terça-feira, 30 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6076: Blogoterapia (148): A propósito da gente do Enxalé, Porto Gole e Missirá (CCAÇ 1439 + Pel Caç Nat 52): a questão da e-literacia da nossa geração (Henrique Matos / Luís Graça)


Coruche > 19º Encontro Nacional da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)> O Mário Beja Santos, ao centro, tendo à sua direita, o Henrique Matos (o 1º Comandante do Pel Caç Nat 52), o João Crisóstomo e na ponta o Jorge Rosales (1ª Companhia de Caçadores Indígena, Farim e Porto Gole, 1964/66). À sua  esquerda, estão o Freitas e o Sousa, ambos da CCAÇ 1439.


Coruche > 19º Encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá) > O Mário mais o Henrique, ambos comandantes do Pel Caç Nat 52; à direita do Henrique, o ex-Fur Mil João Vaz Neto e o ex-1º Cabo Cunha.
Fotos (e legendas):  ©   Matos (2010). Direitos reservados 

 1. Mensagem do Henrique Matos, com data de 19 do corrente

Assunto - Fotos do blog Camarigo Luís (i) Vamos então à legendagem das fotos (*) : na primeira, à esquerda do Beja Santos, o Freitas e na ponta o Sousa, ambos ex-Alf Mil da 1439. O Freitas veio de propósito da Madeira para o encontro. Retira da legenda que o Rosales  foi do Pel Caç Nat 54 (**). Na segunda, é tudo pessoal que esteve no Pel Caç Nat 52:  à minha direita o João Neto Vaz,  ex-Fur Mil que esteve preso em Conacri e na ponta o Luís Cunha, ex-1.º Cabo, o que levou o tiro no joelho. (ii) Quanto ao João Crisóstomo entrar para a Tabanca (*),  vai ser um berbicacho. Já lhe falei nisso várias vezes porque de vez em quando ele telefona-me. Diz que não percebe nada de computadores e até umas fotos que lhe mandei por email teve que pedir a alguém uma ajuda para as ver. Acreditas que daquele grupo da 1439 que vai aos encontros, também não se pode dizer que seja um grupo grande, ninguém vai à internet? Os contactos possíveis são feitos através dos filhos. Grande abraço e se não fôr antes, até à Monte Real. Henrique Matos
 
2. Comentário de L.G.: 

 Obrigado, camarada e amigão Henrique, homem grande do Cuor: Vou fazer as devidas correcções, incluindo o Rosales (fiz confusão, ele é da 1ª Companhia de Caçadores Indígena!). Vamos insistir com o João Crisóstomo... Vamos pô-lo a usar a Net... Como é que um lobista daqueles, um militante de causas nobres como ele,  não usa a Net ?!...Fará se usasse... Ele email, pelo menos, tem... É uma geração tramada... Da CCAÇ 1439 não temos ninguém na Tabanca Grande.. E mesmo das restantes unidades, só um, dois, três, no máximo quatro... Vê pelo teu pelotão... Activos, activos, só tu, o Mário e o Joaquim (três levas diferentes)... E da minha CCAÇ 12 ? Registados estão vários, mas para escrever, é um castigo... Podemos falar de um problema de e-literacia  (e não de iliteracia...)  da nossa geração de ex-combatentes ? A malta que escreveu milhões de aerogramas, que está a escrever livros,  que tem memória de elefante,  que operou as maiores mudanças do Portugal do Séc XX,  que comeu o pão que o diabo amassou,  que doutorou filhos,  que tem netos que já nascem a jogar playstation, não é capaz agora de mandar um simples e-mail, de digitalizar uma  fotografia ou de ler um blogue ?... Não acredito, tem que haver aí muita  preguiça mental pelo meio... 

 Henrique, aí está um bom tema para a gente discutir, esmiuçar, tabaquear, conversar, beberricar, petiscar... E-literacia: conhecimento de (e capacidade para usar, com eficiência) as novas Tecnologia da Informação e Conhecimento (TIC)... Atão essa brava gente do Cuor tem TAC(ues) a mais e TIC(ues)  a menos ?  Já  lhes chegou o Alzheimer, ou quê ?  Temos que levar esse pessoal a fazer outra IAO... Faz o favor de insistir com o João Crisóstomo & Companhia... Se não sabem, aprendem, e nunca é tarde para aprender... E professores em casa não lhes faltam, dos filhos aos netos.... Até Monte Real, no dia 26 de Junho de 2010, sábado, dia do nosso V Encontro Nacional. Vai ser no "hotel do Jaquim"... O mesmo preço de Ortigosa, ou até um pouco menos: 30 aéreos, almoço + lanche... O genro do Jaquim é o director das Termas ( ou do Palace Hotel, que está agora um brinquinho, foi completamente remodelado, depois de 20 anos fechado). Vamos estar melhor, no centro da vila, etc. Daremos notícias no blogue.  Ciao. Abraços. Luís



(**) 9 de Junho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça

(...) Ligou-me estar tarde, por telefone, mais um camarada, o Jorge Rosales, de 69 anos, residente em Monte Estoril / Cascais, e que esteve em Porto Gole (1964/66)... Tem falado ao telefone com o Henrique Matos, que esteve a seguir a ele em Porto Gole (1966/68). Falei-lhe do Abel Rei (1967/68), que é mais novo, e que ele naturalmente não conhece... (...) O Jorge Rosales pertencia à 1ª Companhia de Caçadores Indígena, com sede em Farim (Havia mais duas, uma Bedanda e outra em Nova Lamego, acrescenta ele). Ficou lá pouco tempo, em Farim, tavez uma semana. A companhia estava dispersa. Foi destacado para Porto Gole, com duas secções (da CCAÇ 556, do Enxalé) e outra secção, sua, de africanos. Tinha um guarda-costas bijagó. Parte dos soldados eram balantas. Possuíam apenas 1 morteiro (60) e 1 bazuca. A farda ainda era amarela. Ficou 18 meses em Porto Gole. Ia a Bambadinca jogar à bola com os de Fá. Foi uma vez a Bafatá, apanhar o NordAtlas. Lembra-se da piscina.
Enquanto lá esteve, em Porto Gole, havia um certo respeito mútuo, de parte a parte. A influência de Cabral era evidente, fazendo a distinção entre o povo (português) e o regime (colonialista). Podiam deslocar-se num raio de 10 km…. Mas a ligação com Mansoa já se perdera. O troço já não era seguro. Em Mansoa estavam os respeitados Águias Negras (BART 645, que dominavam o triângulo do Óio: Olossato, Bissorâ e Mansabá) .(...) 

Guiné 63/74 - P6075: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (10): Quando a missão não deixa ver

1. Mais uma história do nosso camarada António Paiva, (ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70), enviada ao Blogue no dia 22 de Março de 2010.


QUANDO A MISSÃO NÃO DEIXA VER


Onde eu nasci e fui criado, se poderia considerar zona pobre de Lisboa.
Mas rica em juventude, traquina e travessa, que de manhã à noite fazia eco pela calçada, travessa e largo onde existia a escola onde eu andei até à 4.ª classe.
Por baixo era a esquadra da PSP, tudo nos servia para dar largas à nossa meninice. Pular, correr, saltar, jogar ao bilas, à carica, ao peão, dar pontapés na bola feita de papel de jornal metida dentro de uma meia de vidro que as mulheres, depois de rotas, deitavam fora.
Ainda tínhamos a possibilidade de ir à fábrica do sabão buscar caixas de madeira para fazermos uns carros com rodas de esferas, para descer pela calçada a baixo, fazendo um barulho do caraças.
Ainda tínhamos no mesmo largo a Casa das bicicletas, onde se alugavam, para fazermos mais algumas asneiras e quedas à Campeão, a minha era sempre a n.º 7, não sei bem porquê, mas era dela que eu gostava.

Só tínhamos um problema nesse tempo, era quando andávamos de arco com gancheta os policias vinham-nos chatear por causa do barulho, o mesmo servia para lhe pôr uma rede em volta e ir para cima dos pontões que aqui existiam para pescar caranguejos.

Tudo isto para dizer que, onde eu nasci, também nasceu o Domingos, o Matos, o António Fernando, o Fernando e muitos outros, mas estes foram os que estiveram no mesmo tempo que eu na Guiné.

A partir dos bancos da escola, nos fomos separando lentamente uns dos outros, cada um com o seu destino, o meu foi começar a trabalhar aos 12 anos, mas nada impedia que não nos fôssemos encontrando, mais que não fosse para umas tacadinhas de bilhar, no café cá do sítio

Veio a vida militar e eu como destino, tive o HM241, lá parti.

HM 241 em Bissau

Já lá estava há 15 meses quando, na tarde de uma quinta-feira do mês de Setembro de 1969, um camarada vem ter comigo e me diz:

- Oh pá, vai ao pavilhão A, está lá um gajo que te quer falar, disse-me que te conhece.

Lá fui.
Tal é o meu espanto, quando lá chego, vejo o Fernando deitado na cama com um joelho todo lixado.
Como não podia deixar de ser, comecei por fazer a pergunta mais simples:

- Então rapaz, que te aconteceu, quando é que vieste?

A resposta que obtive foi simples e directa, fiquei de boca aberta e penso que os ditos quase me caíram ao chão.

- Tu é que me fostes buscar, nem me falaste, nem para mim olhaste.

- Eu?

- Sim tu, no Domingo, tiraram-me da avioneta, enfiaste-me dentro da ambulância, quando vi quem eras, tinhas fechado a porta, nem tempo tive para abrir a boca, quando chegamos aqui ao Hospital, outros me tiraram e foste-te embora.

Porra, tinha sido numa missão, extraordinária, de Domingo.

Em missão de socorro, perante as responsabilidades, ficávamos mesmo cegos. O auxílio era prestado com eficácia, independentemente de se tratar de um amigo ou desconhecido.

Um Abraço
António Paiva
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4629: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (9): Dois pequenos amigos de quatro patas

Guiné 63/74 - P6074: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (7): Primavera de 2010 no Chiado

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira* (JERO) (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), com data de 22 de Março de 2010:

Boa noite Caro Carlos Vinhal
Como já cheira a Primavera - e nunca mais chega o V Encontro - lembrei-me de escrever mais uma história da vida.

O "sem abrigo" desta história, que nada tem de ficção, pode ter sido um ex-combatente... Independentemente dessa hipótese é chocante a miséria que faz parte da cosmopolita baixa lisboeta.

Sobem o Chiado jovens vestidas como modelos, de mãos ocupadas com cigarro e telemóvel, flutuando entre luxos e frivolidades sem pousarem os olhos em gente que nada tem. Nem abrigo nem esperança.

Foi esta a Primavera que eu vi no Chiado em 21 de Março de 2010.

Um abraço.
JERO


PRIMAVERA NO CHIADO… em 2010

Vivi em Lisboa durante dois tempos da minha vida.

No primeiro tempo como militar e, depois de ter sido mobilizado e ido à guerra do Ultramar, regressei – em segundo tempo - como empregado bancário. Terão sido, ao todo, cerca de três anos.

Depois fixei-me em Alcobaça… até hoje.
Já lá vão cerca de 40 anos.

As contingências da vida levaram-me cada vez mais a espaçar as visitas à capital, mais propriamente à Baixa lisboeta.

Neste último fim de semana vim a Lisboa e visitei algumas zonas nobres da capital, onde é “obrigatório” vir para quem vive habitualmente na Província.

Fiz questão em ir ao Chiado e estar com o Fernando Pessoa que muito prezo.
Como é sabido esta figura única da cultura portuguesa não teve vida fácil, sendo reconhecido e reverenciado depois de ter partido para o Além, o que, sendo importante, deve ter sabido a pouco e tardio ao principal interessado…
Desde sempre associei o Fernando a uma vida amargurada, que parece permanecer por perto da sua Pessoa!

No dia em que estive nas proximidades dos seus “domínios”, ao Chiado, vi (e fotografei) três cenas dramáticas separadas por distâncias bem curtas.

A poucos metros do Fernando, aos pés da estátua de António Ribeiro Chiado, dormia em pleno dia (eram 16H00) um “sem abrigo”. Entre as Igrejas dos Italianos e a dos Mártires.

A temperatura estava cálida na tarde do primeiro dia de calendário da Primavera de 2010… e o homem dormia a sono solto.
Também podia estar morto mas toda a gente passava com um olhar rápido – ou sem olhar – e seguia a sua vida…

O “sem abrigo” fazia parte da paisagem…

Mais abaixo, perto dos Armazéns do Chiado, um cão dormia a sono solto junto da banca do “patrão”, que, sem grande esforço, vendia – ou tentava vender - numa banca improvisada “souvenirs” que não atraíam ninguém. Atracção era o cão que, mesmo a dormir, fazia pela vida do “patrão”. Muitos passantes paravam e deixavam uma moeda num tigela de plástico. Perto do cão.

Descemos a caminho do elevador de Santa Justa… e se já “íamos em choque”… pior ficámos.

Um casal de idosos cantava o fado… à espera de uma moeda. Ou não estavam no passeio certo ou não era por acaso que os transeuntes optavam por passar do outro lado da rua. Ninguém parava uns segundos para ouvir o fadista e… deixar uma pequena ajuda.

Em relação a estes três locais que descrevo ia jurar que os passantes só olhavam com (particular) simpatia para o cão!

Foi essa a minha visão…

Mal vai o mundo quando um cão parece valer mais ajuda que… seres humanos.

Digo eu… que sou da Província… e até gosto de cães!
JERO

PS - No regresso ao local onde tinha estacionado o carro, na Rua do Alecrim, passei novamente pela estátua de António Ribeiro Chiado. O “sem abrigo” já não estava onde o tinha visto uma hora atrás. Das duas Igrejas dessa zona do Chiado – a dos Italianos e dos Mártires – só a segunda mantinha as suas portas abertas. Desejei que o “sem abrigo” tivesse feito a melhor opção…
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6016: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (6): Na prisão é que está a dar

Guiné 63/74 - P6073: Ainda o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (7): Dos 47 afogados foram resgatados 11 cadáveres pelos fuzileiros (Rui Ferrão, 10º DFE, 1967/69)





Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > Pel Caç Nat 53 (1970/72) > O Rio Corubal não traz só trágicas recordações para os militares portugueses... Em sítios aprazíveis  como o Saltinho, dava para tomar um banho  retemperador, como se vê aqui na foto, com o Alf Mil Paulo Santiago, comandante do Pel Caç Nat 53, a nadar,  tendo a seu lado o Alf Mil Julião, o Fur Mil Josué, o Alf Mil Mota e 1º Sarg Picado, pertencentes à CCAÇ 2701 (1970/72).

Foto: © Paulo Santiago (2006) . Direitos reservados





1. Mensagem, com data de ontem,  de Rui Ferrão, residente em Vendas Novas,  ex-fuzileiro especial, pertencente ao 10º DFE (1967/69), a quem já endereçámos  em tempos o convite para se juntar, na Tabanca Grande, aos amigos e camaradas da Guiné:

Assunto - A verdade dos factos

Amigo e camarada Luís Graça, em primeiro lugar quero saudar toda a equipa que coordena todo este trabalho. Digamos que é um trabalho, e é também uma terapia para quem andou pelas terras da Guiné, em condições por vezes adversas à vivência do ser humano. Efectivamente quando nós entramos no Blogue e começamos a “desfolhar” não nos apetece parar, são horas e horas de pesquisa.

No meu caso particular, há relativamente pouco tempo descobri este vosso trabalho e o que me traz  aqui hoje é o seguinte: Os camaradas que aqui vêm contar as suas histórias,  quer sejam em combate, quer sejam em convívio, ou qualquer que sejam as circunstâncias, contem apenas aquilo que se passou com eles próprios e não venham falar de assuntos já em terceira ou quarta mão, que assim corre-se o risco de estarmos a elaborar em erros, que põem em causa a verdade dos factos, passados naquela ex-província portuguesa .

Vou contar um caso que, aliás, não tem nada a ver com o vosso trabalho, saiu já a alguns meses no jornal Correio da Manhã, no suplemento de domingo, onde se publica rubrica “A minha guerra”, onde um indivíduo aborda o caso dos nossos camaradas falecidos no acidente do Corubal e diz o seguinte, (cito as suas palavras) (**):

Estava no cais do Pijiguiti á espera que o resto do batalhão desembarcasse, vindo da metrópole, quando vejo uma lancha da marinha que depositou no cais, ao pé de nós, 47 caixotes de madeira tosca, que continham os corpos dos camaradas falecidos no desastre da jangada no rio Corubal, no sudeste do território, durante a evacuação de Madina do Boé.(**)

Ora bem, pertenci ao Destacamento nº 10 de Fuzileiros Especiais e foi deste Destacamento que saíram duas secções, passados alguns dias, para o local do acidente, com a missão de recolher os corpos a boiar no referido rio. Dos 47 afogados, foram resgatados 11 cadáveres, que foram sepultados com todas as honras militares na margem do rio, os restantes ficaram dispersos pelo rio à mercê dos crocodilos e doutras espécies afins.
Chamo aqui atenção, como é possível um indivíduo acabado de chegar à Guiné sem ter o mínimo de conhecimento do que é que se passou e vem para um jornal comentar um assunto do qual não estava devidamente informado,  afirmando que viu as 47 urnas dos soldados afogados no Corubal ?

É completamente falso, daquele acidente não vieram urnas nenhumas para Bissau com militares mortos, poderia ser eventualmente de outro ponto da Guiné.

Mais a diante no mesmo suplemento diz o indivíduo, volto a citar:

Destaco nessa zona (chão Fula) uma forte actividade inimiga que só num ataque havia já produzido 72 baixas. Os corpos dos militares e civis reunidos no posto de socorros produziam na valeta da rua um apreciável caudal de sangue. (**)

Meus amigos,  nós sabemos que 72 pessoas mortas é muita gente mas para produzir um caudal de sangue, será para impressionar os menos atentos? Deixo à consideração.

A guerra nas ex-províncias ultramarinas faz parte da nossa história recente e nós temos o dever e o direito de a narrar nos jornais, na internete, na televisão etc.etc. mas com verdade.

Agradeço o convite que o meu amigo me fez, para que faça parte da tabanca, quando tiver mais um pouco de vagar vou naturalmente aderir.

Camarada Luís Graça,  se o meu amigo achar que tem interesse, publica, de contrário fica o reparo e o meu desabafo. (***)

Um abraço, Rui Ferrão


___________

Notas de L.G.:

(*) 27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5902: FAP (48): A guerra Páras-Fuzos, vista por um fuzileiro (Rui Ferrão)


Guiné 63/74 - P6072: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (14): Recordando o Fur Mil Américo Leong Monteiro, Maitá

1. Mais uma nota solta do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em mensagem do dia 19 de Março de 2010:

NOTAS SOLTAS DA CART 643 (14)

Recordando uma manifestação de amizade


Felizmente todas as Companhias tinham elementos que eram o exemplo da amizade.

O Américo Leong Monteiro, ex Furriel Miliciano, mais vulgarmente conhecido pelos amigos como MAITÁ, era um deles.

Oriundo de uma familia tradicional chinesa, nascido, criado e residente na longínqua Macau, veio para a Metrópole por obrigação prestar o serviço militar, tendo mais tarde sido mobilizado para a Guiné, como elemento da CCS do BART 645.

O Batalhão embarcou a 4 de Março de 1964, mas no fim de Setembro de 1963 já estava em formação em Santa Margarida. Foi nesse aquartelamento, como todos sabem localizado num "deserto", que fizemos amizade, portanto estivemos juntos cerca de 5 meses, foi em Santa Margarida que os AGUIAS NEGRAS criaram "endurance", nas noites gélidas e chuvosas do inverno de 63.

Mas estas notas soltas, simplesmente querem dar a conhecer que o MAITÁ em certa altura mostrou novamente a verdadeira amizade. Todos nós esperávamos ansiosamente pela sexta-feira, para o desejado fim de semana, mas havia obrigações de serviço à Companhia, o Sargento de Dia e da Guarda, que quando calhava nesse período era uma seca das grandes, mas claro este sacrifício passava por todos.

Chegou o Natal e Fim de Ano, ao Rogério Cardoso calhou o serviço de Dia e Guarda, nesse período citado. Fiquei aborrecido por saber que toda a malta ia para casa e eu casadinho de fresco, a 22 de Setembro, ficava naquele deserto.

Então o MAITÁ sabendo que eu estava "condenado", veio junto a mim e disse:

- Oh Rogério, eu não tenho ninguém de familia por cá, o que é que eu vou fazer numa cidade como Lisboa, por exemplo, portanto vai tu para junto dos teus pais e mulher e desejos de um Natal Feliz para todos vós. - Foi com estas palavras que tomou a decisão.

Claro que fiquei deveras contente, de repente e sem esperar vi o meu problema resolvido.

Todos os anos o MAITÁ vem a Portugal, lá para Maio, este ano passado de 2009 estivemos a almoçar no Estoril, tinha que ser Chinês, eu lembrei-me de falar neste assunto, ele não se lembrava ou não estava interessado, mas uma coisa é certa, a mim nunca me vai cair no esquecimento, atitudes desta natureza são para ser divulgadas, aliás ele era considerado por todos os elementos da CCAÇ 645.

Um abraço do sempre amigo
Rogério.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6034: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (13): Perigo, mina na estrada Bissorã-Olossato

Guiné 63/74 - P6071: Controvérsias (69): Hélder Valério e os comentários a Beja Santos (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com com data de 29 de Março de 2010:

Li o poste do Helder** sobre os comentários ao trabalho do Beja Santos e logo vi que se ia meter em boa!

Eu não afianço que tenha lido todas as abordagens críticas que Beja Santos tem feito no blogue. Afianço, sim, que, desde que por aqui ando, li seguramente a maioria, não tendo nunca me sentido condicionado pelo que disse de cada um, antes lendo, pensando por mim, refazendo algumas ideias que tinha antes, conservando outras e, até, em alguns casos, para o melhor ou para o pior, ampliando e fincando o pé no que pensava já.

Na maior parte dos casos eram abordados livros que eu conhecera antes. Uma vez ou outra, contudo, textos editados e que eu nem conhecia, achando por isso, mesmo que só por isso, que tem todo o mérito a colaboração do Beja Santos e que eu lhe estou devendo agradecimento.
Com isto, não quero dizer que não tenha direito a dizer que discordo das suas opiniões, quem delas discorda mesmo, e que o faça com alguma fundamentação e não apenas... porque sim!

Talvez lastimavelmente, não li nenhum dos alegados comentários, o que não me ajuda na ideia que eu próprio gostaria de fazer deles. Li, sim, entrando hoje na Tabanca da Lapónia, um escrito do José Belo sobre o assunto e adivinhei o alvoroço que deveria andar na Grande.
Porque estão perto uma da outra (quem diria!) foi fácil meter pés ao caminho e confirmar o que adivinhava e o que antevia desde que lera o poste do Helder.
E o que me parece é que morreu alguém!

Xiça (ou Chiça?), amigos, diria eu se tivesse recebido educação na Suíça.
Direi Gaita, pelo menos e entretanto.
Então não sabemos já que nesta Tabanca mora variada e diferente gente e que isso não traz ponta de mal ao mundo (ao nosso mundo)?
Vimos nós, uns do Norte, outros do Sul ou do Centro; somos uns católicos praticantes, outros o são sem praticarem, e ainda outros de outras igrejas ou sem igreja nenhuma.
Pátria, para uns, legitimamente, é o mais sagrado das suas vidas e nessa crença juraram um dia "matar pai e mãe" se fosse necessário para sua defesa. Outros valorizam muito também Pátrias alheias mas não menos sagradas.

Deixem que diga que gasto algum tempo lendo "reportagens" simples e ingénuas que muitos camaradas postam, e se as leio é porque gosto de as ler, mesmo que o seu estilo e o próprio conteúdo não ultrapassem a tal simplicidade ingénua e desconotada de pretensas análises sociais e políticas.

Declaro que seria incapaz de mandar para o blogue coisas do tipo "olhem para mim com um macaco ao colo" mas nada tenho contra quem o faz porque acho que o faz no desejo puro de comunicar com outros que também andaram de macacos ao colo, que é como quem diz.

Nem eu nem tu, Hélder, temos qualquer necessidade de deixar de estimar muito a amigos como o camarigo de Mexia Alves, só porque não concordamos com algumas coisas que diz, porque sabemos que o diz honestamente representando-se apenas a si próprio, e não querendo vestir as nossas calças.

Gostei muito, muito mesmo, do Diário da Guiné, gosto muito da poesia que escreve o seu autor e discordo de algumas coisas que diz no blogue, no campo restrito da questão Guiné, sem que isso mordisque a consideração e o apreço que por ele tenho.

Por outro lado, a questão cultural, e mais precisamente a ideia de "intelectual", sempre meteu muitos macaquinhos em muitas cabeças e não é por acaso que bibliotecas inteiras têm ido parar à fogueira em várias latitudes deste vale de lágrimas.
Todos conhecem a frase do general Mola sobre cultura e pistolas.

No entanto não comparo nem confundo os camaradas que aqui se pronunciam contra "o exagero do uso de uma escrita mais apurada e mesmo a roçar a ficção", com Molas ou com pontas (de faca). A mim me parece que é apenas um fastio de quem não sabe que mesmo a ficção/ficção, se séria, não relata senão o verosímil, quer dizer, o que aconteceu na presença do autor, o que o autor ouviu que aconteceu a outros, e mesmo o que não aconteceu mas podia muito bem acontecer.

Por mim, digo que tudo o que já escrevi no blogue aconteceu mesmo, ainda que descreva os acontecimentos numa linguagem que alguns dos camaradas legitimamente não apreciem.

Os livros são uma coisa diferente dos relatos factuais e por isso, José Belo, aqui e ali, as tais lavadeiras de roupa de soldado, na linha justa do que disse José de Alencar sobre o índio Guarani "não era assim, mas muito gostaria eu que assim fosse".
Havia jurado a mim próprio não voltar a meter o bedelho em polémicas destas, sobretudo depois dos meus últimos postes, em especial a reprodução de uma mensagem à amiga Filomena sobre as legítimas verdades de cada qual, e ainda um outro com o título A Questão Colonial, A Colonização Portuguesa -Particularidades.

Cada um de nós tem na cabeça uma verdade que cresceu consigo e com a sua experiência concreta. Não digo que não é possível que tal verdade possa mudar, intelectualmente assumindo erros e enganos.

Mais difícil é mudar a verdade que se instalou nos corações.

Espero, portanto, que Beja Santos continue a trazer-nos a notícia crítica de novos livros sobre o assunto que nos junta.

José Brás
__________

(*) Vd. poste de12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5982: O Xico pagou à Terra; à Terra pagaremos todos (José Brás)
e
de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)

(**) Vd. poste de 26 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6054: Controvérsias (68): Preciso de entender coisas que não alcanço (Hélder Sousa)

Vd. postes da série Notas de leitura

Guiné 63/74 - P6070: Notas de leitura (84): O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Terminada a leitura de “O Pé na Paisagem” vou até às direitas radicais, há registos literários indispensáveis, houve muita gente que cantou o Portugal imperial e que acreditava nos seus cânticos.

Um abraço do
Mário




As armas nossas amigas, as minas e armadilhas, a hora da deserção

Beja Santos

É a viagem neo-realista, expressionista e militante da recruta para a especialidade e desta para a escolha do exílio. “O Pé na Paisagem” (Editorial Caminho, 1981) é um relato duro, por vezes pungente, de extracção doutrinária, sem ambiguidades: estão ali valores, comportamentos, mentalidades dentro de um quartel vistos por um anti-militarista e anti-colonialista. Dureza que não ilude o vigor dos sentimentos, a sinceridade das dúvidas, a complexidade das situações que excedem o narrador e que ele admite.

Assim começa a especialidade: “Tínhamos as divisas novas dentro dos bolsos e esperávamos diante do edifício do comando um sargento que nos viesse dizer para enfiá-las, promovidos e dispostos a mandar nos soldados... Os soldados tinham grandes intervalos, encostavam-se às paredes banhadas de sol pálido, nós atravessávamos os terreiros em grupos e, se um ia sozinho ouvia rosnar as desagradáveis apreciações dos homens mais velhos do que nós, que conheciam a tropa pelas costuras, que se tinham safado à guerra e aguardavam só o dia de abalarem para as suas terras onde iam contar aos garotos como tinha sido divertido, o que tinham aprendido em vilas e cidades distantes, como as sopeiras lhes não escapavam, como gozavam com os capitães, com os sargentos, connosco”. Deste modo começa a aprendizagem de autoridade e a saber reproduzi-la: as ordens; as ameaças vociferadas; a separação entre oficiais, sargentos e praças; os brados marciais: as vozes na formatura, os palavrões ditos em voz baixa para desorientar o instrutor: as novas amizades e as confidências; as rondas, com alguns conflitos de permeio com os sentinelas. Aos fins-de-semana, as tentativas de serenidade, na previsão da esperada mobilização, idas e voltas num autocarro que parecia uma pequena caserna a subir ou a descer o país. Com a Primavera, apareceu uma maior movimentação do quartel, foram distribuídos pelas companhias, apresentaram-se aspirantes, uma meia dúzia de tenentes, um major comunicou que vinham aí os soldados: «Vimo-los, pequenos e alegres, vivaços quase todos e habituados à tropa por três meses passados num velho quartel do Norte e eles eram quase todos das Beiras e de Trás - os -Montes, arrancados à montanha onde a vida os ensinara desde os primeiros anos à frugalidade e à dureza da servidão no trabalho... Coube-nos um tenente frontudo, miliciano que voltara da guerra e ficara sem outra coisa que fazer que mais guerra. Um tipo calado e magro que fizera a Guiné e esperava talvez Angola”. O major fizera a sua proposta sobre os ensinamentos básicos para a educação física dos mancebos: “O amor da pátria, o empenho em defendê-la, está profundamente enraizado no coração do povo português. Estes jovens vêm dos montes, não têm educação, alguns nem uma instrução elementar possuem. O que é preciso é trocar por miúdos essa noção”. Essa noção é a defesa da pátria, estamos em armas para a defender. Ninguém tugiu nem mugiu, aquela pátria era suficientemente difusa para ser questionada. Voltou-se à carreira de tiro, instalou-se uma certa normalidade. Eis que chega tropa que regressa da guerra, vem passar à disponibilidade, só falta entregar material. É gente envelhecida, vêm encorpados e com rugas, pele encortiçada, fazem o espólio e arrancam para casa. Há quem tenha curiosidade em saber de onde vêm e o que lhes aconteceu e depois faço o relato dos mortos e feridos, para que se saiba. Surge uma lista para quem vai tirar o curso de minas e armadilhas. A unidade militar que se está a formar tem a Guiné como destino.

A especialização é descrita com vivacidade e química: “Deram-nos a mesma caserna, os mesmos instrutores, a mesma loucura de aprender perigos novos concentrados em trotil, gelamonite, matérias encerradas em metal aos quais bastava um ligeiro frémito para detonar soprando tudo à volta”. Um aspirante dá as aulas, está prenhe de ensinamentos, apela constantemente à prudência, fala em detonadores, alicates, rebentamentos, armadilhar e desarmadilhar, a segurança é a madre de todos os comportamentos, na mesa da aula estão minas anti-carro, minas anti-pessoal, espoletas, cordão lento e cordão rápido, cordão detonante, tudo o que pode fazer estoiros, pavor e caos. Os instruendos vivem sob a emulação, numa roda-viva um curso inteiro prepara-se para grandes explosões, fazendo os primeiros rebentamentos, estendendo fio eléctrico, colocando os detonadores com a língua apertada entre os dentes. Mas havia outros exercícios dignos de um sapador: enterrar minas simuladas no terreno, por exemplo. Toda esta narrativa aparece entremeada de diferentes discursos solitários de gente que procura o desenrascanço, gente que procura que os deixem em paz e que voltem ao ponto de origem. Oficiais e sargentos têm cognomes: o comandante é conhecido por Benzovak, o comandante do curso é o capitão Aguardente. É ele quem apresenta a viúva negra, uma pequena mina eriçada de metal, preparadas para explodir à altura de um homem e devastar uma secção inteira. Não sei a que escaninho da memória Filipe Leandro Martins foi vasculhar e registar a precisão das alocuções, a vivacidade das cenas de instrução, as conversas da cantina, os roubos de fruta pelas quintas e vales durante as aulas de táctica, onde se simulavam os reconhecimentos, à procura de acampamentos inimigos.

Nos intervalos, nos fins-de-semana, um grupo prepara a deserção, alguém não nomeado já forjou passaportes, rotas para passar a salto e depois chegar a Madrid, daqui tomar o comboio para Paris.

“O Pé na Paisagem” é um olhar inteiro dos seis meses que levam a formar um oficial miliciano ou um furriel. Está primorosamente escrito, possui todos os aliciantes para prosseguir ao lado ou contra o narrador. Nada encontrei na literatura afim de tão minucioso, documentado, o quotidiano das casernas, dos refeitórios, da descoberta de uma autoridade indecifrável, quase ao nível da vontade de Deus: o medo da porrada, o alívio das saídas ao fim da tarde, as tensões inesperadas de crianças crescidas que estão inexplicavelmente a virar uma página das suas vidas. E a recusa consistente em não partir para a guerra. O que, em literatura, só é interessante quando o escritor se desassombra e nos conta metodicamente o que vai fazer e porquê, tudo em escrita de altíssima qualidade. Quando um dia os investigadores pegarem de cabo a rabo nestes itinerários de um país em guerra “O Pé na Paisagem”, estou absolutamente convicto, será uma referência incontornável.

Filipe Leandro Martins é escritor e jornalista. Nasceu em Lisboa em 1945, fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e foi destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. De Santa Margarida, aproveitando as férias que antecedem o embarque, desertou em Outubro de 1968, exilou-se na Bélgica. É jornalista profissional desde 1976 (chefe de redacção do jornal Avante!).
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(*) Vd. poste de 26 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6052: Notas de leitura (82): Império, Nação, Revolução de Riccardo Marchi (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 29 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6064: Notas de leitura (83): Livro do Cor. Costa Campos – Guiné, Bigene 1974 (Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P6069: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (5): Os dias da batalha de Guidaje, 19 de Maio de 1973

1. Parte V do relato da Batalha de Guidaje, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:


Os Marados de Gadamael

e os dias da

Batalha de Guidaje


Parte V

Daniel de Matos

Os Dias da Batalha


19 de Maio

De madrugada, depois de breve paragem em Bigene, de onde sairam por volta da meia-noite, os comandos africanos alcançam os caminhos de Koumbamory e aguardam pelo ataque aéreo e em força dos Fiat G91, cujo bombardeamento à base, por volta das oito horas e vinte minutos, consegue destruir paióis do PAIGC. A operação nem começa mal, pois sabe-se que a base IN se situa algures naquela região, mas a sua localização exacta é desconhecida. Nós, na aldeia de Guidaje, os que conhecemos mal os azimutes do terreno, ouvimos rebentamentos sobre rebentamentos e de início pensámos ser Bigene a “embrulhar”. A antiga sede do COP3 fica longe, a dezanove quilómetros, e as bernardas rebentam à margem do Cacheu. As bernardas que ali rebentam ouvem-se muito longinquamente, desde que o vento sopre de feição. Afinal, quem desta vez embrulha mesmo são as forças IN!

Tropas portuguesas a entrar em território estrangeiro não estaria muito de acordo com as normas do Direito Internacional, nem mesmo invocando o muito controverso “direito de perseguição”. Militarmente, se os acessos a Guidaje estavam vedados por todos os lados menos pela linha de fronteira (norte), tinha toda a lógica esta incursão à retaguarda do IN. Dir-se-á que também o PAIGC tinha as bases do outro lado, mas aos olhos do Mundo (entenda-se, das Nações Unidas) trata-se de um movimento de guerrilha e não de um Estado soberano (pelo menos até 24 de Setembro de 1973, em que a proclamação de independência em Madina do Boé viria a ser reconhecida internacionalmente, de imediato, por 86 países, não apenas os aliados mais tradicionais do PAIGC, como os países socialistas, africanos, a China e até europeus, – casos da Suécia e da vizinha Noruega, cujo governo aprovou um subsídio solidário à guerrilha em 27 de Março de 1973, – mas em especial os países “não alinhados”. E ter bases em território estrangeiro, não é a mesma coisa do que desferir ataques a partir das mesmas, embora por vezes déssemos conta disso mesmo. O isolamento de Portugal era tão grande no Mundo que os líderes da guerrilha na Guiné, Angola e Moçambique haviam sido recebidos no Vaticano, em Junho de 1970, pelo Papa Paulo VI, o mesmo que três anos antes viera a Fátima e se recusara a aterrar em Lisboa para não participar em cerimónias oficiais ao lado de governantes da ditadura, preferindo aterrar em Monte Real. Em Roma, realizava-se nesses dias (27 a 29 de Junho) a Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas. A delegação que Paulo VI recebeu era composta pelo angolano Agostinho Neto, o moçambicano Marcelino dos Santos e o guineense/cabo-verdiano Amílcar Cabral. Este foi o porta-voz que, entre outras coisas, disse: “pedimos a Sua Santidade que interceda junto do Governo de Portugal para que respeite as leis internacionais e a posição da Igreja definida na Encíclica ‘Populorum Progressio’ para que os colonialistas portugueses, que se afirmam católicos, cessem os massacres das nossas populações, principalmente dos velhos, mulheres e crianças”. O Papa respondeu, “estamos do lado daqueles que sofrem”, “somos pela Paz, a liberdade e a independência de todos os povos, em especial, dos africanos”. Tudo isto à revelia da hierarquia da igreja católica portuguesa, que muito maioritariamente (não foi só o cardeal Cerejeira, longe disso), sempre se evidenciou servil ao poder, raras vezes se demarcou da ideologia e das atrocidades da ditadura, quer em Portugal quer nas colónias. Talvez seja essa a principal razão porque muitos da minha geração saíram agnósticos, – termo adocicado para não dizer ateu… E pensarmos, muitos de nós, que o “argumento” da defesa do colonialismo é o de espalhar a fé e a “civilização cristã”!? Para o ilustrar, recordemos um excerto de uma mensagem do Presidente da República, general Óscar Carmona, no V Centenário do Descobrimento da Guiné: “quinhentos anos de presença nessa região representam uma sobre-humana soma de esforços despendidos, primeiro, no reconhecimento da costa, depois na penetração no Continente, no comércio e na evangelização; por fim, na ocupação e pacificação, abrindo ao trânsito seguro de todos os homens os caminhos do mato e levando à população indígena as luzes da cultura europeia e cristã” (sublinhados meus). Palavras para quê!?

Numa curta flagelação morre num abrigo subterrâneo, vítima de granada perfurante, um soldado da CCaç 19 que ali tinha sido posto já muito desalentado, crivado com estilhaços de uma morteirada que o atingiu dias antes, quando ia a atravessar a parada.

Passa das nove quando os Comandos (o agrupamento Bombox na frente) efectuam o assalto, – como se fosse um golpe-de-mão, – provocando o primeiro contacto com o PAIGC, logrando destruir grande quantidade de material e provocar baixas importantes. Os combates duram a manhã inteira, numa verdadeira batalha com explosões incessantes de granadas-de-mão, tiros e rajadas de todo o calibre. A certa altura têm de se retirar, também em consequência da reacção do IN que, de surpresa, investe com blindados que nem disparos de bazuca conseguem destruir. A retirada é penosa, têm de transportar dez corpos de camaradas abatidos e progredir no terreno com mais de uma vintena de feridos graves. Perdem três camaradas pelo caminho. No termo do dia o batalhão de Comandos chega ordenadamente a território português e recolhe-se em Guidaje, tal como estava programado.

As baixas causadas ao IN foram em número bem superior, estimando-se em 67 mortos (entre os quais se contariam uma médica e um cirurgião cubanos e quatro mauritanos), e um incontável número de feridos. Quanto ao material destruído: vinte e dois depósitos de material de guerra, duas metralhadoras anti-aéreas, cinquenta mil munições de armas ligeiras, cento e doze costureirinhas (pistolas PPSH), quinhentas e sessenta granadas-de-mão, quatrocentas minas antipessoal, trezentas espingardas Kalashnikov, vinte e uma rampas de Foguetes 122, onze Morteiros 82 e mil e cem granadas para os mesmos, cem Morteiros 60, cento e trinta e oito RPG-7 e quatrocentos e cinquenta RPG-2.

A base de Koumbamory ainda recentemente recebera seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e era confirmadamente o ponto principal de abastecimento aonde os guerrilheiros se iam municiar. Veremos, doravante, até que ponto este rombo causado pela investida dos comandos fará diminuir a sua importância.

O PAIGC possui outras bases de reabastecimento no país do paladino da teoria da negritude Léopold Senghor (em parceria com o também poeta martiniquense Aimé Césaire), como a localizada em Zinguinchor, a dez quilómetros da fronteira, mas mais para o litoral, e onde ainda se fala fundamentalmente o crioulo “português” e são frequentes apelidos como Barbosa, Silva, Fonseca… A cidade é a capital de Casamance, território que outrora foi pertença da Guiné Portuguesa e que se estende até ao mar e a todo o comprido da língua da Gâmbia. Na sequência da Conferência de Berlim, em que as potências coloniais ditaram entre si a partilha de África, – com as sangrentas consequências que não se sabe se encontrarão solução nem ao longo do século XXI, – essa região guineense foi trocada com a França por uma parcela do sul (zona de Cacine), a 13 de Maio de 1886. Casamance, graças às margens do rio com o mesmo nome, produz grandes quantidades de arroz, e não só, sendo considerada o celeiro do Senegal, zona agrícola e de potencial turístico, cujo território para norte se vai tornando cada vez mais árido devido à progressão do deserto do Sahel. Graças à troca, a França reconheceria a Portugal o “direito” de exercer a sua influência nos territórios do chamado Mapa Cor-de-Rosa, (a ambição dos colonialistas portugueses de então, de unir Angola a Moçambique, de costa a costa do continente negro). Bastou aos dois estados uma simples reunião a nível de embaixadores para efectuar o negócio! Falar português à volta de Zinguinchor é um acto de resistência. Ainda hoje, à beira de trinta e sete anos sobre a proclamação da independência da Guiné-Bissau, o povo de Casamanse (“Casa di Mansa”, em crioulo), étnica, social e culturalmente mais próxima de guineenses do que de senegaleses, luta pela autonomia, havendo também quem sustente a ideia da reintegração no território da Guiné-Bissau; e ainda hoje a Guiné-Bissau e o Senegal se dirimem em fóruns e tribunais internacionais pela posse do território, se bem que por razões bem mais interesseiras: veio a descobrir-se no respectivo solo a existência de bauxites e de outras riquezas capazes de reduzir a pobreza e a falta de recursos de ambos os países, e até nas águas territoriais, – que se alteraram em resultado da troca, mas cuja delimitação as antigas potências nunca chegaram a definir com clareza, – há “garantias” da existência de reservas de petróleo. E é aí que entram em jogo interesses como os dos franceses, que no Senegal se opõem ao direito do povo de Casamanse à autodeterminação e à independência, mas que fazem precisamente o oposto em Angola, através de “lobbies”, manobras e financiamentos, – atribuídos, nomeadamente, à ELF Aquitaine, – no que concerne ao incentivo aos separatistas no enclave de Cabinda (aonde, por mera coincidência, há petróleo a jorros)… Ora, esta “consanguinidade” entre as populações do norte da Guiné e do sul do Senegal cimenta laços fortes e mesmo familiares entre povos de idênticas etnias, hábitos e costumes (balantas, mancanhas, felupes (diolas), manjacos e mesmo fulas e mandingas). Nestes anos de guerra imensos refugiados instalaram-se em Casamanse com o apoio dos residentes locais. Ao contrário, o presidente Senghor, teme o que possa acontecer, pois falhado o projecto “Senegâmbia” (anexação da Gâmbia pelo Senegal) quer manter o país com as fronteiras actuais. Com efeito, Casamanse nunca foi integrada legalmente e nem desde a independência senegalesa em 1960 reconhece a soberania de Dakar. Estamos em 1973 e neste momento vigora um acordo de coabitação por um período de 20 anos, só que em conflito permanente. Não espanta que o PAIGC se movimente tão bem na região… Porém, nem sempre foi assim. A linha política de Senghor simboliza uma aposta de alguma social-democracia europeia para África (da própria “Internacional Socialista”, já que o seu modelo é único no continente, permite eleições periódicas, embora a democracia seja limitada, pois partidos que cheirem a marxismo são excluídos de nelas participar, como o PAI do actual presidente Abdulai Wade)! A grande questão é que ao longo dos anos o Senegal nunca evoluiu nem resolveu melhor os problemas da fome e do subdesenvolvimento do que qualquer outro regime em África que não estivesse em guerra interna ou externamente. Ora, além de Zinguinhor o PAIGC tem as bases de Yeran e Kolda que, por via rodoviária, rapidamente dão apoio às forças que no terreno fazem a vida negra a Bigene e Guidaje, pelo menos... Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo os apoios de Senghor ao PAIGC foram tímidos. Outrora, o presidente do Senegal via com mais simpatia a chamada FLING, movimento impulsionado por ele próprio com o beneplácito do sistema colonial português, cuja fundação visou dividir os “independentistas”, aproveitando ter à frente um par de ambiciosos intelectuais que se manifestavam claramente contra Amílcar Cabral. Senghor temia que um novo país liderado por Cabral se aliasse militarmente ao de Sekou Touré (Conakry) e juntos consumassem uma ideia antiga do lado francófono, de criar uma grande Guiné, potência regional. Mas o correr do tempo desmentiu tal propósito. Também lhe fazia confusão a diversidade de apoios que o PAIGC tinha no Globo inteiro, da China aos países socialistas e africanos, passando por muitas forças progressistas europeias e sul-americanas. Apesar de tudo há muito que o PAIGC tinha sede em Dakar (Rue Félix Faure) e neste período havia adquirido novos edifícios no centro da cidade para ampliar a sua representação. As mais recentes tentativas de diálogo entre Senghor e Spínola, para eventualmente patrocinarem uma solução política do tipo neo-colonial, fracassaram devido à liminar recusa de Marcelo Caetano, que preferia uma derrota militar a um entendimento com os “terroristas”. O radicalismo do ditador contribui para que Senghor abra, noutros moldes, as portas à actividade dos guerrilheiros no território senegalês. As pressões internacionais (ONU, OUA, Organização dos Países Não-Alinhados, etc.), e também a clarificação das dúvidas que Senghor tinha em relação à sua política futura quanto a uma eventual tentativa de anexação de Casamance, ou um entendimento sobre esta matéria, o terão feito mudar de ideias. Foi elaborado um protocolo de acordo quanto ao estacionamento e transporte de armamentos no território. No entanto, o que está demonstrado é que houve quase sempre colaboração entre militares do Senegal e a tropa portuguesa. Alguns exemplos: o comandante do destacamento do exército senegalês em Nianao contribuía para a normalidade da situação militar em Pirada; o comandante de Setikénie jurava a pés juntos que pelo seu território os guerrilheiros nunca passariam para atacar a Guiné (Cambaju); e o comandante da CCaç 4147 (Sare Bacar) escrevia à PIDE a enaltecer o papel do agente Raul Alfredo Silva “nas relações estabelecidas com as autoridades do Senegal” (bla bla bla).

Nesse mesmo dia os dois pelotões da CCaç 3518, mais os militares da companhia africana e o grupo de milícias de Jumbembém, que connosco chegaram no dia 15, organizamos uma tentativa de regresso “a casa”. Na frente, na cola dos picadores, segue também pessoal dos DFE-3 e DFE-4. À partida, a escolha da data não poderia ser melhor, julgamos que as forças da guerrilha estão prioritariamente envolvidas na defesa de Koumbamory. Puro engano: arcámos com uma emboscada violentíssima ao alcançarmos a fatídica casa amarela no Cufeu, onde diversos combates se tinham travado desde a primeira semana do mês. O campo de minas alargou-se e diversas foram accionadas, até por membros da população que, querendo fugir ao inferno que se vivia também na tabanca de Guidaje, se tinham agarrado às viaturas, forçando a boleia, para irem procurar refúgio em Binta, Farim, ou o mais longe possível.

Quando a emboscada rebentou, uma “roquetada” lateral cortou ramos da árvore sob a qual me abrigava e que me caíram nos ombros. Assustei-me, olhei para o lado de onde veio o disparo e precipitei-me a disparar às cegas, desperdiçando mais de meio carregador de munições. Outras ogivas de lança-granadas foguete RPG vieram da frente da coluna, gemidos sibilantes que pareciam passar à tangente das nossas cabeças e troar pela estrada fora, não dava para ver aonde. A essas não podia responder, sob pena de pôr em risco o físico de outros camaradas, na linha de fogo. De súbito, dou com uma jovem mulher a saltar da MG estacionada à força trinta metros à minha frente, desatar a correr e pisar de seguida uma mina, dando um pinote tremendo e vindo estatelar-se não muito afastada do local onde me encontro. Ali ficou, imóvel, olhos em pânico, mas sem visíveis ferimentos além do sangramento do pé e alguns rasgões no pano-de-saia. Já não me lembro quem foi o soldado que com a faca de mato lhe rasgou um pedaço desse pano e lhe atou o pé a ver se o sangue estancava, enquanto outro gritava pelo enfermeiro, que já andava a acudir noutras paragens. As balas inimigas não param de silvar sobre nós e cada qual rastejou e abrigou-se o melhor que pôde, buscando com a mira da G3 um alvo que mexesse no horizonte próximo, mas daquele local não havia inimigos à vista. Um pedaço de capim que pareceu mexer-se logo foi imobilizado por uma M-62 (granada ofensiva) que um dos nossos soldados arremessou com notáveis impulso de braço e pontaria. Mas não se confirmou que tivesse causado ferimentos a quem quer que fosse.

O sopro da mina pareceu-me de “efeito dirigido”, ou seja, amputou-lhe metade dum pé e deixou um corte tão perfeito como se desferido por uma catana afiada (um “terçado”, na Guiné). Apesar da minha especialidade ser “minas e armadilhas”, não pude certificar-me pessoalmente se o modelo dos novos engenhos utilizados pelo PAIGC na região era o que se dizia: minas anti-picagem, – quer as antipessoal quer as anticarro. Teriam uma pequena bateria, ou pilha, no interior, e a detonação era provocada por duas folhas de estanho paralelas, uma usada como pólo positivo e outra negativo, disfarçavam-nas com uma finíssima camada de terra por cima e a mais leve pressão da “pica” provocaria o rebentamento imediato. À testa da coluna, um picador, curvado para a frente no desempenho da sua tarefa, accionara instantes antes uma “coisa” idêntica e o “corte” que ficou no corpo apresentou-se nos mesmos moldes. Só que, – isso sim, fui confirmar quando terminou a troca de fogachal, – o suposto efeito de sopro fez-lhe desaparecer o queixo e o rosto; o que restou da cabeça ficou espantosamente guilhotinado, na vertical. Tal como na “badjuda” nenhum outro ferimento se via no corpo, nem uma beliscadura, já que a mina provocou um cilindro vertical de deslocação de ar, mas não produziu estilhaços… Ainda assim, o soldado Vieira saltou para cima da MG onde sabia estar um Morteiro M2 60 mm e caixas de granadas, acartou o que pôde para a berma da picada (regos abertos pelos rodados das viaturas), afastou-se da ramaria das árvores e lançou uma série de projécteis na direcção de onde lhe parecia que o ataque tinha mais força.

Quando a situação parecia mais calma, – pois já não sentíamos tiros na nossa direcção, – através do rádio-banana que o nosso cabo das Transmissões lhe cedeu, o alferes Igreja recebeu ordens para que os dois pelotões d’Os Marados de Gadamael mudassem de posição, formando um “L” em relação à posição da coluna, isto para evitar tentativas de envolvimento por parte do IN. Quem mostrou má cara por ter que se erguer e arrastar para outro lado foi o alferes Cruz. Estava branco (provavelmente tão branco como eu estaria, mas faltou-me ali o espelho para comparar), enjoado com o cheiro intenso dos explosivos. Tinha chegado recentemente à companhia, vindo da metrópole em rendição do Dino Álvaro Mendes Duarte, também alferes miliciano “Marado” mas, quem sabe se em boa ou má hora?, transferido para a companhia africana sediada em Bedanda (CCaç 6), – onde também passou as “passas do Algarve”, o mesmo sucedendo ao furriel miliciano Manuel Fernando Urbano Neves e, mais tarde, ao furriel Manuel Baptista Fidalgo, – pelo que, na sua condição de, relativamente, periquito (o Cruz chegou a Os Marados a 12 de Outubro de 1972 e no início de 1973 foi temporariamente deslocado para Bambadinca como instrutor do 1.º turno de milícias), estava a “tirar os três” no mato, e logo daquela maneira…

Na frente da coluna, o combate foi violento, o ataque frontal em linha do PAIGC causou muitos danos logo de início, ferindo alguns camaradas. Não foi fácil ao pessoal recompor-se e reagrupar-se. Passados vinte e tantos minutos, deixámos de ouvir o matraquear das Costureirinhas e das G3, pois assomam-se dois Fiat que cortam o ar em voo rasante sobre as árvores, bombardeiam duas vezes, – e de que maneira!, – a cento e cinquenta metros de nós, ou talvez um pouco mais. Depois passam novamente em sentido contrário e o chão volta a estremecer por duas vezes, a cada embate das “ameixas” que deviam ser das de 200 quilos! Logo a seguir, – a dois, três quilómetros? – ouvem-se disparos secos e estranhos assobios. No céu, os mísseis Strela (Flecha, em russo) perseguem os aviões e deixam um estreito rasto de fumo branco a marcar o itinerário. Para se defenderem, os Fiat sobem a pique, o mais rápida e verticalmente que podem, até que os mísseis perseguidores rebentam lá nas alturas. Os aviões, desta vez não são atingidos, mas escusado será dizer que o nosso apoio aéreo termina neste momento. E respondendo ao ímpeto inicial da emboscada e à tentativa de envolvimento que efectivamente se seguiu, muitos de nós ficamos sem munições de G3. Também o pessoal das metralhadoras e de armas pesadas precisava de se reabastecer com granadas. Embora sem se temer nova investida do IN, pelo menos de imediato (as bojardas da aviação provocaram estragos em quem nos atacou) o pronto retorno a Guidaje foi inevitável.

Houve o registo do morto (picador) e de sete feridos, mas suponho que sem contar com os elementos da população, principalmente a jovem guineense que perdeu o pé. Entre Os Marados de Gadamael nenhuma baixa há a lamentar. Mas todo o pessoal envolvido na coluna, que tinha por objectivo atingir Farim e zarpar dali para fora, mas que agora é obrigado a recuar, fica ainda mais desmoralizado por não conseguir abandonar a tormentosa guarnição de Guidaje e por não ter perspectivas de como e quando conseguirá romper o cerco movido pelo PAIGC. Com o apoio limitado da aviação e com os acessos cortados, os feridos sem evacuação possível e corpos a agonizar, a situação é já de algum desespero. Psicologicamente abatidos, com munições a escassear, começamos a temer um ataque ao arame.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6041: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (4): Os dias da batalha de Guidaje, 15 a 18 de Maio de 1973

Guiné 63/74 - P6068: Parabéns a você (95): António Graça de Abreu, "sínico mas não cínico", 63 anos, ex-Alf Mil, CAOP1 (Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar, 1972/74)

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República Popular da China > Agosto de 2009 > O António Graça de Abreu  com a esposa, Hai Yan (aqui ao seu lado direito) e com uns primos da província de Huan... Na segunda fila, de pé, à esquerda, um jovem casal com um filho pequeno, que são seus cunhados; à direita, os seus dois filhos, Pedro e João.

Foto:  © António Graça de Abreu (2010). Direitos reservados


1. “Sínico, mas não cínico": a frase de um missionário português, amigo do nosso aniversariante de hoje... Foi título da crónica ou coluna do Padre Manuel Teixeira, “Cálice do Fino”, publicada no jornal Macau Hoje, edição de 15 de Julho de 1998. Eis alguns excertos:

“A 16-4-1998, veio visitar-me um velho amigo, o Dr. António Graça de Abreu. Hoje é ele o único sínico português. Gosta de ser chamado sínico. É um prazer ouvi-lo falar. (…) Depois da sua primeira estadia na China, volta-se para a China, sonha com a China, fala da China e adora a chinesa – a mulher de jade com quem casou e de quem teve dois filhos”.

O colunista acrescenta os seguintes dados biográficos sobre o seu amigo:

“Nasceu no Porto a 30 de Março de 1947, tirou o curso liceal no Colégio Moderno de Lisboa; estudou alemão na Alemanha; formou-se em letras na Universidade de Lisboa. Combateu na Guiné. Veio para a China em 1977; foi professor de Português na Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim. Regressando a Lisboa, casou, em 1987, na igreja de N. Senhora dos Anjos com uma chinesa budista, que se converteu e baptizou. Hoje é católica fervorosa”.

Uns meses antes, em 6 de Fevereiro de 1998, António Graça de Abreu, “sinólogo” (isto, especialista em cultura chinesa), fazia assim o seu "auto-retrato", no Diário de Notícias:

(i) Partiu para Pequim, via Paris, em Setembro de 1977; pouco ou nada sabia da China;

(ii) Ainda era “meio maoísta” (sic), tinha entrada na China por via do PC de P (m-l), de Eduíno Vilar, “o único partido português que mantinha contactos institucionais com o PC Chinês”;

(iii) Durante 4 anos será professor de Português e trabalha nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras;

(iv) Até ao seu regresso definitivo, em Maio de 1983, viajou pela China, aprendeu o mandarim, descobriu a China profunda e antiquíssima, conheceu Macau, foi correspondente em Pequim do Diário de Notícias;

(v) Voltaria a China diversas vezes, só ou com amigos, e em 1995, integrado na comitiva do Presidente da República Portuguesa, Mário Soares, na sua visita oficial à República Popular da China.

Recorda o seu primeiro mês de vida na China, o seu amor à primeira vista por um sociedade em ebulição que lhe parecia “cultural e politicamente correcta” (sic). Passado o estado de confusão entre o desejo e a realidade – coisa que é muito frequente entre os humanos - , o António “caiu na real”, como dizem os nossos amigos brasileiros. Perdeu as ilusões sobre a construção do “homem novo”… E foi aí que se tornou “sínico, mas não cínico”:

“Precisava de estudar, de aprender a língua, a história, a civilização, a cultura. Havia um fabuloso império a descobrir. Não a China actual (…), a China clássica, do ‘homem velho’, sempre novop, dos poetas e dos pintores, dos filósfoso e sábios,. Dos mongs e artistas”… E depois, havia Macau, esse lugar único, singular, “inventado por portugueses e chineses, a três mil quilómetros de Pequim”… Essa descoberta (que dará origem a outra paixão) far-se-á em Novembro de 1979…


2. O António autorizou-nos a espreitar as primeiras notas que escreveu, no seu diário da China, em 1977 (ele continuou a ter o bom hábito de anotar as suas impressões do dia-a-dia)

Pequim, 8 de Setembro de 1977

Emoção ao chegar à China. O aeroporto pequeno numa manhã de sol, o grande retrato de Mao Zedong,  a garganta presa. O acolhimento afectuoso, fraterno dos camaradas chineses, futuros companheiros de trabalho.


O primeiro contacto com Pequim. Camponeses, carroças, casas pobres. As árvores bordejando a estrada, a vegetação repousante, as gentes que não conheço.

A primeira decepção, a habitação que me destinaram, um apartamento feio, esquisito, mal mobilado. Vai ser preciso mudar esta casa. Estranha sensação do estranho.

A primeira saída até ao centro da cidade. Pequim plana, avenidas largas, milhares e milhares de bicicletas, poucos automóveis sempre a buzinar. Trânsito desorganizado mas que funciona, reina uma grande ordem nesta desordem.

Ainda hortas e terras cultivadas, os campos entram por dentro da cidade. Sempre muita gente. Transparece uma ideia de pobreza, não de miséria.

A Praça Tian’anmen, a da Paz Celestial, enorme, vazia, majestosa. Amanhã faz um ano que morreu Mao Zedong. Cortejos com milhares de pessoas vêm depositar coroas de flores, de papel, nas tribunas da Praça e junto ao monumento dos Mártires da Revolução porque haverá cerimónias oficiais comemorativas do primeiro aniversário da morte de Mao.


No primeiro dia ainda uma visita e algumas compras na Loja da Amizade. Creio  ser um dos grandes armazéns de Pequim, destina-se a estrangeiros e tem  montanhas de coisas bonitas e baratas.

Ao jantar, neste hotel que tal como a loja também se chama “da Amizade”e é uma Babilónia de línguas e gentes de todo o mundo, conversa com um velho  casal brasileiro e outro colombiano, todos refugiados políticos.

Cansaço, um dia pleno.


Pequim, 9 de Setembro de 1977

Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras ou melhor Waiwen Shudian, (chama-se assim em chinês, perguntei esta manhã), um dos meus locais de trabalho. Edifício pesado, um caixote com seis andares, espartano, tipo convento  marxista-leninista-maoísta. Mas funcional. Os companheiros de trabalho que  vão fazer as traduções que depois corrigirei e a quem vou ensinar mais português, todos risonhos, simpáticos falando razoavelmente a língua de Camões. A  camarada Bai e o camarada Fu estudaram português em Macau.

Na cave das Edições, cerimónia fúnebre muito simples em honra de Mao Zedong. Tudo a preto e branco, as cores do luto, mas com aparência de missa comunista. O retrato do revolucionário, as pessoas a curvarem-se diante da  figura, muitas coroas de flores de papel, dois discursos longos de que não entendi uma palavra.

De tarde, visita ao Palácio de Verão. Um estupendo conjunto de construções no estilo tradicional chinês, não muito antigo - parece que é tudo dos séculos XVIII e sobretudo XIX - junto a um  belo lago, com pavilhões, torreões, pagodes e, ao fundo, as montanhas a oeste da cidade.


Hei-de voltar muitas vezes ao Palácio de Verão, não fica longe do Hotel da Amizade, talvez uns cinco quilómetros, e hoje vi apenas de relance, com os olhos.

Eu quero conhecer, quero começar a meter a China dentro de mim. Viajei muito pela China, da Mongólia Interior a Yunnan, de Sichuan a Macau, diluí-me pelo país, como gosto de fazer. Também aprendi alguns chinês.

Pequim, 14 de Setembro de 1977

O presidente Mao Zedong repousa no mausoléu que acabou de ser inaugurado, a sul da praça Tian’anmen.  Fui ver o corpo do homem que mais contribuiu para mudar a face da China.  Grupos compactos de pessoas, organizadas por entidades de trabalho, filas silenciosas de soldados, os rostos parados, compungidos, aguardavam a vez de entrar na construção de mármore, rectangular, nem bonita, nem feia onde  jaz Mao.

Juntei-me à fila ininterrupta que avançava num lento ritmo fúnebre. Lá dentro, na vasta antecâmara, uma grande estátua também de mármore de Mao Zedong, sentado, branco, irradiando a altivez e segurança do melhor período da sua vida. Logo depois o salão com o sarcófago de cristal.

À minha frente, o peruano Guillermo Delly, que pertence àquele grupo maoísta do Sendero Luminoso chegado também agora à China e que trabalha comigo nas Edições de Pequim - ele no semanário Beijing Zhoubao, o que dá  Pekin Informe na língua de Cervantes -, pois o Guillermo levantou o braço e,  de punho fechado, saudou Mao Zedong.

Em 1970, já no ocaso dos dias mas ainda todo-poderoso, o grande timoneiro confessou numa entrevista a Edgar Snow que entre as multidões imensas  que gritavam Mao Zhuqi Wansui!, ou seja “Viva o Presidente Mao”, um terço das pessoas eram sinceras, outro terço fazia o que via os outros fazer e  o último terço era hipócrita. Em qual destes grupos entrará Guillermo Delly?  E eu, que não ergui punho nenhum nem nunca gritei Mao Zhuqi Wansui? (...)

Fonte: Ponto Final, jornal de Macau (19/1/2010)



Dedicatória manuscrita do António, no livro  Poemas de Li Bai: tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, 2ª edição  (Macau, Instituto Cultural de Macau, 1996), que lhe valeu o Grande Prémio de Tradução da Associação Portuguesa de Tradutores e do Pen Club, 1991).


 3. Alferes miliciano dos serviços gerais, afecto ao CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, Junho de 1972 / Abril de 1974), António Graça de Abreu escrevia no seu diário há 37 anos:

Mansoa, 30 de Março de 1973


Faço hoje vinte e seis anos, de certeza também complementarei os vinte e sete nesta santa Guiné. Tantos dias ainda a percorrer, tanto vazio a preencher! Se tudo correr bem, daqui a um ano estarei em Bissau à espera do aviãon para regressar a casa e deixar de vez a guerra.


Ninguém sabe que eu faço anos e não foi para recordar a data que às seis da manhã os obuses começaram a bater a zona, a mandar granadas de canhão para os possíveis locais onde os os guerrilheiros se estariam a levantar da cama. Às oito, foram os combatentes do PAIGC a flagelar à distância a frente de atrabalho da estrada Jugudul-Porto Gole – Bambadinca, sem resultados. É a quarta vez nestes últimos três dias, o que só serve para criar insegurança e fazer barulho. Os nossos obuses começaram a ripostar e lá se vai o sossego, o nosso e o do IN.


O meu coronel [, pára, Rafael Durão,], o meu major P. e um tenente-coronel que está aqui emprestado ao CAOP, foram, esta manhã de jipe, com uma pequena escolta, a Bula e Binar, tratar de assuntos relacionados com ofensivas sobre o IN. Os guerrilheiros sabiam que gente importante ia chegar a Binar e estavam à espera, emboscados junto à pista de aviação. Falharam a recepção porque os ‘homens grandes’ brancos não chegaram de avião, viajaram por estrada.. Foram e regressaram em paz”.(pp. 91-92).

Na véspera, 29/3/1973, o António comentava a notícia da queda do Fiat G91 sob os céus de Guileje, pilotado por um tenente (hoje nosso camarada e amigo, o Miguel Pessoa), que “foi abençoado pelos céus” (p. 91). Como se sabe, isto ocorreu em 25 de Março…

E acrescentava:

 “Ontem repetiu-se o incidente, foi abatido outro Fiat G 91. Desta vez, o piloto não teve sorte, o avião desintegrou-se e morreu o tenente-coronel Almeida Brito, o comandante das esquadrilha de aviões na Guiné” (…).


“Esta manhã esteve cá o furriel piloto Baltazar da Silva, (…) meu conhecido e amigo desde aquela primeira aterragem estranha, alvoraçada em Cachungo. Trouxe a sua DO, pareceu-me preocupado, assustado (…). (Será abatido, por um Strela, dias depois, “entre Bigene e Guidage”, conforme anotação no diário, em 8 de Abril de 1973)…”Trouxe-o até ao meu quarto, bebemos um whisky velho, animei-o tanto quanto fui capaz. Regressou a Bissau com a morte na alma”.

Um ano depois, não há nenhum registo no diário, com data de 30/3/1974. A 20 de Março, o António parte para Bissau, aproveitando a boleia de um Nordatlas que foi a Cufar buscar feridos. A sua comissão termina dali a três dias.

A sua obsessão agora é descobrir e reencaminhar para Cufar o seu periquito. A tarefa não se revela fácil. A 22, escreve, de Bissau, que “oficialmente para mim a guerra acabou”… A 25, houve um atentado á bomba no “Quartel-General, na Amura (…) e num café no centro da cidade”, provocando a morte de um civil e três militares (incluindo um da 38 CCmds) (p. 208).

Nesse dia descobre o seu periquito, não mais o larga…. A 31 regressa a Cufar, “depois de ter resolvido o problema do meu subsituto”: o Alf Lopes, com a especialdiade de secretariada, destinado originalmente à.â 1ª Rep, em Bissau…

“Ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias,  desviaram-no para Cufar”. A 5 de Abril, é a explosão de alegria: “Já cá está. Já cá canta o alferes Lopes, o meu substituto. Agora são mais uns dias para fazera  sobreposição (…) Depois, adeus Guiné, bye, bye Guiné (pp. 211).

A 20 de Abril, tomava o avião dos TAM, a caminho de Portugal. Teve tempo, em Cufar e depois em Bissau se despedir definitivamente da Guiné: “Caminhei pela paisagem das gentes negras de Bissau. Eles não sabem de mim mas eu estava  ali para me despedir, para os levar comigo nas arcadas da alma, para sempre” (Bissau, 15 de Abril de 1974, p.214).


4. Algumas das 30 perguntas ao António (e as respectivas respostas) "a partir do questionário de Proust",   inseridas na página do Pen Club Português, e que nos ajudar a conhecer e compreender um pouco melhor este camrada cuja presença muito nos honra na nossa Tabanca Grande:

1. O que é para si a felicidade absoluta?
R- Paz, serenidade, amor


2. Qual considera ser o seu maior feito?
R- A minha tradução dos Poemas de Li Bai (701-762), Prémio Nacional de Tradução1990.


3. Qual a sua maior extravagância?
R- Amar. (...)

5. Qual o traço principal do seu carácter?
R- Generosidade, ingenuidade.


6. O seu pior defeito?
R- Teimosia. (...)


10. Qual a sua máxima preferida?
R- Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer. (Confúcio disse!)


11. Onde (e como) gostaria de viver?
R- Canedo, Vila da Feira, numa casa sobranceira a um regato, na floresta com a mulher daminha vida. (...)


 15. Que compositores prefere?
R- Beethoven, Mozart, Débussy.


16. Pintores de eleição?
R- Greco, Leonardo, Miguel Ângelo, Goya, Ingres.


17. Quais são os seus escritores favoritos?
R- Eça, Camilo, Cao Xueqin,


18. Quais os poetas da sua eleição?
R- Camões, Li Bai, Du Fu, Wang Wei.


19. O que mais aprecia nos seus amigos?
R - Honestidade, alegria de viver.


20. Quais são os seus heróis?
R- Os soldados que morreram a meu lado na guerra da Guiné. (...)


 22. Qual a sua personagem histórica favorita?
R- D.João II.


23. E qual é a sua personagem favorita na vida real?
R- Wang Hai Yuan. (...)


 26.Que dom da natureza gostaria de possuir?
R- Uma enorme aptidão para ler e falar bem chinês.

27. Qual é para si a maior virtude?
R- A honestidade.


28. Como gostaria de morrer?
R- Em paz, de repente, concluídos todos os grandes trabalhos.


29. Se pudesse escolher como regressar, quem gostaria de ser?
R- Um grande mandarim chinês do século XVIII.


30. Qual é o seu lema de vida?
R- Amar, trabalhar, descansar.


5.  Comentário de L.G.:

Meu caro António:

Afinal, quem és tu ?... Não tenho o direito de te fazer essa pergunta. Afinal, vamo-nos conhecendo. Temos a obrigação de conhecermo-nos. E o prazer de irmo-nos conhecendo... Damo-nos a conhecer uns aos outros, todos dias ou quase. Damos a cara. Não faz sentido fazer perguntas voyeuristas, do género "Pensa português com o coração e chinês com a razão... Ou vice-versa ?"... Alguns chamar-te-ão estrangeirado, o português que melhor conhece a China (a frase é dum jornalista de Macau, João Paulo Meneses,  que te entrevistou recentemente, Ponto Final, 19/1/2010) ou,  até em tom provocatório e quiçá xenófobo, o homem que já não sabe o que é, dividido entre dois grandes amores, a pátria lusa e a mátria chinesa (enquanto Macau será a fátria luso-chinesa)...Para mim, simplesmente,  és um cidadão do mundo, um homem das Luzes do Séc. XXI, cosmopolita, global, culto, open-minded, prestável, perseverante, disciplinado, humilde, amigo, camarada...

Os adjectivos são sempre redutores... Para mim, é simplesmente um privilégio conhecer-te. E eu creio poder interpertar os sentimentos de muitos dos amigos e camaradas da Guiné, dizendo-te que todos te querem bem, e te estimam, e se sentem honrados por  te sentares, connosco,  à nossa beira, à sombra do nosso poilão da nossa Tabanca Grande...

Desejo-te, em meu nome e dos demais editores (o Carlos, o Eduardo e o Virgínio), um dia em grande, para ti, tua esposa Hai Yan e teus filhos. Não bebo ao luar, como o pobre Li Bai, ergo a minha taça, em pleno terreiro da Tabanca Grande, e peço aos demais que me acompanhem nos votos festivos à tua saúde, longevidade e talento. Luís Graça

Guiné 63/74 - P6067: As tropas Pára-quedistas preparavam-se para a guerra como para uma cerimónia em Parada (José da Câmara/Hoss)

1. O nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), no texto que deu origem ao poste de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6018: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (15): Um erro de periquitos e o piar dos nossos camaradas, dizia a certa altura:

Os pára-quedistas, com as suas G3 de coronha rebatível, impressionavam pela forma como fardavam e pela disciplina, ao ponto de, ainda hoje, estar sem saber se eles se preparavam para a guerra ou para uma cerimónia em parada.



2. O nosso camarada Sílvio Abrantes (Hoss), ex-Soldado Pára-quedistado BCP 12, Guiné, 1970/1971, reagia assim num comentário feito no referido poste:

Se me permitem vou fazer uma pequena correcção ao que escreveu o Ex-Furriel José Câmara da companhia de CCAÇ 3327.

No seu comentário o Srº José Câmara diz que nos Pára-quedistas não havia açorianos. Como Pára-quedista que fui posso dizer que havia açorianos, não eram muitos, mas havia.

Mais à frente no mesmo texto o Srº José Câmara escreve "OS PÁRA-QUEDISTAS COM AS SUAS G3 DE CORONHA RABATIVEL IMPRESSIONAVAM PELA FORMA COMO FARDAVAM E PELA DISCIPLINA AO PONTO DE AINDA HOJE ESTAR SEM SABER SE ELES SE PREPARAVAM PARA A GUERRA OU PARA UMA CERIMONIA EM PARADA"

É verdade Srº José Câmara e isso deve-se à disciplina rígida, dura que nós tinha-mos. Não era exibicionismo. Posso dizer-lhe que tenho lido muito sobre a guerra ultramarina de diversos autores e alguns dizem que a certa altura as nossas tropas estavam desmoralizadas e não obedeciam aos seus superiores, os únicos que obedeciam eram os Pára-quedistas. Aqui já pode ver como nós obedecíamos aos nossos superiores, isso deve-se à disciplina e à forma como fomos treinados. Quando andávamos na instrução, que não era nada fácil, em especial o curso de pára-quedismo e nos queixávamos aos nossos instrutores, a resposta era INSTRUÇÃO DURA, COMBATE FÁCIL. Era este o lema e a isso se deve o nosso êxito nos confrontos com o IN.

Nós não éramos melhores do que A ou B éramos assim, foi para ser assim que nos treinaram. Ainda hoje os Pára-quedistas são uma grande família e aproveito para convidar o Srº José Câmara para ir no dia 23 de Maio a Tancos ao Ex-Regimento de Caçadores Pára-quedistas e ver as centenas de ex-páras que lá se juntam para confraternizar e matar saudades de outros tempos. Pode almoçar na messe que não paga nada ou pode optar por se juntar a qualquer grupo de Pára-quedistas e almoçar com eles que será bem vindo.

Não sei se lá vou no dia 23 de Maio, tudo depende do meu trabalho se estiver disponível vou e aproveitava conhecer o Srº José Câmara pessoalmente.

Um abraço,
HOSS01010101



3. No dia 26 de Março, José da Câmara em comentário no mesmo poste reagia assim:

Camaradas,
Agradeço-vos os comentários. A minha memória é como uma manta de retalhos. O Esteves lá vai conseguindo "cozer" umas coisinhas. Afinal era a especialidade dele.
O Amigo Vinhal, sempre atento, conseguiu mais uma terraplanagem, onde todos podemos saltar em paz e harmonia.

HOSS,
Li, com agrado, o cometário que escreveu ao meu último Post. A forma como fala da sua dama, só confirma aquilo que há muito tempo eu sabia: o espírito de corpo entre os pára-quedistas, sem ser melhor ou pior que o de outras forças, era e é diferente e perdura para além do tempo normal de serviço.
Honra vos seja feita, e a todas aquelas forças que conseguem ser diferentes pela positiva.

Ontem, 19 de Março, e ainda antes de ler o seu comentário, em conversa com o Jorge Sousa, ex-fuzileiro do Destacamento 13, ele disse-me que a Companhia de Pára-quedistas que estava em Teixeira Pinto, e que o meu texto refere, tinha açorianos. Entretanto esqueceu os seus nomes.

No meu texto estava apenas a referir-me àquela Companhia. O Jorge disse-me que os Pára-quedistas quando entravam em serviço, esqueciam-se de tudo à sua volta, para se concentrarem na sua missão. Por estas palavras compreendi porque é que não descobrimos açorianos naquela Companhia. Aquela Companhia chegava junto do nosso acampamento, e de imediato entrava na mata. Nunca parava para conversarem connosco. Daí o meu lapso.

O Capitão Cordeiro, irmão do nosso camarada Carlos Cordeiro, foi certamente um dos açorianos que terá ido mais longe na hierarquia dos Pára-quedistas. Ele, ao honrar a Arma que abraçou, também honrou a região que o viu nascer. Certamente houve outros açorianos que, igualmente, se distinguiram ao serviço daquela arma e da Pátria.
E já agora confirma que era a 122 que estava em Teixeira Pinto (Abril, Maio, Junho, Julho de 1971)?

O Hoss pertenceu a essa companhia?

Senti no seu comentário um pouco de mágoa pela forma como eu observei os Pára-quedistas na Mata dos Madeiros. Se o magoei peço-lhe desculpa. A minha intenção foi boa.

Eu reconheço que podia ter ido um pouco mais longe, e ter sido mais incisivo.
Farda completa, boina verde, lenço no pescoço, botas a luzir... os Pára-quedistas eram um espectáculo no meio daquela miséria toda, que era a Mata dos Madeiros. Daí a minha observação (que teria sido melhor assim): os Pára-quedistas íam para a guerra com o mesmo cuidado e disciplina com que se preparavam para uma cerimónia em parada.

Mas a melhor homenagem que eu poderia ter feito aos Pára-quedistas, e a todas as forças que se afirmavam pelo mesmo diapasão, é aquele parágrafo onde afirmo, e que passou a ser o lema de toda a minha actividade na Guiné, o seguinte:

"...a sobrevivência, seria tanto maior quanto maior fosse o grau de disciplina baseada no respeito, na lealdade, na camaradagem e na amizade entre todos nós. O reconhecimento colectivo dos poderes de cada um desses predicados não era mais que o perfeito reconhecimento consciente entre comandos e comandados."

Quanto ao seu convite, para estar presente em Tancos, pode ter a certeza que o aceitaria com muito gosto, não fora o facto de viver nos Estados Unidos da América desde 1973. Por esse mesmo facto também lhe peço que compreenda que, aqui e ali, falho no que escrevo. Quero-lhe assegurar que os meus erros acontecem porque não sei fazer melhor, nunca por maldade ou por desrespeito para com os camaradas ou para as forças que combateram na Guiné, quiçá nas ex-províncias ultramarinas.
No entanto fica marcado o encontro para um dia, se Deus quizer. Terei imenso prazer em dar-lhe um abraço.

Muitos anos depois da guerra terminar, fui encontrando os meus camaradas de Secção. Todos eles me trataram por Sr. ou por Furriel. Pedi-lhes que me tratassem pelo meu nome: José!

Hoje peço ao Hoss que faça o mesmo, e me trate por José. Eu acredito que o respeito passa pela forma como sentimos os outros.

O Hoss, com o seu comentário, conquistou um admirador e o meu respeito.
Como dizíamos nos Açores: haja saúde (para si e para os seus entes queridos).

Um abraço amigo,
José Câmara


4. No dia 26 de Março, José da Câmara dava-nos a conhecer uma mensagem que tinha recebido do camarada Hoss, que com a sua autorização tornamos pública.

Caro amigo José Câmara:
As suas palavras são para mim de grande apreço, fico desde já muito obrigado. Vamos voltar aos tempos áureos da nossa juventude que nos foi arrebatada por aquela maldita guerra, que por culpa de alguém nós tivemos de enfrentar e que ainda hoje faz sofrer muitos dos nossos camaradas.

Nos Pára-quedistas havia uma disciplina muito rígida, dura mesmo. Os nossos quartéis eram verdadeiros jardins. Fomos treinados duramente e sempre nos incutiram o espírito de camaradagem que ainda hoje, passados tantos anos predura.
Quando por vezes nos queixávamos aos nossos chefes da instrução tão dura a resposta era (instrução dura combate fácil), mais tarde verificámos que tinham razão.

Em 2006 comemorou-se o cinquentenário das tropas Pára-quedistas.

Juntaram-se centenas de ex-páras. Veio dos U.S.A., de Jersey, um grupo de ex-páras exclusivamente para assistir aos 50 anos, onde encontrei o meu grande amigo António Ribeiro, residente em Jersey. Desculpe se eu escrevo mal a palavra Jersey.

Nas cerimónias estava presente o Comandante Chefe das Forças Armadas General, do qual não me lembro o nome e diz para o Brigadeiro Pára Taliscas:

- É impressionante como se juntou tanto Pára-quedista. Diz o Taliscas: - Não se esqueça meu General, que no 11 de Março os Pára-quedistas foram mobilizados em 24 horas para fazer o golpe. Eu dou três semanas de instrução a esta gente e à quarta estão no ar, quer dizer a saltar.

Isto retrata a obediência que nós temos ainda hoje aos nossos chefes.

Tínhamos um lema que dizia (ninguém fica para trás). Ficaram três colegas sepultados no mato em Binta na Guiné, que devido ao forte ataque não foi possível evacuar, mas já se encontram sepultados nas suas terras desde o ano passado, devido à grande pressão feita por um colega que foi à Guiné fazer uma reportagem com a cadeia de televisão SIC e pagou as despesas de bolso dele.

Segundo informações que tenho, não há um Pára-quedista sepultado no ultramar. O meu amigo pode pensar que é balela, mas não é, é a realidade. Quando nós formávamos fosse para que fosse, as nossas botas eram sempre engraxadas, camuflado lavado e barba desfeita. Ainda hoje a primeira coisa que faço quando me levanto é desfazer a barba, está gravado a fogo no meu cérebro.

No quartel e junto aos nossos chefes éramos disciplinados, mas quando nos apanhávamos livres era um pandemónio. A PM em Bissau sofreu muito connosco, em especial comigo e com o meu amigo Jaime o "80", fazíamos-lhes as maiores patifarias.

Quanto aos açorianos tenho grandes amigos por lá, só que é difícil encontrarmo-nos.

Gostaria de estar com o meu amigo no dia 23 em Tancos, mas como posso constatar não é possível. Também ainda não sei se posso ir.

Não vou fazer perder mais tempo, espero que esteja de boa saúde, assim como os seus mais queridos.

Um abraço,
Hoss


5. Comentário de CV

Aqui fica registada uma troca de impressões entre dois camaradas. Muitos dos tertulianos poderão achar não muito interessantes, mas mostram que com cordialidade se desfazem alguns malentendidos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)