e os dias da Batalha de Guidaje
Parte XII
Daniel de Matos
Os “três G” e o desfecho das três frentes de guerra em África
Continuam a curiosidade e a estupefacção gerais sobre o andamento da guerra no mato, mais acentuadamente nas zonas fronteiriças. Bissau é uma cidade vestida de “piolhos verdes”, ainda que muitos deles trajando à civil. A capital do Vietname não será diferente, com movimento idêntico e constante de viaturas militares atafulhando o trânsito e de tropas invadindo comércio, bares, restaurantes e zonas de putedo. Para além dos inúmeros quartéis que a circundam, a cidade é um autêntico depósito de adidos, por onde passam os que vêm ao hospital tratar-se disto e daquilo, os que vêm para cá de férias ou estão em trânsito de e para as mesmas, os que são mandados para estagiar numa treta qualquer, – todos os pretextos são bons para quem está no interior dar uma fugidinha, desenfiar-se para Bissau por uma temporada, para respirar fundo. Juntam-se a estes os muitos quadros militares dos gabinetes, os tais que fazem a guerra no ar condicionado basofiando, pois em geral não são parcos a disparar em todas as direcções, quando abrem a boca…
“G” de Guileje, “G” de Gadamael…
Se encontramos alguém conhecido e nos pergunta por onde temos andado e dizemos Guidaje, só falta benzerem-se, ficarem atónitos e quererem logo saber tudo tim-por-tim-tim. Tal batalha, no entanto, já está a perder a actualidade. Em todas as esplanadas não se fala de outra coisa: a nossa conhecida Gadamael está mesmo em grande risco, vivem-se por lá dias horríveis. Lembro-me que, caso estivesse sob um ataque continuado de artilharia como aquele que sofremos no norte, as suas fragilidades seriam idênticas ou maiores que as de Guidaje. Ali não há refúgios subterrâneos nem tectos reforçados com grossas placas de cimento a que possamos chamar abrigo. Bem, é certo que em Guileje existiam e o resultado foi o que se viu… Há outras semelhanças entre Guidaje e Guileje: ficam ambas junto às fronteiras (do Senegal e da Guiné Conacry), estavam as duas dependentes do abastecimento aéreo, eram ligadas ao exterior por um único acesso (a primeira, a Bigene e Binta, e a segunda, a Gadamael), sendo fáceis de isolar se estes caminhos fossem (como foram) cortados. Todavia, tinham uma diferença de vulto, que se revelou definitiva quanto à capacidade de resistência: Guidaje possuía água própria (não sei se estou a divagar, mas lembro-me de ouvir falar da existência dum furo de extracção dentro do quartel); Guileje não tinha água! Aqui, o pessoal ia buscá-la a quatro quilómetros de distância, na direcção do Mejo e por caminhos propícios às emboscadas… Quanto a Gadamael, a situação é intermédia, isto é, a água potável não está dentro do quartel, mas o local de abastecimento é muito próximo e essa dificuldade só existirá caso se verifique um cerco muitíssimo próximo do arame (o que sempre me pareceu improvável de acontecer, até pelas características do terreno circundante, mas estamos sempre a aprender)…
Um soldado nosso recebera um aerograma dum amigo, membro do Pelotão de Reconhecimento Fox n.º 2260 – ou seja, de camaradas que ficaram em Gadamael após a nossa rendição, – e o cenário descrito era dantesco e com tendência a agravar-se. O número de mortos e feridos começa a equivaler-se ao de Guidaje, também estão a construir um cemitério local e o cerco está consumado. Além dos contingentes locais próprios agora está ali o pessoal que chegou de Guileje (o mesmo se dirá em relação aos civis) e o único contacto possível de toda esta gente com o exterior é o braço do rio Sapo (afluente do Cacine). Por outras vias vamos sabendo que já tudo começa a escassear e, à medida que os dias passam, o fogo é cada vez mais violento e amplia-se de dia para dia a destruição dos edifícios (que virá a ser total). Vendo-se incapacitados de se oporem aos intensos bombardeamentos e de darem a volta aos acontecimentos, há militares (a esmagadora maioria) que resolvem abandonar o aquartelamento pela mata do lado do Cantanhez, contornando o tarrafe e a costa de mangal e fugindo em direcção às margens mais palmilháveis do rio Cacine, em busca de refúgio. De notar que, de quase três companhias só cerca de trinta homens permaneceriam no quartel defendendo a posição com morteiros 81. Quer o 15.º Pelotão de Artilharia quer o Grupo de Artilharia de Campanha n.º 10 (Obus 11,4) tinham ficado inoperacionais após um ataque IN de morteiros 120, que destruiu material importante e lhes provocou três mortos (primeiro-cabo David Sousa Cunha, soldado Bassiro Demba e soldado Domena Indi) e ainda onze feridos.
No dia 1 de Junho, começou de manhãzinha o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. Houve períodos em que a chuva de granadas de morteiros 120 (às 18 de cada vez) caía de três em três minutos. Logo pelas dez horas ficou inoperacional e praticamente destruído o pelotão de artilharia, que sofreu três mortos e onze feridos. Gadamael ficou reduzida ao morteiro 81 que tinha alcance insuficiente para dar resposta aos bombardeamentos do IN. Conta-se que momentos antes tinha aterrado na pista do quartel um helicóptero que transportava o general Spínola, mas que este teve de ser empurrado para dentro do aparelho a fim de levantar voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreriam no ponto de aterragem do helicóptero, a cinquenta metros do edifício da secretaria, das messes e das transmissões. Num quartel sem abrigos e com um elevado número de militares concentrados lá dentro, as baixas foram aumentando sem surpresa. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos, foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva, o oficial enviado em substituição o Major Coutinho e Lima. Num cenário de desespero e os soldados começaram a andar junto às valas a circular apenas dentro da aldeia civil (colada ao quartel, mas poupada ao fogo inimigo). O Capitão Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações, só quando o Furriel Carvalho (do morteiro 81) lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava reduzida a um grupo diminuto de homens. Cerca de 80% das nossas tropas decidiu abandonar o aquartelamento pelos seus próprios pés, independentemente do apoio de duas companhias de pára-quedistas que se deslocaram para a região a aí ficariam estacionadas.
Os pára-quedistas da CCP 121, que tinham estado connosco em Guidaje, não tiveram a mesma sorte que nós quanto a dias de descanso: no dia 12 saíram de Bissalanca em direcção a sul, tendo Gadamael como destino. Não foram os únicos, já havia pessoal das CCP 122 e 123 na missão de “salvamento”, pois uma retirada idêntica à de Guileje estava “em cima da mesa”. A nossa “irmã gémea” CCaç 3520 de Cacine, que já tivera efectivos deslocados em Guileje, esteve igualmente mobilizada para apoiar a defesa do nosso antigo quartel e, com ela, o DFE-21 transportado em zebros.
O “general do monóculo”, que entretanto se tinha deslocado a Cacine, deixou ordens para que ninguém socorresse os fugitivos, que considerava “cobardes”. Só que no navio Orion*, cujo Comandante é Pedro Lauret e que na véspera tinha levado uma companhia de páras até Cacine, impera o bom-senso. A tripulação revolta-se e, como se impõe, marimba-se na opinião de Spínola e recupera entre 300 a 400 “cobardes” que se encontram espalhados pelas margens, em estado verdadeiramente lastimoso, desesperado. Entre eles, há um sem número de feridos a quem o Enfermeiro Abrantes (auxiliado pelo Grumete Ulisses Faria Pereira) presta os primeiros socorros e/ou orienta uma série de ajudantes voluntários a fazê-lo. O então Comandante do Orion refere que “à noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos”, não restando espaço para que ninguém pudesse deitar-se. Mas alguns necessitam de evacuação aérea.
Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine > 1971 ou 1972 > Pedro Lauret, oficial imediato do NRP Orion (1971/73), na ponta do navio, a navegar no Cacine, tendo a seu lado o comandante Rita, com quem fez a primeira metade da sua comissão na Guiné. "Um grande homem, um grande comandante" (PL).
A LFG Orion no Cacheu. Foto do Lema Santos, com a vénia devida
“G” de Guidaje
Só em Maio de 1973, o PAIGC contabilizou duzentas e vinte acções militares no território. Em Guidaje, desde o dia 8, sofremos um total de 43 ataques, com artilharia pesada, morteiros e foguetões, e mais uma vintena delas na vizinha Bigene. Causaram 7 mortes, 30 feridos militares e 15 civis, a somar às baixas sofridas nas colunas (mortos 22, feridos 70) e na operação Ametista Real (10 mortos, 22 feridos e 3 desaparecidos). Em números oficiais, registou-se um total de 39 mortos militares, 122 feridos e 3 desaparecidos.
Quem sou eu para ousar pôr estes números em causa? Entendo, porém, que quem lá esteve fica com a sensação de que poderão não corresponder inteiramente à realidade, que haverá falhas por insuficiência de registos ou quaisquer outras razões. Nos relatos, surgem frequentes contradições em relação aos número de soldados mortos e desaparecidos (por exemplo, na picada Binta/Guidaje, em relação aos corpos que lá ficaram sem sepultura). As coisas baterão certas no tocante aos militares de origem europeia (continente e ilhas adjacentes), só que o mesmo se afigura com menos rigor quanto a soldados (e milícias) de naturalidade africana. Lembro-me de ter notícia (e de, nalguns casos, presenciar) da existência de civis que foram feridos e/ou morreram nas flagelações, emboscadas e minas, e que não terão sido contabilizados. Houve muitos feridos ligeiros que receberam tratamentos diversos sem se deslocarem às enfermarias. Em artigos e entrevistas publicados muito mais tarde sobre esta matéria (e onde, entre outros testemunhos chega a participar, por exemplo, o Tenente-Coronel Coreia de Campos), é referido que no mês de Maio se contaram 167 bombardeamentos a Guidaje (mais 50 em Abril), e houve a lamentar 100 mortos… É também mencionado que durante o mesmo mês terão participado de alguma forma na batalha de Guidaje cerca de mil e trezentos militares portugueses, a maior concentração alguma vez efectuada nos teatros da guerra colonial em todo o continente africano.
(Em jeito de conclusão)
Tombaram em Guidaje quatro Marados de Gadamael (três ficaram lá sepultados) e outros deixaram sangue e muitos suores frios a ensopar aquela terra. Doravante, pelo menos aqueles que lerem estas linhas já nos podem incluir nos registos, foi assim que lá fomos parar… Provavelmente nenhuma outra Companhia do Exército/Infantaria teve o infortúnio de correr os três destinos mais fatídicos deste penúltimo ano da guerra. Dizem os entendidos que o PAIGC quis capturar Guidaje, Guileje e Gadamael, promovendo uma operação “em pinça”, ou “tenaz”, para certificar o seu poderio além-fronteiras. Dirigentes da guerrilha sempre desmentiram que a ocupação de Guidaje estivesse nos seus planos, o que tem lógica, pois era uma aldeia sem qualquer interesse estratégico, valeria mais como posto fronteiriço que, existindo ou não, teria um valor relativo. O mesmo não se dirá dos aquartelamentos a sul. Com Guileje ocupada, se o mesmo acontecesse a Gadamael, equivaleria a uma vasta área de território em que Portugal deixaria de ter qualquer posto avançado, só restaria Cacine, sem quaisquer outras povoações em redor. Apesar da resistência portuguesa em Gadamael, (o ataque final só foi sustido depois da nossa aviação ter bombardeado a base de Kandiafara, para lá da fronteira com a Guiné-Conakry), o PAIGC demonstrou em Setembro de 1973 quem controlava efectivamente a Guiné, quando no dia 24 proclamou unilateralmente a independência em Madina do Boé e viu rapidamente reconhecido na arena internacional o novo Estado da Guiné-Bissau.
Passei o 24 de Setembro de serviço, a montar segurança numa das entradas de Bafatá, mais concretamente num posto que existia sobre a nova ponte do Geba, que era suspensa e uma espécie de miniatura da ponte sobre o Tejo (havia carteiras de fósforos com a sua fotografia e, se bem me lembro, também se chamava Salazar). Tínhamos aí uma pequena telefonia, através da qual ouvi a cerimónia da independência transmitida em directo pela Rádio Libertação. Medindo bem, se algum acesso estivesse a funcionar, a distância em linha recta entre Bafatá a Madina do Boé seria coisa pouca, pelo que a situação provocou-me um sentimento, no mínimo, estranho. Na manhã seguinte, quando a minha equipa foi rendida (o serviço era de 24 horas) e me dirigi à messe para tomar o pequeno-almoço, perguntei aos presentes se mais alguém tinha escutado o mesmo que eu e a resposta foi negativa. Narrei o que se passara, com a convicção absoluta de estarmos numa data que ficaria na História e, meio a brincar meio a sério, acrescentei que já me sentia um “estrangeiro” a pisar o chão da Guiné, provocando um sorriso generalizado, porém, amarelo.
Ao cerco, o PAIGC chamou Operação Amílcar Cabral (recorde-se que o dirigente histórico da guerrilha havia sido assassinado a 20 de Janeiro de 1973). E houve também a Operação Nô Pintcha. Os êxitos alcançados fizeram propalar a derrota militar do colonialismo português na Guiné, dando razão aos que defendiam que só uma solução política, – e, logo, negociada, – poderia resolver o conflito. Na arena internacional, os acontecimentos nos chamados “três G” abriram portas à inevitabilidade da independência e ao alastramento da mesma resolução às restantes colónias africanas, fosse, por tabela, em Cabo Verde, fosse em Angola e Moçambique (cada uma com as suas especificidades quando ao estado das respectivas guerrilhas, mas com o denominador comum de terem a razão política do seu lado), ou fosse ainda em S. Tomé e Príncipe. Dir-se-á que a motivação das forças armadas portuguesas era cada vez menos elevada. Realmente, o contacto com as injustiças sociais e descriminações de todo o tipo em nome de valores cada vez mais desacreditados fez abrir os olhos a muitos de nós. Havia neste tempo pouco mais de cem Companhias em exercício na Guiné e só onze delas eram comandadas por capitães do quadro permanente na frente de combate. Todos os outros eram milicianos, quer dizer, pessoal muito menos vocacionado para alimentar uma guerra injusta, que em geral já tinha lido o que era proibido ler-se na Academia Militar, que já participara (ou, no mínimo, assistira) a lutas estudantis que punham em causa o regime e reconheciam os direitos dos povos das colónias à independência…
A verdade é que o PAIGC, com a evidência dos estragos causados às nossas forças armadas a norte e sul, e da proclamação da independência efectuada bem dentro do território (com a presença testemunhal de delegações estrangeiras e de jornalistas internacionais) alterou aos olhos do mundo a situação, quer política quer militar da Guiné: em vez de ser uma colónia com territórios libertados pela guerrilha, passou a ser um Estado com territórios ocupados por estrangeiros (nós)! E isso passou a fazer TODA a diferença…
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 – P6217: Estórias de Guileje (8): O papel da fragata Orion na batalha de Gadamael (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)
Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6235: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (11): Os dias da batalha de Guidaje, 31 de Maio e 1 a 12 de Junho de 1973