sepultados. Mas nunca funcionou, segundo sei. É pena, pois eles e as respectivas famílias mereciam. Ali, parece que só a família do Bacar Jaló (1) tem tratado dele.

A. Marques Lopes


2. Comentário de L.G.:

Amigos e camaradas:

Quem se interessa por cemitérios ? Só os góticos, a tribo dos góticos, os nossos putos que se vestem de preto e têm horror à luz do dia...Por uma manhã ou uma tarde do mês de Abril de 2006, não sei ao certo em que dia, o A. Marques Lopes (julgo que acompanhado do Xico Allen) entrou no velho cemitério (colonial) de Bissau e fotografou os restos mais dolorosos do resto do nosso Império: as lápides funerárias, os restos dos soldados portugueses que por lá ficaram, mortos nos primeiros anos de guerra (até pelo menos 1968), "mortos pela Pátria", e que a Pátria nem sequer se deu ao trabalho de os trasladar para as suas terras natais...
Vocês dirão: depois de morto, tanto me faz... Mas espiritual e culturalmente não é assim... Os seres humanos só fazem o luto baseado na evidência da morte... E eu sei do que falo porque tenho parentes e conterrâneos, desaparecidos no mar, cujos corpos nunca deram à costa: e sem o cadáver não se pode fazer o luto, nem os ritos de passagem associados à morte, nem há viuvez nem orfandade...

Pois o Marques Lopes, que é um homem de cultura e de sensibilidade, tentou o insólito e o impossível: fotografar os últimos vestígios (materiais) de uma guerra, as letras e os números de identificação dos tugas (e alguns naturais da Guiné) que morreram e não tiveram uma sepultura condigna no cemitério da sua terra natal...
Em oito fotografias que le me mandou, só duas eram legíveis... Pela minha parte, passei um bom bocado de tempo a recompôr/reconstituir/decifrar o resto (Obrigado ao Jorge Santos, pela sua ajuda, já que me socorri da lista dos mortos da guerra colonial que consta do seu site)...

Julgo não ter perdido o meu tempo: de facto, e como muito bem diz o Marques Lopes, "eles e as respectivas famílias mereciam"... Ficam, pelo menos aqui, registados no nosso blogue os seus nomes, talvez alguém ainda os possa reconhecer, meio século depois, de entre os seus familiares e amigos.
E os seus nomes são (por odem alfabética): Anastácio Vieira Domingos, Apa Ié, Augusto Quintã, João Bacar Jaló, João Gomes, Manuel da Costa [Sacramento], Manuel Rogério Lopes Torres, Ramajó Candé (ou Canté ?)... (L.G.)
___________

Nota de L.G.

(1) João Bacar Jaló (ou Djaló): Capitão da 1º Companhia de Comandos Africanos, na altura sediada em Fá Mandinga:

vd posts de:

(i) 11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

(...) "O comandante operacional, esse, era o lendário capitão graduado comando João Bacar Jaló, um torre e espada, ex-alferes de milícia, de etnia fula, que viria a morrer em combate, mais tarde, já depois de Conacri (...). Não creio que tenha trocado com o João Bacar Jaló mais do que meia dúzia de palavras, em português. Mas estou a vê-lo, a entrar na parada do quartel de Bambadinca, ao volante de um burrinho (Unimog 411), à revelia de qualquer Regulamento de Disciplina Militar (RDM), à frente dos seus garbosos comandos, fabricados em série, denotando forte espírito de corpo, moral elevada e não menor fanfarronice.

"Alguns de nós chamávamos-lhes, com um certo desprezo e ironia, os muchachos de Pancho Villa por andarem armados até aos dentes e com fitas de metralhadora a tiracolo, além de gostarem de se fazer anunciar com enervantes rajadas de Kalash para o ar… Nas barbas do comandante do BART 2917 e do seu oficialato" (...).


(ii) 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

(...) "Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
-Já vi tudo!

"Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
-Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

"Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló. Contou-me o Branquinho que quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
- Ainda bem!" (...)

Guiné 63/74- P819: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros armados com duas armas míticas e temíveis: a Ak 47 ou Kalash e o LGFog RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) (com a devida vénia...)

Texto do João Tunes:

Caro Luís e restantes estimados tertulianos,

Reconheço que os meus últimos textos foram veementes e tanto que até pode ter parecido que estava zangado ou sofrendo de um pico do apanhanço. Nada disso.

Mas para não me fixarem pelo mau feitio com que vim ao mundo e o mundo me deu razões para assanhar, sinto-me na obrigação de aliviar agruras e crispações, contribuindo com um texto alegre e bem disposto, a modos que ligeiro e de boa digestão, contribuindo modestamente para a concórdia e fraternal convívio desta estimadíssima tertúlia em que cada qual tem a nobreza de pensar pela sua cabeça sem necessidade de meter tapa-chamas no escape do pensamento, sabendo que a razão se encontra algures entre todas as razões. O que não evita, pelo contrário, a boa disposição neste quartel aprumado já com a caserna a deitar por fora mas sempre com a porta de armas franqueada para que mais um qualquer velho e reformado guerreiro abanque na parada, na messe, no bar, numa guarita de sentinela, no campo de tiro ou onde lhe aprouver na guerreira gana.

Assim, falo-vos hoje de um tema bem disposto e que se prende com a minha última leitura. Que tem a ver com um assunto que, julgo, em todos está a memória bem agarrada - uma espingarda. E julgo que tema mais alegre não haverá no mundo, mesmo que saído de um premiado criativo do humorismo. Por mim, falar em espingardas dá-me vontade de rir (não de atirar!). Fico bem disposto, tornando-me mais sociável e brincalhão ao som do lembrado símbolo tá-tá-tá-tá. Enfim, sou um pacífico e um pacifista, com um gosto discutível, como todos os gostos, pelo tá-tá-tá-tá. Sou não, ERA, mas isso fica mais para o fim.

Certo é que as espingardas matam. E, em certas circunstâncias, até matam muito. Noutras vezes (as mais das vezes?) até matam quem não devem e estão em mãos que deviam estar quietas e não a disparar. Mas, já antes das espingardas, era assim. A guerra e a morte são mais velhas que as espingardas. As espingardas, culpa única, vieram foi ajudar a ganhar ou perder guerras justas ou injustas. E a melhor de todas as espingardas o que acrescenta, às outras não tão boas, às guerras e à morte, é matarem ainda mais e ainda melhor que as outras espingardas, permitindo, infelizmente, mais guerras e mais mortes. Além de terem um tá-tá-tá-tá diferente, um som personalizado e que fica melhor no ouvido, uma marca sonora que a distingue na fidalguia da qualidade. Até podendo ser, caso talvez de perfídia estética, uma coisa bonita de se ver e agradável no mexer. Em caso extremo, se for verdade que a guerra comporta muito de sexualidades reprimidas ao serviço de um grupo, uma espingarda nas mãos até terá o seu toque erótico, um género de sucedâneo prolongado de um pénis mortífero em erecção sempre pronta, uma volúpia na dialéctica entre a vida e a morte, coisa que dizem os entendidos, o acto sexual também será.

Lamento decepcionar os decepcionáveis, mas não falo da nossa querida G3 (bem boa e grata espingarda!), a nossa noiva de comissão fardada, a noiva com que nos casaram á força (tirando o caso dos chicos), a companhia que não nos faltou. Falo, antes, da espingarda automática (a chamada espingarda de assalto), infelizmente rival da nossa querida G3, a espingarda mais apreciada, usada e difundida no mundo - a famosíssima Kalachnikov, por vezes tratada carinhosamente pelo terno diminutivo de Kalach. Ou, respeitando a nomenclatura oficial, pela burocrática designação de AK-47 [em que AK é a abreviatura de Espingarda de Assalto Kalachnikov e 47 refere o ano do início da sua produção na ex-URSS (ainda com o Pai dos Povos em forma quanto a saúde, mando e despotismo)].

O certo é que a Kalach é unanimemente, independentemente de a usar ou ser por ela alvejado, considerada a maravilha máxima, em tecnologia, em concepção, em eficácia e na beleza das linhas, entre as espingardas jamais dadas ao mundo desde que, ao mundo, a Kalach veio parar. Vejam que até Bin Laden, que nas escolhas não parece ser parvo, não dispensa sentar uma Kalach ao colo das saias quando aparece naqueles vídeos para assustar os americanos e o resto do mundo. E não haverá guerreiro ou guerrilheiro, contra-guerrilheiro também, que não gostasse de ter uma Kalach para combater. Ainda é assim e ininterruptamente desde que apareceu a sua primeira versão em 1947 por mor de decreto presidencial do Zé dos Bigodes e génio de um obscuro inventor (até à Perestroika, a sua identidade era secreta por ser considerada segredo de Estado).

Nunca escondi a minha curiosidade, admiração e inveja, uma espécie de fascínio castrado por nunca lhe ter pegado, desde que me foi dado ouvi-la e vê-la do outro lado, o lado dos patriotas guineenses. Porque quanto à Kalach, fotos à parte, só lhe conheci o tá-tá-tá-tá muito próprio. Para acalmar esta minha obsessão, tenho procurado, persistentemente, saber mais e mais sobre o nascimento, vida e obra da Kalach.

Finalmente, um livro encheu-me as medidas, tanto que me esgotou o interesse por tudo quanto seja espingarda (o que já não era sem tempo, bolas, sempre foram 37 anos a pensar no raio de uma espingarda!). Agora sim, livre da obsessão e no sortilégio da Kalach posso, finalmente, sentir-me livre e solto para me dedicar a grandes e boas causas - contra a exclusão social (fazendo corpo de combate com o Presidente Aníbal), a ajuda aos pobres (talvez militando num Confissão com capela aberta), a defesa do ambiente, a luta contra o tabagismo (tentando fumá-los todos para que não sobre um que seja e faça mal ao meu semelhante, activo ou passivo), a homofobia, o racismo e a xenofobia, o fim da violência doméstica mais a pública, a luta contra a gripe das aves e tudo quanto seja a boa conservação e melhoria da saúde pública. Causas assim ou parecidas. Boas causas. Só boas causas. Com o terminar súbito e dorido da paixão para com uma espingarda. O que um livro consegue, deus nosso!

O livro a que me refiro é uma pequena autobiografia do inventor da Kalachnikov (*), recentemente editada em Portugal, o qual, para não destoar, se chamava Kalachnikov também. Isto é, a espingarda chamou-se Kalachnikov porque o seu autor assim se chamava. A vida do sujeito, ainda vivo e activo (contando 83/85 anos), teve uma trajectória interessantíssima, tirando a parte balhelhas como o homem pensa a política e o mundo de hoje, pois ajuda a entender o prodígio e a odisseia de um sargento autodidacta ter concebido aquilo que os sábios, cientistas, engenheiros, ali ou noutra parte do mundo, nunca chegaram - a maravilha da espingarda leve, fiável, segura, resistindo a todas as poluições, bonita, fácil de desmontar e de fabricar, uma espécie de anjo da morte e da guerra (1).

Como disse, vencido o amor enciumado e tortuoso (enquanto traição à nossa querida G3) pela bela Kalach, não quero mais saber de espingardas. Agora sim, serei o pacífico e o pacifista perfeitos. Tentarei, pelo menos.

Toda a paz e harmonia para todos os estimados tertulianos. E nada de guerras ou espingardas, são os meus votos de termo (2).

Um abraço grande para ti, camarada e amigo Luís, nosso ilustre Comandante.
_________

(*) Kalachnikov, autobiografia do inventor da mais famosa metralhadora do mundo, Mikhail Kalachnikov (com Elena Joly), Ed. Terramar.

Notas de L.G.:

(1) Sobre o autor, vd. artigo, em português, na Wikipedia > Mikail Kalshnikov e sobre a própria AK-47

Ver também, o site oficial russo da Ak 47, em inglês.


(2) Sobre este tópico, vd. posts dos nossos tertulianos:

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)

(...) "Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!" (...)

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau. Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite. Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco? Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo. Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar. É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a Kalash que tinhas pendurada no quadro da escola. Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza. Sei que foste uma boa professora. Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia. Vi os livros por onde aprendiam a ler, vi os cadernos de redacção e de cópias. Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país" (...).

Guiné 63/74 - P818: Mais de mil unidades entre 1962 e 1974 no CTIG (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1970 > : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54. Juntamente com os Pel Caç Nat 51, 52, 53, 55 e 56, era o mais antigo da Guiné, remontando a sua formação a Setembro de 1966. As praças eram de recrutamento local, e os quadros de origem metropolitana.

Foto: © Mário Armas de Sousa (2005)

1. O José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões, da CCAÇ 5, também conhecida por Os Gatos Pretos de Canjadude, 1968/70; técnico de contas numa empresa multinacional) foi o primeiro a responder ao meu pedido de ajuda na construção de um ficheiro informático com as unidades que passaramn pelo TO da Guiné, os nomes dos membros da nossa tertúlia pertencentes a essas unidades bem como as localidades onde estiveram sediadas ou aquarteladas.

O José, que eu já conheço pessoalmente, é um estudioso e amante da Guiné, como poucos. E de imediato me disponibilizou um ficheiro em Excel com a lista das mais de mil unidades que estiveram na Guíné, entre 1962 e 1974.

O ficheiro está organziado pela seguinte ordem: Tipo de Unidade e nº (Batalhão, Companhia, Pelotão...), Unidade Mobilizadora, Início e termo da comissão, Destino da unidade e Província (neste caso, Guiné). No destino da unidade, há várias hipóteses: fim da comissão; desactivada; manteve-se em serviço (1974); outra situação. Não há informação sobre os aquartelamentos ou destacamentos onde fizeram a comissão...

Já tive a ocasão para lhe agradecer e dizer-lhe: "Isto é um ficheiro precioso. Só um tipo como tu, estudioso e amante da Guiné, tinha pachorra para fazer uam coisa destas... São mais de mil unidades que estiveram no TO da Guiné, entre 1962 e 1974"...

Ele modestamente respondeu-me: "O trabalho não foi meu. Apenas me limitei a dar uma forma diferente aos diagramas do 3º Volume das Resenhas de África".

Agora o que nos falta para completar esta listagem e torná-la útil para a nossa tertúlia ? Faltam-nos os nomes dos camaradas que faziam parte destas unidades, e que são membros da nossa tertúlia; as localidades onde estiveram sediadas ou aquarteladas; um link para os posts ou textos do nosso blogue que a elas se referem, etc.

Talvez possamos depois publicar, mais tarde, com o nome do José Martins como autor principal (seguido de outros eventuais colaboradores) uma lista no nosso blogue ou nas nossas páginas... Para isso, vai ser preciso passar o blogue a pente fino, desde 25 de Abril de 2005... Já são mais de 815 posts... Além disso, há também já perto de 50 páginas do nosso site, com centenas de imagens legendadas (incluindo mapas e fotos)...

Já se ofereceram para completar os dados os seguintes camaradas, embora com disponibilidades e competências variáveis: (i) o António Santos, que tem uma empresa de informática, segundo me parece; (ii) o Lema dos Santos, ex-1º tenente da Reserva Naval, que também tem uma empresa em áreas afins; (iii) o Zé Teixeira, que está reformado ( e que se mostra generosíssimo, como sempre!); e, por fim, (iv) o Armindo Batata (que trabalha em Mac e não Windows e que só está disponível em Agosto)...


2. A título de curiosidade, refira-se que o Pelotão de Caçadores Nativos mais antigo da Guiné, formado no CTIG - Recrutamento local, foi o Pel Caç Nat 51: formou-se em Setembro de 1966 e manteve-se em serviço até Abril de 1974, pelo menos. Da mesma época são ainda os seguintes: 52, 53, 54, 55, 56... O mais recente foi o Pel Caç Nat 70, formado já em Novembro de 1973.

Também ficamos a saber que a mais antiga Companhia de Caçadores, de recrutamento local, foi a CCAÇ 3, formada em Março de de 1967, tendo como unidade moibilizadora o CTIG - 3ª Companhia de Caçadores Indígenas. Manteve-se em serviço até Abril de 1974. Estava sediada em Barro, como sabemos.

Até Março de 1967, houve mais duas Companhias de Caçadores Indígenas: pelo menos a 1ª e 4ª (que foram entretanto desactivadas). (LG)

Guiné 63/74 - P817: Saudações ao comandante do Pel Caç Nat 51 (José Neto)

Guiné > Guileje > Pel Caç Nat 51 > Emblema.

Foto: © José Neto (2006)

Luís:

1. Mais uma alteração de e-mail. Passou a js.neto@clix.pt. Por causa dos megas. O anterior também está activo, mas parece que só recebe bilhetes postais. Cartas é muita fruta prós megas.

2. Quero dar as minhas boas-vindas ao Ex-Alf Armindo Batata (1) que esteve no Guiledje depois de nós, a [CART] 1613. Ele esteve com a CCAÇ 2316, certamente (2).

Aí vai a foto do emblema do Pel Caç Nat 51, que faz parte do meu espólio.

Até breve.
Um abraço do Zé Neto
_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCX: Ex- Alferes Miliciano Batata (Guileje e Cufar, 1969/70): Pel Caç Nat 51, presente!

(2) Vd. post de 11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCII: Confusão acerca da CCAÇ 2317 (Gandembel, 1968/69) e da CCAÇ 2316 (Guileje, 1968/69) (Zé Neto)

Guiné 63/74 - P816: Do Porto a Bissau (22): As ruínas de Có (A. Marques Lopes)








1. O A. Marques Lopes já fez circular pela nossa tertúlia estas imagens, de reduzida dimensão, sem legenda e que testemunham as ruínas de Có, em pleno chão manjaco:

"Eu e o Allen passámos por aqui, a caminho de Canchungo [Teixeira Pinto]. Para quem lá esteve se lembrar daquilo... como está".

De pé, fantasmagórico, resta, ao que parece, o monumento, em forma insólita mas original de coração, erigido pela CCAÇ 2584, que pertencia ao BCAÇ 2884 (Maio de 1969/Fevereiro de 1971) e que era a unidade de quadrícula de , nesta época.
Para mim, estas imagens são tristes e deprimentes: daqui a muitos anos, serão para os arqueólogos guineenses um dos poucos testemunhos de uma civilização, tecnologicamente superior, que passou pela região do Cacheu... Espero que reste, ao menos, aquilo que é imaterial e que é o mais importante nas relações entre os povos: uma língua, o português, que ajudou a construir a identidade nacional da Guiné-Bissau e a preparar o caminho para a independência e o futuro... E em português, nos entendemos hoje, neste blogue e noutros fóruns, falando das ruínas de Có, dos sinistros jagudis que pairam pela Guiné-Bissau de hoje, da ameaça de fome no sul do país, da guerra latente na frinteiura com Casamança, do futuro de esperança que desejamos para os dois povos, dos sentimentos de respeito e de amizade que nos ligam aos guineenses...

2. Comentando estas e outras imagens (sobre Fulacunda), escreveu o Afonso M.F. Sousa o seguinte:

"Estas fotos fresquinhas têm um valor enorme, sobretudo pelo comparativo que imediatamente nos suscita e fazemos com aquelas imagens reais de há cerca de 35 anos.

"Ainda há dias estive num almoço-convívio da CART 2412 e notei a sofreguidão com que todos queriam ver imagens de Barro e Bigene, de Abril de 2006, e compará-las com a memória de 1969/70.

"Parabéns a estes bravos, intrépidos e entusiastas repórteres fotográficos que estão a trazer estes sítios da Guiné de hoje, até ao nossos domicílios! Afonso Sousa".

3. Recorde-se quem esteve em Có, da malta da nossa tertúlia: o João Varanda, que vive hoje em Coimbra e que foi furriel miliciano da CCAÇ 2636 (1969/70). Esta era uma companhia açoreana, fez na primeira parte da sua comissão a segurança à construção da estrada Có- Pelundo - Teixeira Pinto.
Aqui ficam alguns excertos do seu testemunho sobre a passagem da sua unidade por Có (de 4 de Novembro de 1969 a 2 de Abril de 1970):

(i) Post de 19 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXIX: CCAÇ 2636 (Có, 1969/70) (5): Gastando o primeiro par de botas e as letras do alfabeto

(...) "A Companhia chegou a Có em 4 de Novembro de 1969, tendo no dia seguinte participado na protecção aos trabalhos em curso na estrada Có-Pelundo, ao lado da CCAÇ 2584, já com alguma experiência.

(...) "Assim foram passados quatro meses, onde por terra fomos a tudo quanto era sítio. Sem conta os kms. percorridos. Gastámos o primeiro par de botas, e no dia 2 Abril de 1970 partimos para nova aventura: o Sector Leste – Bafatá esperava por nós".

Guiné > CCAÇ 2636 > 1969 O João Varanda, lendo o jornal A Bola, na tenda de campanha, montada em Tel, entre Có e Pelundo, em pleno chão manjaco.
Foto: © João Varanda (2005)

(ii) Post de 26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial

(...) "Construímos ainda um espaçoso e seguro paiol subterrâneo para as centenas de granadas que jaziam praticamente a céu aberto, um sistema de filtragem de águas para beber e para banhos, uma oficina auto com fossa para lavagem e lubrificação de viaturas, com água corrente, para os nossos Unimog - para os grandes Furriel Marques e Teodoro Simões (Nanza) nos proporcionarem transporte seguro -, um heliporto para evacuação de feridos e doentes para a capital Bissau, um sugestivo e elegante monumento alusivo à nossa passagem pela aquela terra, evocando os nossos mortos brancos e africanos. O qual, mais de trinta anos depois, ainda se mantém incólume e erecto conforme me relatou o Capitão do PAIGC Eduardo Sanhá que veio, após o final de guerra colonial, cursar Direito na Universidade de Coimbra" (...).

(iii) Post de 26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - CCCXIV: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (3): O espírito de grupo

(...) "Có – e conforme vimos pelo teatro das operações antes da nossa chegada para tampão de zona - foi terra fustigada; no terreno, travava-se então lutas que pareciam eternas, mas a moral da CCAÇ 2636 era muito elevada, já que com os nossos comandos, na pessoa do jovem Capitão Miliciano Manuel Medina Mato e do 2º. Sargento Cruz, em pleno mato, às portas do combate do dia a dia, sentimos sempre o prodígio do apoio dos escalões superiores, traduzido em todas as valências, com oportunidade e eficácia" (...).

(iv) Post de 16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

(...) "Em Có fomos recebidos pela velhice daCCAÇ 2584, com grande algazarra e desejo de bom regresso. Chegados ao destacamento, o nosso pessoal começou, de imediato, o frenezim da descarga da coluna, e o desenrrascanço de como passar a primeira noite no aquartelamento de Có, já que este era pequeno e não tinha instalações suficientes para nos acolherem na sua totalidade, dado o ajuntamento da nossa companhia com a guarnição normal do aquartelamento da CCAÇ 2584. Mas na guerra há sempre lugar para mais um, e apesar dessa tensão toda a companhia ficou acomodada e tudo correu pelo seu melhor" (...).

4. Quem também por lá passou e de Có tem boas recordações foi o nosso amigo e camarada João Tunes, que originalmente perteceu à CCS do Batalhão, o mesmo a que pertencia a CCAÇ 2584, com sede no Pelundo:

(i) Vd. post de 16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCII: Có ? Isto é comigo!

(...) "Eu li o magnífico texto do João Varanda, no ilustre blogue de que o Luís é Cmdt Chefe, depois li o nº da Companhia dele (2636), o número tocou-me uma campaínha, mais o período de comissão, fixei-me no local: Có.

"Depois lembrei-me as vezes que estive em Có, no mesmíssimo período, enquadrado no mesmo Batalhão (sediado em Pelundo). E como era, então, uma alegria dar um salto a Có, malta bacana, ok sobre rádios e cripto?, vamos aos copos, assegurando (eles) a segurança da construção de uma nova estrada asfaltada (que já não lembro se ia para Teixeira Pinto ou para Bula ou para a puta que pariu o Caco).

"Julgo até (outra falha ou confusão?) que a Companhia de Có era comandada por um Capitão Miliciano, já economista com canudo e antifascista, um gajo porreiraço, já com uns cabelos a puxar para o grisalho, com quem punha a escrita em dia, deitando abaixo a porra da guerra, o fascismo, o colonialismo, e, claro, o Caco, o Marcelo e o Tenente Coronel facho do Pelundo que não percebia nada da poda" (...).
(ii) Vd. post de 25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)
"Caro Luís: É como dizes, não me lembro mesmo [não, a bold, como faz questão de frisar o autor, em 2ª via]. BCAÇ 2864? BCAÇ 2854? Por aí...

"Pois, o João Varanda nada disse, mas pensando nos dados que ele deu, a sua Companhia açoreana não pertenceu ao meu Batalhão, foi sim em reforço à Companhia do meu Batalhão e que ele chama de velhinhos. O que não invalida, pelas datas, que não tenha estado em Có ao mesmo tempo que ele (eu, de tempos a tempos, pela minha missão, ia até lá).

"Mas de Có, além de me lembrar bem do quartel, memorizei a estrada em construção (Có-Pelundo-Teixeira Pinto), com segurança especial, os copos (muitos copos bebi em Có, o que não admira, eu até bebi copos onde não havia copos, bebendo pelo gargalo) e o tal capitão miliciano, economista e antifascista, lá de Có (também não lembro o nome, mas estou a ver-lhe a cara) que era um compincha do caraças para cortar na casaca do Marcelo, do Caco e das putas que os pariram" (...).