

Amigo Carlos
Um abraço e tudo de bom.
Entre Deus, Destino e Sorte, sempre optei por Deus e Mãe Maria, como apoio e ajuda nos caminhos da vida, por mais difíceis que sejam.
Por achar que não devia entrar em alguns pormenores (?), esta passagem de “Viagem …” é um retrato condensado de um dos dias mais pesados da 2791 – FORÇA e por que passei, quer no plano físico com todo o esforço e tensão dispendidos, quer no psicológico por vezes numa luta de sentimentos contraditórios entre o Dever, Consciência, Responsabilidade, Dor, Instinto e Risco.
A quem ler, em especial aos que possam ter vivido estes momentos, o meu pedido de desculpa por poder ferir quaisquer sensibilidades ou fazer reviver esse dia.
Um abraço a todos
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (35)
Teixeira Pinto – Enfiamento da morte
Madrugada de Setembro e a rapaziada forma na parada, como habitualmente em boa disciplina, aprumo e com garbo.
Verificado o equipamento e transmitido o cuidado redobrado a ter, pela previsível dureza da operação em que não podia haver facilitismos, montamos nos Unimog que em bom andamento nos levam ao longo da estrada Teixeira Pinto - Cacheu.

Teixeira Pinto > Heliporto
Os quilómetros vão ficando para trás até que a coluna pára e o pessoal dos 1.º e 2.º GCOMB rapidamente se apeia, reúne e assume as suas posições, dando quase de imediato início ao andamento para entrada na mata, com azimute a um ponto mapeado como nosso objectivo nesse dia, algures na península do Balanguerês.
Ao que julgo lembrar, o tempo meio cinzento mas com abertas estava mais ou menos estável mas, as variações da vegetação nas matas por vezes dificultavam a progressão serpenteante, espaçada, atenta e silenciosa que procurávamos fazer, na esperança de não sermos detectados até ao objectivo, onde era suposto e quase certo, virmos a ter confronto.
Sob o comando do Alf Mil Barros (2.º GCOMB) - julgo que o Alf. Mil F. Pereira (1.º GCOMB) não participou – coadjuvado pelos Furriéis, o bi-grupo (?!) com cerca de trinta elementos com o armamento reforçado pelas MG e Lança-róquetes que usávamos, foi escoando as horas na marcha a corta-mato, intervalando com pequenos descansos para descompressão, escuta e perscrutação de pormenor, evitando o mais possível os trilhos, clareiras e matas de copas muito abertas, o que era normal fazermos por segurança.
A avioneta de PCV cedo nos começou a sobrevoar intervaladamente, fazendo-nos temer a detecção ou pior ainda, denunciar eventualmente o rumo do nosso andamento. Como consequência, a nossa vertical começou a ser viciada e os banana AVP-1 começaram a sofrer de interferências e perdas de sinal !?!!
Julgo que por o Mesquita ( Furriel do 1.º GCOMB) estar de férias, o Fur Mil Marques do mesmo GCOMB - há já uns meses afastado destas lides por ter ficado adstrito à secretaria – conhecedor da dificuldade da operação, oferece-se para fazer parte da força desfalcada de graduados. Como já não estava habituado àquelas andanças, o Castro e eu não concordamos em que ele assumisse esse risco, mas o Marques insistiu e insistiu, acabando valentemente por nos acompanhar.
Continuando a progressão, já próximos do objectivo começamos a entrar numa mata arbustiva que a cada passo ficava mais fechada. Paramos para análise da situação e descansar um pouco, fora de possíveis olhares indiscretos. Os que já lá estavam embrenhados deviam sair rapidamente dali, já que o tipo de mata quase só nos permitiria ripostar por tiro em caso de ataque e ficávamos muito permeáveis aos RPG e morteiro.
A dada altura começamos a ouvir vozes vindas ao que parecia, de um palmar a umas poucas dezenas de metros à nossa esquerda. É resolvido fazer por alguns de nós uma aproximação para observação e eventualmente desencadear uma espécie de golpe de mão, enquanto os restantes ficavam de cobertura e apoio à retirada, com instruções de só dispararem à vista e se fossem atacados, pois o grupo de observação poderia ficar entre fogos.
De novo o Marques se voluntaria para comandar, mas acaba por aceitar os argumentos da minha oposição incisiva e ficar.
Peço uma dúzia de voluntários com MG, HK, lança-róquete, dilagrama e restantes com G3 e avançamos agachados mas em passo rápido. A mata começa a rarear e o palmal está logo ali na frente, para lá de umas moitas. Várias vozes se ouvem agora distintamente, orientando-nos.
Em início de manobra de abertura, o fogachal rebenta com intensidade feroz, vindo de cima e de frente. Ouvem-se gritos e choros. O matraquear e os rebentamentos sucedem-se. Diante de mim depara-se me uma mulher e atiro-me para cima dela, só depois me apercebendo que traz um bebé às costas (vd. Post 3634 de 16 DEZ 2008 ).
…um impacto num carregador do cinturão e outro no guarda mão fazem-me em pensamento chamar pela Mãe em ajuda (curioso (?) mas verdadeiro). Na realidade foi um aperto do caraças.
O tempo abranda e parece parar em contraposição aos disparos… até que aquela escaramuça termina. São recuperadas quatro mulheres com dois miúdos bebés. Nenhum de nós foi ferido, felizmente não tendo o adversário tido a mesma sorte, pelos indícios.
O pessoal reagrupa e recomeça a progressão com moral em alta mas consciente da grande probabilidade de virmos a sofrer uma forte emboscada. O 1.º GCOMB vai agora na frente. Um dos miúdos volta e meia chora denunciando o nosso andamento e repara-se que é a mãe que o belisca nas pernas. Ameaça-se a mãe, mas os choros continuam com interrupções, denunciando-nos. A situação é gravosa e há quem lhe queira pôr fim. Intervenho e ameaço. A marcha continua.
Na frente segue o Fur Mil Rebocho (OE) e o 1.º Cabo Antunes (MG 42), ambos do 1.º GCOMB. A uma dezena de metros na orla de uma pequena clareira é avistado um elemento IN camuflado a apontar um RPG, que dispara de imediato no enfiamento da fila.
Há reacção mas o Antunes infelizmente não tem tempo de se esquivar e… cai. Estamos a 23SET71.
A emboscada desenvolve-se pela frente e pela direita. O tiroteio agiganta-se, uma das prisioneiras foge… o PCV volteia por cima de nós (Post 7067 - 01OUT10).
Os Enfermeiros Braga e Taia desdobram-se e fazem o que podem e sabem no apoio aos feridos. Valentes Homens.
Passado tempo que pareceu infinito, tudo fica calmo.
Nada bom de se ver… o malogrado Antunes tem uma granada de RPG que não explodiu (?) mas lhe causou a morte, enfiada no baixo ventre com a empenagem de fora. Digo que não explodiu porque penso que, se assim não fosse, pelo menos toda aquela zona do corpo teria desaparecido, o que não aconteceu .
Vem-me à cabeça a cena do miúdo e interrogo-me. Acabo por aceitar que procedi como devia, a consciência não me pesa e fico em paz.
Por momentos parece que vai haver algum descontrolo emocional perigoso e que é sustido com firmeza e segurança, com serenidade, ordens claras e incisivas .

Teixeira Pinto > Luís Faria junto a um helicanhão
Para além do Antunes, há seis feridos, alguns com gravidade. O voluntário Fur Mil Marques é um dos feridos, julgo que numa perna ou pé, felizmente com pouca gravidade, pelo que vai ser evacuado. Peço-lhe um carregador para substituir o que tinha ficado inoperacional e para trocar de G3 comigo, já que a minha passou a funcionar só tiro a tiro, talvez em resultado do impacto que apanhou, mas acabo por desfazer a troca.
Era a minha G3 que sempre me fora fiel, nunca me tinha deixado ficar mal, e até compartilhava com ela, amarrando-o junto do tapa chamas, um pequeno lenço vermelho que me tinham oferecido no Puto e que usávamos em operações e minas, entre outras ocasiões. Não iria ser por ela estar um tanto engasgada que a abandonaria. Superstições.
Efectuadas as evacuações e inspeccionada a zona ficamos a perceber que seriam uma vintena os convivas nefastos e que nem todos regressariam às suas lides normais!
O pessoal arranca em direcção à zona de recolha onde vai passar a noite, acabando por lá chegar sem mais contratempos. Teixeira Pinto e a nossa doce vivenda estão à espera, desta vez para carpir mágoas e procurar analisar o que se tinha passado.
Iria ser difícil esquecer esse dia.
Luís Faria
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7067: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (34): Em Teixeira Pinto, círculo quase fatal