Foto: © Victor David (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Mensagem do Rui Felício, acompanhada de mais duas das suas estórias deliciosas (1), das quais publicamos hoje a primeira. Obrigado ao Rui pelo seu generoso contributo com vista a manter a chama viva na nossa caserna virtual... (LG)
Meu Caro Luis Graça:
Sem nenhuma razão especial, lembrei-me de te escrever de novo. Apenas porque cada dia que passa me sinto mais ligado ao blogue. Cada vez mais admiro o teu trabalho. Especialmente depois do encontro da Ameira que possibilitou que ao virtual se sobrepusesse o real. E, por isso, sinto necessidade de manter a chama viva, de te dizer e a todos os que regularmente aqui escrevem, que a chama deve sempre manter-se acesa... Não precisa de ser muito forte, basta que que nunca se apague, que tenha uma luz e um calor constantes....
Anexo duas estórias simples já escritas há muito tempo, que terás a paciência de ler e avaliar.
Um abraço
Rui Felício
2. Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo,
© Rui Felício (2006)
SINCHÃ LOMÁ
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
Agosto 1969
Sinchã Lomá é uma pequena tabanca a Sudoeste de Dulo Gengele e esta por sua vez fica a Sul de Pate Gibel [vd. as três localidades na carta de Duas Fontes].
Quando a CCAÇ 2405 chegou a Galomaro, destacou três dos seus Grupos de Combate para regiões circundantes da sede da Companhia com a missão de marcar posição no terreno e fazer ao mesmo tempo uma espécie de guarda avançada para protecção da Companhia.
A mim, coube-me ir para Pate Gibel, a tabanca mais a sul de Galomaro.
Depois de ter feito o reordenamento das populações próximas, concentrando-as em Pate Gibel, e após ter dado uma rudimentar instrução militar e distribuição de armamento (Mausers) aos homens mais jovens da tabanca, bem como construção de abrigos e colocação de arame farpado, fui enviado para Dulo Gengele para fazer a mesma coisa.
Após a conclusão da missão em Dulo Gengele, o meu pessoal tinha já as rotinas e a experiência necessárias neste tipo de trabalho.
Esclareço que paralelamente a estas missões continuávamos a fazer os patrulhamentos e operações programadas pelo Batalhão, o que trazia os soldados algo descontentes e cansados… Mas é a vida…
Porque o Agrupamento de Bafatá achava que o trabalho tinha sido bem feito em Pate Gibel e em Dulo Gengele, mandaram-me repetir a dose, desta vez em Sinchã Lomá… O mal na tropa é a gente dar nas vistas… Seja pelo bem, seja pelo mal…
Esta tabanca estava completamente isolada e só se encontrava tropa a muitos quilómetros de distância fosse em que sentido fosse: a Oeste, Samba Juli, perto de Bambadinca; a Sudoeste, Mansambo, a meio caminho entre Bambadinca e o Xitole, a Sul, o Saltinho, a Nordeste, Galomaro.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Vista aérea da tabanca de Samba Juli > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sedeada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos queridos nharros da CCAÇ 12. (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Chegado a Sinchã Lomá, iniciei os trabalhos, dando prioridade, por questões de segurança própria, à organização da defesa da tabanca, estendendo arame frapado em redor do perímetro idealizado, e marcando os locais dos futuros abrigos, que decidi que fossem oito.
Ao mesmo tempo, seleccionei trinta recrutas entre os homens da população e incumbi o furriel Coelho de lhes dar alguma instrução militar e manuseamento do armamento que lhes iria ser distribuído. O objectivo era criar condições de autodefesa à população, evitando assim mais um destacamento militar do exército para o qual não havia efectivos suficientes.
Enquadrada a tabanca e os objectivos, passo à história propriamente dita.
Dada a experiência anterior já atrás referida, demorámos menos de metade do tempo que tínhamos gasto nas tabancas anteriores, para dar a missão como concluída. Para isso contribuiu também o dinamismo do Chefe de Tabanca que, ao contrário do de Dulo Gengele, colaborou activamente com a tropa, mobilizando praticamente toda a população para os trabalhos de construção dos abrigos.
Para quem não saiba, os abrigos eram buracos rectangulares, escavados até cerca de 1,20 de profundidade, em cujos cantos se colocavam quatro bidons cheios de terra que serviriam de pilares, nos quais iriam assentar os troncos de palmeira que constituíam a estrutura do telhado.
Feito o esqueleto do abrigo, cobria-se o telhado com uma camada de terra de cerca de 30 cm.
Tudo isto, sem cimento, nem máquinas e com rudimentares ferramentas ( pás, picaretas, martelos, pregos, serras manuais e pouco mais… ). E um Unimog que com o seu guincho eléctrico era de extrema utilidade. Tudo o resto, à base de esforço braçal…
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Porque eu sabia que após a conclusão da missão, regressaria para a sede da Companhia, interessava-me despachar-me o mais rapidamente possível.
Por isso, logo que achei que o trabalho estava feito, mandei um rádio para a Companhia, solicitando que alguém fosse vistoriá-lo para me ser dada a ordem de regresso.
Alguns dias depois, finalmente ouço o ruído de um helicóptero aproximando-se e fiquei ansioso para que tudo fosse visto e achado conforme.
O Heli pousou, pilotado pelo meu grande amigo de sempre, o Alferes Jorge Félix, mais tarde um quadro importante da RTP do Monte da Virgem em V. N. de Gaia.
Fiquei, porém, surpreendido pelas altas patentes que o acompanhavam! O Spínola, o Coronel Hélio Felgas (Cmdt do Agrupamento de Bafatá ) e o Capitão Almeida Bruno, à época oficial às ordens do Velho.
O Spínola dirigiu-se-me, cumprimentou-me e encaminhou-se para o abrigo mais próximo, consertando o monóculo e apoiando-se ritmadamente no seu bastão, à medida que ia caminhando.
Olhou, mirou, deu uma volta ao abrigo e, com ar admirado, deu uma segunda volta agora em sentido contrário… Dirigiu-se a um outro e repetiu a vistoria.
Batia nervosamente várias vezes com o bastão na terra poeirenta, olhava com ar inquisidor o Capitão Bruno e o Coronel Felgas e fez-me sinal para me aproximar…Pelo ar dele, senti-me pequenino e inseguro, embora sem ainda descortinar a razão da sua indisposição.
Olhou-me fixamente nos olhos, ficou em silêncio durante uns segundos e depois as palavras saiam-lhe da boca como se fossem pedras:
- Vocé é o alferes mais original da Guiné!
A frase seguinte, continha a explicação da sua irritação:
- Para que raio servem abrigos sem qualquer entrada?!
Nem me deu qualquer hipótese de resposta. Virou-me as costas e foi cumprimentar demoradamente o Chefe de Tabanca ao lado do qual se aglomeravam homens, mulheres e a criançada da aldeia.
E começou a arengar meia dúzia de frases feitas que ele adorava proferir :
- Vocês são o bom povo da Guiné, donos desta bela terra, que se desenvolverá harmonicamente sob a bandeira portugues... (E etc… etc… etc…).
Entretanto, enquanto decorria a parte política, o Capitão Almeida Bruno falou comigo, também ele intrigado, e perguntou-me porque razão eu mantinha os abrigos fechados, como se não tivessem portas de entrada.
Expliquei-lhe que os queria manter limpos e apresentáveis para a vistoria, estando previsto que, logo que aprovado o trabalho, eu retiraria uma série de grades que estavam colocadas nas futuras entradas dos abrigos, para ficarem definitivamente operacionais. É que se o não tivesse feito, à semelhança do que se tinha passado nas outras tabancas onde tinha estado, a população metia lá dentro os animais domésticos (cabritos, galinhas, patos, etc. ) que conspurcavam aquilo tudo. Para evitar isso, fechei provisoriamente os abrigos…
O Almeida Bruno, conhecedor profundo do estilo do General, disse-me que essa explicação não servia, e o Caco estava chateado que nem um perú. E que isso podia redundar em qualquer coisa desagradável para mim…
E aconselhou-me a ir explicar ao Spínola antes de ele embarcar de novo no Heli, o seguinte: (i) que eu tinha andado a ler uns livros sobre a guerra do Vietname; (ii) e que, num desses livros tinha ficado a saber que os americanos construíam uma grande quantidade de abrigos falsos, onde de facto não iriam estar quaisquer efectivos militares; (iii) e que o faziam para que o inimigo, quando atacasse, dispersasse o fogo por inúmeros pontos, muitos dos quais seriam meramente fictícios, diminuindo assim o poder de fogo e a sua eficácia; e, finalmente, (iv) que fora por isso que tinha decidido levar à prática a referida táctica.
- Por azar meu, logo aqueles que o General Spínola tinha vistoriado!
Estudada a lição, quando o Spínola, depois de discursar à população, se aproximou de mim para se despedir, pedi-lhe licença para lhe explicar o que atrás ficou dito. Não fez qualquer comentário e entrou no Héli que de imediato levantou voo, deixando uma enorme nuvem de pó sobre as nossas cabeças…
E um grande aperto no meu coração… O pior castigo que poderia sofrer era o de me cancelarem as férias na Metrópole já programadas para o Novembro próximo…
Recebi, uma semana depois, ordem de regresso à base e logo que cheguei, perguntei ao Capitão se havia novidades a meu respeito… Disse-me que não… Pelo contrário, o Felgas até tinha elogiado o meu trabalho. Mas nada comentou àcerca do incidente com o Spinola.
Enfim, do mal o menos… Ausência de notícias, boas noticías - costuma dizer a sabedoria popular.
Andava cansado e preocupado com tudo isto e pedi ao Capitão que me deixasse ir espairecer uns dias a Bissau, a pretexto de uma qualquer consulta externa que o pudesse oficialmente justificar.
Ao contrário do que era hábito, O Capitão condescendeu e dois dias depois rumei e Bafatá e daqui apanhei uma boleia num velho Dakota, para Bissau.
Depois de aterrar em Bissalanca, fui à messe de oficiais da Força Aérea e ali encontrei o Jorge Félix. Enquanto bebericávamos um copo, contou-me o que se passou no helicoptero, logo que levantaram voo de Sinchã Lomá.
- Eh pá… Tiveste muita sorte! – começou por me dizer… - O Velho estava com cara de poucos amigos quando olhou para os malfadados abrigos, mas logo que se sentou no helicóptero, depois de ouvir a tua versão táctica, olhou de soslaio para o banco a seu lado onde estava o Almeida Bruno e disse-lhe:
- Oh, Bruno aponta aí! Este alferes não é parvo de todo!
E pronto, a minha ansiedade distendeu-se.. . Percebi que, graças ao Capitão Almeida Bruno, as minhas férias de Novembro mantinham-se intactas… Como de facto se mantiveram!
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
3º Grupo de Combate
CCAÇ 2405
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Nota de L.G.
(1) Vd. último post, de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG