ex-Alf Mil da CCAV 8350 (1972/74)
(Esteve em Guileje e Gadamael em 1973;
vive hoje em Aveiro)
1. Comentário à análise do Tenente Aviador António Martins de Matos e alguns esclarecimentos. (*)
Caro Luís,
Não posso deixar de manifestar, por ti e pela tua equipa, o meu grande apreço e consideração. Camaradas que nunca tiveram oportunidade de libertar os seus fantasmas da Guerra têm, graças a ti, um espaço onde o podem fazer. Bem - hajas.
Não era minha intenção abordar os, já um pouco estafados, temas de Guileje e Gadamael -Porto. Participei em dois documentários televisivos sobre o tema e pouco mais gostaria de acrescentar. No entanto, após a leitura do texto de António de Matos (ex-Ten Pilav), sinto-me na obrigação moral de o fazer por, na minha perspectiva, algumas considerações que faz, não coincidirem com a realidade e muitos dos seus juízos de valor carecerem de sustentação factual.
A memória daqueles que tombaram em Guileje e Gadamael assim mo exige.
Agradar-me-ia escrever sobre o percurso da CCAV 8350 “Para além de Guileje e Gadamael -Porto”, sobre as dificuldades que tivemos de ultrapassar, no são convívio com as populações e no processo de descolonização em Cumbijã. Fica para a próxima.
Quando fui para a Guerra Colonial sabia para o que ia. O espírito de grupo formado durante a instrução e os condicionalismos familiares impediram que tomasse outra decisão. Aceitei as regras do jogo e cumpri a minha missão sem trair ninguém. Coloquei sempre como objectivo principal proteger os que de mim dependiam. A minha relação com todos assentava numa respeitosa e sã camaradagem.
2. Guilege e Gadamael-Porto “ vistos de terra”
Vivi o inferno sufocante de Guileje e a odisseia tenebrosa de Gadamael. Foram realidades distintas, mas tiveram um ponto comum: ambas foram abandonadas ao seu destino, embora Gadamael - Porto viesse a ser fortemente apoiada mais tarde, mas os estragos foram irreparáveis.
O Plano de evacuação de Gadamael chegou a ser colocado em acção sob a coordenação de Leal de Almeida (major), enviado para o local com esse objectivo e que só não se concretizou devido ao apoio massivo das forças especiais, das quais destaco o Batalhão de Pára-quedistas.
Guilege “visto de terra”, em 22 de Maio de 73, está descrito pormenorizadamente no livro de Coutinho e Lima, pp. 74-76. Perante a recusa de ajuda de Bissau, Coutinho e Lima tinha de decidir, o tempo era seu inimigo. Ou retirava ou permanecia. Qualquer decisão tinha os seus riscos. É verdade que retirar nas condições descritas poderia transformar-se no maior desastre da Guiné, como diz António de Matos, mas permanecer lá poderia transformar Guilege num aterrador cemitério.
Coutinho e Lima sabia que esperar pelo substituto nada resolveria, à medida que o tempo passava a situação agravava-se.
Pude testemunhar em Gadamael-Porto a ineficácia do novo Comandante face à situação criada (abordarei o assunto mais à frente). Coutinho e Lima, ao decidir-se pela retirada, define-se como um militar competente e corajoso.
Competente, porque soube avaliar correctamente a situação e conseguiu tirar o melhor proveito desta, aproveitando o factor surpresa. Corajoso, porque a sua vida militar terminaria ali e as consequências para a sua família seriam dolorosas. Ele sabia-o, mas optou por retirar e, deste modo, salvar as pessoas que estavam sob o seu comando (militares e civis).
É natural que para vós, ex-combatentes da Guiné, este momento da decisão nada vos diga, mas quem presenciou, sente, ainda hoje, alguma comoção.
2.1. Permito-me esclarecer o seguinte a António de Matos:
- Não é verdade que desde 6 de Maio de 73 não se efectuasse qualquer saída do aquartelamento. Coutinho e Lima refere no seu livro, pp. 32,33, saídas nos dias 1, 4, 7, 11, 14 e 16 de Maio e cita as suas fontes de informação: documento elaborado pela 4ª Repartição do CTIG.
- Guileje, no dia 21, esteve cercado. A parte norte, na direcção do Mejo (donde não se tinham registado quaisquer ataques) estava ocupada por grupos do PAIGC, pertencentes ao 3º Corpo do Exército. A população chegou a ser atacada, quando se dirigiu à bolanha para recolher água.
-Não houve qualquer debandada. A retirada foi ordenada, conforme ilustram as fotografias do livro de Coutinho e Lima, p.77. Houve, de facto, algum barulho feito pela população, que procurava transportar o máximo dos seus haveres.
Pode-se levantar aqui a questão: Porque não atacou o PAIGC? Isto, ainda hoje, após conversas havidas em Dezembro de 1995 com o Comandante Nino (Comandante da Região Militar Sul) e com o Comandante da Logística, constitui um mistério para mim.
Nino (Comandante da Operação) deixa transparecer algum desconforto com a questão e diz que nada fazia prever a nossa saída, pelo facto de durante toda a noite termos feito imenso fogo com os obuses. Já o Comandante da Logística, mostrando o mesmo desconforto, responsabiliza o Major, Comandante do Sector. Este viria posteriormente a ser fuzilado.
Estamos perante duas hipóteses: Ou os guerrilheiros do PAIGC, que permaneciam na zona, se afastam do local para outro mais afastado do aquartelamento, onde pudessem descansar mais tranquilamente e são surpreendido pela nossa saída, ou a possível existência de familiares na população inibe-os de atacar.
Parece-me, no entanto, pouco credível esta segunda hipótese. O que fica bem claro era a intenção de nos atacar, expresso no descontentamento manifestado pelos mais altos responsáveis do PAIGC. O fuzilamento do Major, Comandante do Sector, reforça esta ideia.
- Era completamente impossível desarticular a Artilharia do inimigo com a nossa Artilharia, conforme explica Coutinho e Lima no seu livro p. 78.
Devo acrescentar que não era só a Artilharia que fazia mossa, a utilização frequente dos morteiros 82 e RPGs era bastante limitadora da nossa movimentação dentro do próprio aquartelamento (o mesmo se veio mais tarde a verificar em Gadamael).
Em algumas flagelações o PAIGC utilizou todo o tipo de armamento tornando difícil verificar donde “chovia” e o quê. Aconteceu até, sermos flagelados no momento em que os FIAT – 91 nos sobrevoavam.
Desconheço o alcance da artilharia do PAIGC mas permito-me duvidar da sua inexistência no território da Guiné, nas proximidades da Guileje. O que ninguém me consegue convencer é que o fogo de RPG fosse efectuado do lado lá da fronteira e viesse atingir Guilege. A menor distância, em linha recta, é de 7 km (carta militar de Guilege, blogue de Luís Graça).
- Além de “mau gosto” foi lamentável e no mínimo infeliz a resposta que António de Matos dá ao Alfaiate (Furriel Transmissões) quando este, em situação de desespero, lhe pede auxílio. Disse-o com raiva, refere António de Matos.
Guilege “ visto do ar” era de facto outra coisa! Guilege “ visto do ar” era uma ficção. Não existiu simplesmente!
Recordo uma conversa entre dois pilotos numa das suas missões (dia 20 ou 21): “Olha que isto é mesmo a sério”. Nesse momento o aquartelamento estava em chamas.
- Durante os 6 meses que estive em Guileje até 18 de Maio de 73, fomos flagelados algumas vezes, o que aliás sucedera com as companhias anteriores, mas era muito raro que qualquer granada caísse dentro do aquartelamento.
No entanto, a partir de 18 de Maio de 73, algo mudou nos processos de actuação do PAIGC. Ataques ao aquartelamento eram feitos a qualquer hora do dia e não só ao cair da tarde, como anteriormente. O tiro era preciso e ajustado. Existiam orientadores da direcção de fogo colocados na copa das árvores e devidamente protegidos pela infantaria, que para o efeito tinha aberto valas na mata (só mais tarde em Gadamael tivemos conhecimento disto). Artilheiros estrangeiros, na sua maioria cubanos, ocupavam-se de toda a coordenação de fogo.
A guerra do bate-e-foge, porque vem aí a aviação, era assunto enterrado. A guerra de guerrilha terminara e estávamos no limiar da guerra clássica. A presença de carros de combate na fronteira, prontos para entrar em acção, era já dos assuntos mais falados.
- O Ten Pilav António de Matos demonstra um certo desconhecimento do que se passou em Guilege, no período de 18 de Maio a 22 de Maio de 73. Não me parece, por isso, que tenha o perfil ideal para julgar qualquer militar da CCav 8350 e muito menos quem, no terreno, teve de decidir: Major Coutinho e Lima.
Poderia ter ocorrido aqui uma tragédia de dimensões difíceis de imaginar: Não era só o pessoal de Guilege que estava em causa. Qualquer reforço terrestre vindo do exterior teria imensas dificuldades em chegar a Guileje. Se tentassem vir pela estrada de Gadamael (que era o mais natural e lógico), logo nas imediações de Gadamael encontravam uma forte oposição do PAIGC.
Para impedir qualquer apoio a Guilege estavam montadas 20 armadilhas, comandadas electricamente, o que, aliás, aconteceu nas imediações de Guilege. A outra hipótese seria a utilização do trilho que nos serviu na retirada, mas a probabilidade de o poderem fazer era praticamente nula, nessa altura. Só rompendo o cerco como fizeram em Guidage conseguiriam entrar em Guilege, com custos em vidas humanas difíceis de quantificar.
3. Gadamael-Porto
A CCav 8350 chega a Gadamael por volta das 12 horas. Aí já se encontra o novo Comandante do COP5. Coutinho e Lima é detido e passados 3 dias é conduzido para Bissau. Os militares da CCav 8350 passam a ser tratados de uma maneira discriminatória e até desumana.
Os grupos da CCav 8350 passam a sair diariamente para efectuar patrulhamentos à volta do aquartelamento e são vítimas de emboscadas, sem grandes consequências, enquanto as forças do PAIGC fazem protecção avançada à instalação das suas bases de fogo. Isto era evidente, exigia-se outro tipo de intervenção, para que o desastre não acontecesse. Guilege estava fresco na memória de todos.
As condições físicas e anímicas da CCav 8350 eram deploráveis. Obrigados pelo novo Comandante do COP5, todos os dias, a esforços violentos, arrastam-se pelo mato, caem de exaustão, vomitam e muitos encontram-se em estado de desidratação avançada, provocada por constantes diarreias. A tudo isto permanecem insensíveis as chefias militares.
No dia 31 de Maio, de manhã, o novo Comandante dirige-se a Cufar. Para ele, a situação de Gadamael estava controlada. Antes, porém, ordena-me que, nessa tarde, faça um patrulhamento nas imediações de Sangonhá.
O festival de morteiro 82 (deles) e 81 (nosso) começa por volta das 14.30 e as granadas transitam, nos dois sentidos, por cima das nossas cabeças. Pretendo voltar ao aquartelamento no final da tarde, o que me é recusado. Permaneço emboscado com dois grupos de combate durante toda a noite. Perante a dimensão da flagelação, tenho a percepção que algo de muito grave terá sucedido.
Regresso ao aquartelamento, por volta das 12 horas do dia 1 de Junho, sem autorização, porque não conseguia estabelecer contacto com o quartel. Sou informado pelo Seabra (Alf. Mil CCav 8350) da dimensão da tragédia humana e no aquartelamento não permanecem mais de 30 homens, dispersos pelas valas e pelos abrigos.
Entretanto, o novo Comandante, alertado para a situação, regressa no próprio dia 1 de Junho de Cufar e recebe-me junto à pista. É a primeira vez que me trata como um ser humano e indica-me os procedimentos a tomar.
A situação é incontrolável. O pânico instalara-se no aquartelamento e as NT fugiram desordenadamente. Uns refugiaram-se na mata circundante ao aquartelamento e só regressaram ao início da noite. Outros, a maioria, atravessaram o rio na direcção de Cacine e foram evacuados com a ajuda dos fuzileiros, tendo um deles morrido na travessia do rio.
Nesse dia as tropas do PAIGC dispõem da oportunidade soberana de tomar de assalto o aquartelamento sem grandes riscos. (Confessar-me-ia, em Agosto de 74, no aquartelamento de Cumbijã, um dos quadros políticos do PAIGC terem cometido aí o seu maior erro estratégico).
No dia 2 de Junho, uma flagelação atinge o abrigo das transmissões, onde se encontravam os dois Comandantes de Companhia, que são feridos e, posteriormente evacuados pelos fuzileiros.
Ainda no dia 2 de Junho, o General Spínola vai ao aquartelamento inteirar-se da situação, mas não chega a descer do helicóptero, perante os gritos desesperados de alerta dum soldado deitado à minha frente (numa das valas da enfermaria) e a corrida desenfreada do Comandante do COP 5. Salvam-se por uma fracção de segundo.
Há um espaço temporal em que não existe um único Oficial do Quadro a assumir esta situação. Só no final da tarde, o Adjunto do Comandante chega a Gadamael e assume o Comando.
O novo Comandante do COP5 não voltou a ser visto em Gadamael, pelo menos durante a permanência da CCAV 8350, meados de JULHO de 73.
No dia 4 de Junho, 11 militares mal armados, saem para o mato pressionados pelo novo Comandante da CCav 8350 e são emboscados a 500 metros do arame farpado. Resultado: 4 mortos e um ferido grave.
Ainda no dia 4 de Junho chega a 1ª Companhia de Pára-quedistas para reforço das nossas tropas. São colocados numa vala na extremidade da pista. Sou também enviado para lá com o meu grupo de combate, sem eu saber porquê e para quê.
Os Pára-quedistas sentem-se impotentes perante tal situação. Mal saem da vala para efectuar qualquer patrulhamento são de imediato flagelados e impedidos de sair. Apesar disso a sua presença é benéfica para as nossas tropas, que pela 1ª vez desde 18 de Maio, sentem alguma protecção.
Esta situação de impedimento de saída do aquartelamento acaba por ser ultrapassada, uns dias mais tarde, com a chegada das restantes companhias que integravam o Batalhão. A eles se deve a não ocupação de Gadamael pelo PAIGC.
Muito mais haveria para contar. Talvez um dia.
4-Conclusão:
Bem podíamos esperar, enterrados em Guileje, pela perspicácia deste novo Comandante e pelas ajudas que nem sequer prometeram a Coutinho e Lima.
5-Considerações finais:
Foi minha intenção, apenas e só, repor a verdade dos factos. A dignidade e o profissionalismo dos intervenientes neste conflito não foram colocados em causa. São intocáveis.
Deixo o meu sincero apreço pelos camaradas da Força Aérea que, enquanto não tiveram limitações de voo, foram inexcedíveis. Sempre soubemos reconhecê-lo.
Eram recebidos, em plena pista, pelo Comandante do COP5 e/ou Companhia, que se faziam acompanhar por uma menina, vestida a rigor, transportando numa bandeja uma garrafa de whisky, uma garrafa de água e um copo.
Um abraço amigo para todos aqueles que, de uma maneira ou doutra, combateram na Guiné.
Manuel Reis
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Notas de vb:
1. Sublinhados do editor.
2. Artigos relacionados em
(*) Vd. postes de:
23 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3783: FAP (1): A diferença entre o desastre e a segurança das tropas terrestres (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res)23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3782: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (18): Obrigou-se o PAIGC a combater em Gadamael... (João Seabra)
23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3778: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (17): O cerco que nunca existiu (António Martins de Matos)
17 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3752: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (13): A missão de apoio aéreo de 21 de Maio de 1973 (António Martins Matos)
14 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)
Vd. ainda o poste de 16 de Dezembro de 2008 >