terça-feira, 2 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10469: Memórias de Gabú (José Saúde) (25): Deus, virtualmente presente. A fé na guerra


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Deus, virtualmente presente

A fé na guerra

A inabalável fé que cada um de nós, cidadãos comuns do mundo, suporta ao longo da vida, afigura-se como uma junção espiritual que nos transporta a um mundo virtual onde as barreiras do imaculado não ousam ferir princípios que catapultam o ser humano para uma bênção divina. O conceito de fé não deve de forma alguma ser susceptível de hediondas concepções que tornam o homem uma criatura mártir de preconceitos falsamente concebidos. 

A guerra, melhor, viver no terreno as agruras que o conflito teimava em não dar tréguas a um soldado sem medo, tinha também uma outra vertente que conduzia o combatente a venerar algo oculto que permitisse sentir um melhor estar emocional. Afinal, ninguém foge às escarpas que a vida nos contempla, conclui-se. 

Assim, partindo do princípio que a fé, embora na concepção dos laicos a convicção seja irreal, remeto-me ao sentimento nobre de um persuadido que olvidou por completo o parecer do mundo pagão e assumiu convictamente penetrar num universo onde a fé sempre pernoitou. 

Penso que cada um de nós perfilha uma ideologia religiosa, ou não, que nos transporta para infindáveis presenças espirituais que em momentos extremos nos conduz a evocar a palavra de Deus. O ateu, que se afirma completamente adverso ao catolicismo, ou a uma outra religião, tem, a espaços, particulares momentos na vida que inadvertidamente o leva a momentos de reflexão, sendo comum vociferar o nome de Deus. Esta a minha conceção. Respeito, todavia, outras opiniões. 

A minha experiência no conflito da guerrilha na Guiné, teve como singularidade testar o meu mundo espiritual. Sabia que em casa dos meus pais, Aldeia Nova de São Bento, uma urbe situada num Alentejo sempre desperto, e astuto, a minha saudosa mãe convivia no dia-a-dia com uma promessa feita a partir do momento em que embarquei para a Guiné que a acomodava em manter as suas “santinhas” velinhas ininterruptamente acesas, deixando a sua jura antever que a fé superava um sofrimento superior com o qual o seu querido filho se deparava numa guerra que, por sinal, não dava folgas. 

Hoje, com a distância do tempo a prevalecer, confesso que essa candeia incandescente que a fé justamente ditou, elevou a minha auto-estima, assumindo em momentos considerados chaves, de apuro, atitudes que me catapultaram, e sempre, para virtuais sinais de esperança. 

Aliás, esta iniciativa da minha querida mãe expandia-se certamente por uma imensa diversidade de lares situados algures no mais discreto lar deste cantinho à beira-mar plantado. A família, no seu todo, convivia com a barbaridade que a guerra no Ultramar impunha ao mais modesto cidadão luso. A fé incutia na família um estado de espírito que gerava díspares situações que conduziam as mães, em particular, a orar a Deus e depararem-se com pagamentos de promessas. 

Naquela tarde o silêncio protelava-se com o avançar dos ponteiros do relógio. O calor apertava, era normal. Não havia ordens de saída, tão-pouco conhecimento de eventuais investidas ao mato. Prevalecia a serenidade. O pessoal dispersava-se no interior do arame farpado e passava o tempo a emborcar cervejas para contemplar os seus bebíveis desejos. Outros divertiam-se a jogar às cartas e havia também quem aproveitasse a ocasião para colocar a escrita em dia, enviando notícias para a metrópole, boas como era da praxe. Nada de insinuar potenciais desgraças entretanto conhecidas. 

A polícia do Estado – antiga PIDE – era uma organização que se mantinha sempre atenta. Uma pequena frase a denunciar o flagelo era fatídica. Nada de riscos. O cuidado atempado recomendava-se. Pintava-se a prosa em tons líricos. O sítio onde nos depositaram era esplêndido e tiros, ou desgraças, passavam completamente alheios ao nosso bem-estar. Mortos? Estropiados? Nem pensar, estávamos no paraíso. A mãe, o pai, os familiares e os amigos rejubilavam entretanto com as boas notícias recebidas do combatente. 

As leituras de livros em tempos de pausa favoreciam os nossos laboriosos espíritos. Com uma pequena foto da então namorada sobre a minha mesa-de-cabeceira, estiraçado numa cama onde os ferros apresentavam resquícios de uma ferrugem atroz que se sobrepunha a uma ténue cor de café com leite e uma ventoinha que me deleitava o corpo, lia atentamente um livro intitulado “UM DEUS NA PALMA DA MÃO”. Um Deus, algures num universo imaginado, que copiosamente teimava proteger a minha aureola humana e adornava os meus intuitos de uma luta constante pela sobrevivência. 

A luta, não titânica, travava-se, agora, entre as quatro paredes do meu afrodisíaco quarto. Esquecia-me, por momentos, do horrível som emitido pelas armas, dos rebentamentos das minas nas picadas, dos famigerados ataques noturnos aos quartéis, da imprevisibilidade do trilho no mato, ou dos momentos extremos e de ansiedade pura que a guerra sensatamente impunha. 

Ao lado, um camarada entretinha-se numa leitura sobre os heróis da banda desenhada. O ator principal era, no final, o vencedor. A personagem, obviamente mítica, ultrapassava barreiras inimagináveis. Vencia obstáculos. Nada temia. Era virtualmente o autêntico vencedor do chamado conto de fadas. Nós, recatados ao conflito, mergulhávamos num universo onde a prudência ditava ordens. 

Neste eloquente vaguear pelo mundo do ilusório, nós, jovens forçados a integrar esquadrões enviados para os campos de batalha, concluíamos: a guerra é um cosmos devastado por múltiplos interesses e assumidos por gentes que jamais conheceram os contornos de uma peleja onde a dignidade acaba por resvalar para conflitos incontornáveis!  

Revia-me, na altura, como uma pequena peça que integrava a plenitude de um xadrez onde um simples peão se limitava a evocar, apenas, a palavra de Deus. Avocava, fielmente, uma fé inacabada. Lembrava-me das orações da minha saudosa mãe; as suas idas constantes à Igreja; às missas domingueiras; as suas devoções, da sua entrega ao Pai Todo Poderoso. 

Crenças que se estendiam aos ilustres soldados enviados para o então Ultramar a fim de combaterem um inimigo com rosto e de ideais seguros. Homens joviais que deixavam no seu torrão sagrado um vínculo real para o seu chamamento a terras de além-mar. “Carne para canhão”, falava-se nas velhinhas ruas de uma recôndita urbe portuguesa ou em redor de um balcão de uma velha taberna. “Deus o proteja”, asseverava uma venturosa senhora que conhecia a preceito o rapaz, agora feito militar, numa das lojas da aldeia. 

Restava a inequívoca verdade que a fé na guerra do ex-ultramar prevaleceu entre os homens que combateram no terreno com o IN. Por outro lado ficará a inquestionável dúvida: será que a Pátria agradeceu toda a nossa entrega? Será que os nossos companheiros que fazem parte do rol dos falecidos, desaparecidos, estropiados bem como todos aqueles que ainda hoje se deparam com exequíveis sequelas de uma guerra que teimam em persegui-nos, são reconhecidos? O que resta de uma guerra atroz que implicou no rumo das nossas vidas? Responda quem de direito. Nós, piamente esperamos, como sempre! Que Deus os oiça e ilumine as suas mentes.


Mini-guião e emblema de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P10468: Carta aberta a... (8): Meu amigo português de Cufar, António Graça de Abreu (Cherno Baldé)

1. Mensagem de 1 de outubro, do Cherno Baldé, em resposta á cara aberta do AGA, no poste P10448 (*)

 
Caro amigo Luís Graça,

O título desta carta, ficava melhor assim: Carta aberta ao meu amigo Guineense (Cherno) Cufar... (Baldé), porque não creio que ela seja endereçada a mim, pois o mais provével é ter o AGA [, António Graça de Abreu], o grande vencedor, ter feito esta carta para se exorcizar ou melhor reconciliar-se com os seus fantasmas de Cufar que, pelos vistos,  continuam a incomodá-lo.

Primeiro, porque eu não sou propriamente um militante anti-colonialista visto que, feliz ou infelizmente, tanto eu como os meus familiares próximos e longínquos, não aderimos a luta anticolonial, bem ao contrário. 

Em segundo lugar,  não sou dos que vêm a história e o mundo a preto e branco pois, ainda criança, desafiei tudo e todos ao quebrar, por iniciativa própria, todas as barreiras sociais e culturais levantadas pela nossa gente para de seguida atravessar os arames farpados levantados à volta dos soldados portugueses e partilhar com eles momentos de alegria, tristeza, medo e angústias ,próprios de uma guerra sem rosto que não poupava a ninguém. 

Parece-me que entre o lúcido e comedido AGA que escreveu o Diário da Guiné e o ultranacionalista e super-herói "vencedor" AGA que agora se nos apresenta neste Blogue, há uma grande diferença. 

De resto, não estou interessado em alimentar controvérsias a volta de manifestações de um patriotismo tardio, ainda que tenha, também, por ele todo o respeito deste mundo.

No post da tua autoria (*), o sentido das minhas palavras ficou incompleto sem a inclusão da última parte do meu comentário, pois embora tenha reconhecido que nem sempre concordei com a linguagem utilizada pelo historiador [, René Pélissier,] , no fim acrescento que factos são factos e que não adiantava tentar tapar o sol com as mãos, o que significa que posso concordar com o conteúdo e não estar, necessariamente, com a forma. 

Mas, é como dizem: uma vez jornalista, é-se jornalista para sempre. 


Um grande abraço,
Cherno Baldé
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Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (14)

O herói Curvas

O cenário da área onde se encontram uns tantos militares que seguiam em normal patrulha e que neste momento esperam pela ajuda de um helicóptero, para fazer pelo menos duas evacuações, é este: capim e arbustos rasteiros, algumas árvores, também rasteiras, algumas até têm picos, um homem natural da província, que era guia e tradutor, está morto depois de uns minutos de agonia, no chão, um pouco encolhido, com duas balas alojadas na zona do peito que quase lhe perfuraram o corpo de um lado ao outro; um militar, com sangue em ambas as pernas, chora e lastima-se da sua pouca sorte, e um pouco retirado, encostado a uma dessas árvores sem picos, está o Curvas, alto e refilão, que chama filho da puta a toda a gente, pois vê o seu amigo Trinta e Seis, que tem uns arranhões dos picos das árvores que o feriram nos braços, porque é baixo, e tem a mania de andar sempre de camuflado com mangas arregaçadas.

A história foi contada pelos intervenientes, que ao chegaram ao dormitório, beberam água e se atiraram para cima das camas, alguns rompendo mesmo o mosquiteiro, pois vinham exaustos mas com um ar de pessoas importantes, e tinham alguma razão. Na noite anterior, o furriel miliciano entra no dormitório e avisa uns quantos:
- Amanhã, ao romper do dia, vamos sair em patrulha, preparem as G3 e carregadores, vejam se têm suficientes munições, se não tiverem, alguém que vá buscar uma caixa e carreguem os carregadores, pois as granadas, logo ao sair serão distribuídas, vai ser coisa simples, de rotina.

O grupo estava formado à hora e subiram para os Unimogues que os deixaram a sudoeste, numa zona de mato e capim, quase seca, de onde deviam começar o patrulhamento em direcção ao aquartelamento, onde estava previsto regressarem antes de anoitecer. Alguns já tinham feito este tipo de patrulhamentos e às vezes adiantavam-se, chegando a meio da tarde, ao aquartelamento, o que levava muitas vezes o Setubal dizer ao Cifra:
- Porra, quando sou eu, deixam-nos em casa do caral...! Mas estes deixaram-nos à porta do aquartelamento!

Enfim, voltando à história, andaram por mais de uma hora, nada de suspeito, não tiveram qualquer contacto com pessoas, o que leva o Curvas, alto e refilão, a falar na linguagem que todos lhe conhecem, dizendo:
- Aqui há merda. Não se vêm pessoas. Será que já entramos noutro País?

E o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, que ia como de costume a seu lado, logo lhe diz:
- Tão alto e tão burro. Nós estamos perto do aquartelamento, que fica a dezenas de quilómetros da fronteira.

Mas o Curvas, alto e refilão, que não acatava ordens, não se convencia, e voltava a dizer:
- Não, isto não é normal. Não fales merdas, tem que haver aqui pessoas.

Ainda não tinha acabado de pronunciar estas últimas palavras e já se ouviam tiros de metralhadora, vindos de umas árvores, um pouco ao longe.

- Abaixem-se, é uma emboscada. Grita o furriel miliciano que comandava este grupo.

Seguiu-se um tiroteio, não muito longo, pois passado uns minutos deixou de se ouvir tiros e o resultado foi a morte de um guia tradutor, que seguia na frente do grupo, e ferimentos com balas nas pernas de um militar, acima dos joelhos, que chorava com fortes dores, mesmo depois de estancado o sangue com ligaduras.

O helicóptero veio, evacuou o ferido e o morto e a título de curiosidade, pois a ordem era regressar ao aquartelamento imediatamente, mas o Curvas, alto e refilão que não acatava ordens, disse, tentando desapertar o cinto:
- Porra, esperem só uns minutos. Estou à rasca! Vou ali fazer um serviço que ninguém pode fazer por mim e volto já.

E foi revistar a zona de onde tinham vindo os tiros, deparando com uma pequena aldeia, apenas com duas casas, muito baixas, que se confundiam com o capim e demais vegetação, com um arsenal de armas e munições, assim como alguns documentos importantes.

Um achado valioso em termos militares, muito mal guardado, pois segundo se soube, deviam ser poucos os guerrilheiros, que ao darem pela presença dos militares, deviam ter disparado tiros, mas julgaram que se tratava de um grande grupo de militares logo se puseram em fuga, como era seu costume. E o Curvas, alto e refilão, continuava, dizendo:
- Eu sabia! Eu sabia! Vejam o que estes filhos da puta, aqui tinham escondido. Vou matá-los a todos, todos!

Entraram de novo em contacto com o comando, que enviou alguns reforços, assim como viaturas e veio o helicóptero de novo, que recolheu todo aquele arsenal, por diversas vezes, para uma zona próxima, onde podiam circular as viaturas, que por sua vez, transportaram todo o arsenal para o aquartelamento, todos olhavam o Curvas, como um herói e poucos recriminavam a sua linguagem, alguns, até o imitavam.

Este pequeno arsenal estava a poucos quilómetros do novo aquartelamento, sinal que os guerrilheiros avançavam e andavam por perto.

E o Setubal, dizia ao Cifra:
- Isto está a aquecer, qualquer dia escalda.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)





Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) >CCAÇ 12 (1969/72) > Uma helievacuação em Madina Colhido (muito provavelmente), no subsector do Xime... Pelos vestígios de queimadas, nota-se que estávamos na época seca, logo a foto será dos primeiros meses de 1970... O riquíssimo Álbum Fotográfico do meu querido amigo e camarada Arlindo Teixeira Roda (naturald e Pousos, Leiria, a viver em Setúbal há décadas) não tem, legendas...

Fotos: © Arlindo Teixeira (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados



O Helicóptero

Pelo ar lento que aquece,
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece,
Na boca mais um abraço.

A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa,
Já vêm mais pelo mar,
Vêm muitos e depressa.

A gente pensa,
Mas fica com o dedo no gatilho,
Na garganta um nó que pica,
Na preta o ventre com o filho.


Jorge Cabral, Missirá, 1970

Jorge Cabral 
(ex-alf mil art, Pel Caç Nat 63, Fá e Missirá, 1969/71).

In jornal “Apoiar”, 23 (Jan/Mar 2002), 
órgão da Apoiar - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes, Vítimas de Stress de Guerra

(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa Tabanca Grande, 
e autor da página sobre A Guerra Colonial
republicado na I Série do nosso blogue, 

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10458: Blogpoesia (304): Cangalheiros deste povo (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

Guiné 63/74 - P10465: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (5): Guileje: a messe de oficiais...



Guiné > Região de Tombali > Guileje > Pel Caç Nat 51 (1969/70) > Entrada da messe de oficiais.




Guiné > Região de Tombali > Guileje > Pel Caç Nat 51 (1969/70) > Edifício do comando > Entre portas, de óculos. está o alf mil Armindo Batata. "De costas, t-shirt branca, calças do camuflado e quico, [ao centro], creio ser o cap Barbosa Henriques [, da CART 2410]", segundo a explicação dada pelo Armindo Batata.

1. O nosso camarada Armindo Batata que, depois da peluda, se formou, pelo ISEL - Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, sendo hoje engenheiro técnico mecânico e formador, especialista em automação industrial, tem tido a gentileza de me mandar algumas notas para melhor enquadramento e compreensão das suas fotos de Guileje (mas também, e vamos publicar, de Cacine, Cufar e Catió)... Ontem mandou-me duas fotos, novas, que não constavam dos nossos arquivos... Aqui vai a legenda:


"A messe de oficiais era o alpendre do edifício comando/quarto do capitão/quarto dos alferes. Na fotografia [, a primeira de cima,] pode-se ver esse alpendre, com a mesa para refeições no primeiro plano e as cadeiras do bar de oficiais (aqui apetece-me sorrir) ao fundo em segundo plano. 

"A passagem em primeiro plano era habitualmente muito concorrida durante o jantar, já que estava no caminho de um dos espaldões de morteiro 81, dos espaldões da artilharia e dos abrigos de 3 ou 4 grupos de combate. 

"Nos lados perpendiculares a este corredor/messe ficavam o chuveiro e lavatório abastecidos por bidão (o lado onde está o militar a fumar) e no lado paralelo oposto, o sanitário, que constituía um excelente abrigo para quem fosse lá apanhado sentado. Em último plano o depósito de géneros.
"O militar nesta fotografia era o alferes comandante do pelotão de artilharia que substituiu o alferes (Gonçalves?) morto em combate em Fevereiro de 1969. [José Manuel de Araújo Gonçalves, natural de Lisboa, morto em 14/2/1969, ao tempo da CART 2410; era alf mil art, do BAC1, os seus restos repousam no cemitério do Alto de São João, em Lisboa]

"Na outra fotografia é visível a protecção do alpendre/messe de oficiais. Entre portas estou eu. De costas, t-shirt branca, calças do camuflado e quico, [ao centro], creio ser o cap Barbosa Henriques [, da CART 2410].

"Não me recordo de que festividade se tratava, mas era a apresentação de uma cerimónia fula à tropa".

Fotos (e legendas): © Armindo Batata (2012). Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]





Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto nº 40, sem legenda > O comandante da companhia, Jorge Parracho,  sentado à entrada  do edifício que era simultaneamente messe de oficiais, comando, quarto do capitão e quarto dos alferes, segundo a explicação que agora nos é dada pelo Armindo Batata.

Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

 [As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD- Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Não têm legendas, vêm apenas numeradas. Legendagem da responsabilidade de L.G.].

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Nota do editor:

Último poste da série > Guiné 63/74 - P10456: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (4): Guileje: abastecimento de água...

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10464: In Memoriam (127): António Martins, ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 675 - Presente (José Eduardo Oliveira)

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO), ex- Fur Mil da CCAÇ 675, (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 24 de Setembro de 2012: 

Caro Amigo Carlos
Votos de que esteja tudo bem contigo e com os teus.
Depois de longa ausência arranjei coragem, tema e tempo para mandar alguma coisa para o nosso blog.
Mandei para o endereço do Luís Graça a pensar no "facebook" da Tabanca Grande - o que fiz pela 1ª. vez - e não sei se fiz alguma coisa mal, pois não tive qualquer indicação de o meu texto ter sido recebido. Porque já passou mais de uma semana mando para ti à "antiga portuguesa", ficando na expectativa das tuas notícias.

Um grande abraço de Alcobaça.
JERO


De vez em quando… uma viagem ao passado 

A primeira paragem foi em Tondela. O Belmiro Tavares e a sua mulher, Luísa, tinham partido de Lisboa e deram-me boleia a partir de Alcobaça. Para ali chegar já tínhamos andado uns bons quilómetros. Em números redondos cerca de 300.

Entrámos no cemitério e encontrámos a campa do 1.º Cabo Enfermeiro António da Silva Martins sem dificuldade. O Tavares já cá tinha estado anteriormente. Eu vi pela primeira vez a sepultura do “Rato”, alcunha por que ficara conhecido por toda sua Companhia – a nossa CCaç 675. Em 1970 não tinha resistido a um acidente de motorizada numas fatídicas férias que passou na sua terra natal. Contava 28 anos. Anteriormente tinha vivido – ou sobrevivido - em Lisboa, após o regresso da Guiné.

Na sua humilde sepultura estavam também a mãe e uma irmã (Maria Manuela Silva Martins Neves Antunes – 1946/1998), conforme informação do coveiro, que nos acompanhou na visita. O pai também já tinha falecido e o nosso solícito informador nada mais nos conseguiu dizer sobre familiares do Martins, que estivessem vivos. Depois do nosso regresso da Guiné em Maio de 1966 os primeiros reencontros entre camaradas da guerra haviam acontecido por causa de casamentos, que aconteceram quase por todo o País. Depois do nosso regresso para a vida o “Rato” fora o primeiro a encontrar a morte.


Todas estas recordações me passaram pela cabeça enquanto colocávamos a lápide na campa n.º 31 do nosso camarada: PRESENTE /António Martins/ 1.º Cabo Enfermeiro/ Os Companheiros.

Abandonámos o cemitério. Antes de sair da cidade visitámos ainda a Igreja Matriz de Tondela. Continuava a “ver” o “Rato” com o seu sorriso inconfundível, que fazia parte da sua imagem de marca. Irreverente, malandro, irresistível no quartel e na tabanca com as “bajudas”, mas valente e desenrascado no “mato”. Voltara da guerra sem um arranhão e, dois anos depois, morreu num desastre de viação. Num tempo em que não havia telemóveis a notícia da sua morte chegou-me com algum atraso. Felizmente que alguns meses antes tinha-o conseguido levar a casa dos meus pais, em Alcobaça, onde tinha sido tratado como um filho. Esse tempo feliz ficou-me gravado na alma.

Seguimos depois para Freinedo, junto a Vilar Formoso, onde nos deslocámos para honrar a memória de outro camarada: - António de Jesus de Encarnação, que fora 1.º Cabo Rádiotelegrafista.

Cabe aqui fazer um pequeno parêntesis para recordar que durante a permanência da Guiné (1964-66) tivemos 3 mortos em combate: - Furriel Miliciano Mesquita e os soldados Gonçalves e Nascimento.

Depois, pela ordem natural da vida, que envolve a morte, “deixaram” a família da CCaç 675 mais 4 dezenas de camaradas.

Graças à iniciativa do ex-Alferes Miliciano Belmiro Tavares temos, desde há uns anos a esta parte, vindo a colocar lápides nas suas sepulturas com a mensagem de PRESENTE, que faz jus ao lema da Companhia, que no seu emblema referia “Nunca Cederá”.

Na visita à sepultura do Encarnação, que faleceu em 2008 com 66 anos de idade, tivemos a companhia de uma sua filha, que também reside em Freinedo. Ficámos a saber que o nosso antigo camarada foi emigrante em França, durante grande parte da sua vida.

No dia seguinte cumprimos um “programa” diferente, dedicado aos “vivos”. Fomos ao encontro de 2 camaradas que residem perto de Almeida, uma terra com história e com alma… até Almeida (1).

Como o Belmiro Tavares gosta de dizer fizemos nessa tarde um “mini-convívio” da “675”.

Reencontrámos o António Alberto Nunes Espinha, por alcunha o ”Cara Rota”, e o Silvestre Fernando Verges Flor, que passou à história como o “Aguardente”. Vá lá saber-se porquê !

São agora “rapazes” com 70 anos e a vida marcou-os de maneira diferente.

Curiosamente o “Aguardente” afastou-se da dita e passa a imagem de um homem tranquilo, com “as coisas” todas bem arrumadas. Em relação à sua idade actual passou mais tempo em França que em Portugal. Está bem na vida. O “Cara Rota” vê-se que é um homem desenrascado, que conhece bem o solo que pisa e que vive o seu dia … ”à sua maneira”. De manhã bebe uns “copos” com uns amigos. À tarde faz “alguma coisa” e, logo que está livre, joga à sueca com uns parceiros habituais. E o tempo vai-se passando.

Espinha, Tavares, Luísa, Flor e JERO 

Prometeram comparecer no próximo convívio da CCaç 675, desde sempre marcado para o 1.º domingo do mês de Maio de cada ano.

E já passaram 46 anos desde que o navio “UÍGE” nos transportou de Bissau para Lisboa, onde aportámos em Alcântara em 3 de Maio de 1966.

Para uma próxima “agenda”, a cumprir ainda este ano, temos para entregar as placas do Alferes Miliciano Artur Mendonça (Felgueiras) e do 1.º Cabo Cozinheiro Rogério Romão (Sabrosa/Vila Real).

O Belmiro Tavares e sua mulher ficaram mais uns dias no “Retiro dos Caetanos”, em Souto Chão (Rocas do Vouga), que foi o nosso” quartel-general”. Grato pela hospitalidade regressei a casa pelos “meus meios” e com a ajuda da Rodoviária Nacional.


Desta jornada de saudade a recordação mais viva, mais marcante foi a visita à campa do “Rato e ter visto a sua fotografia sumida, esfumada, apagada pelo tempo. Encaixada na sua lápide do cemitério de Tondela.

Que saudades eu tenho do “puto” irreverente da Guiné dos longínquos anos de 1964-66 em Binta, na Vila Tomé Pinto!

Desse tempo que não volta e do tempo que corre e… não se detém .

Quanto mais tempo andaremos nesta saga???

Num dia recordámos os mortos. No dia seguinte confraternizámos com os vivos!!! Todos nós sabemos que só uma coisa é certa…

Mas… a nossa amizade NUNCA CEDERÁ.
JERO

(1) - Evoca este grito – “alma até Almeida” - a importância que teve Almeida, fortaleza que só passou a integrar definitivamente território português no século XIII, com a celebração do Tratado de Alcanizes, na defesa de toda a Beira, face às muitas incursões castelhanas, e à valentia com que os seus guardiões disso fizeram um ponto de honra.

Porta da Fortaleza de Almeida
Foto: Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10334: In Memoriam (126): António Rodrigues Soares da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)

Guiné 63/74 - P10463: Estórias cabralianas (74): Danado para as cúpulas... (Jorge Cabral)



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Jorge Cabral, ele mesmo, ex-alf mil art, Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71.

Foto: © Jorge Cabral (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Mais um estória do nosso alfero (*)... Começou em abril de 2007,  a nº 1... Já lá vamos na 74, à espera do lançamento do prometido livro de antologia que será, dizem, um acontecimento social de arromba na noite de Lisboa... (LG) (**)

Danado para as cúpulas ? 
por Jorge Cabral


 – Branquinho, eu era danado para as cúpulas ? –  perguntei-lhe um dia destes, porque  habitualmente me socorro da sua memória. Ainda há meses, logo depois do almoço da CCS do Bart 2917, em Guimarães, no qual contaram tantas estórias do meu  Missirá, tive de procurar confirmação junto dele. Praticamente eram todas invenções, pois também têm direito…

A esta questão, o Branquinho nem soube responder.
Cúpulas ? Quais cúpulas?

Lá lhe relatei o encontro com o Belmiro, um Rapaz dos  Morteiros, que esteve connosco largos meses. Vinha com um cunhado e a certa altura  afiançou-lhe:
Aqui o Alferes era danado para as cúpulas!

Não percebi.. Sorri e concordei:
– Pois era !  Mas a expressão não me saiu da cabeça.

Danado para as cúpulas? Matutei, matutei e penso que descobri.

Em Missirá, a mesa das refeições servia também de secretária, na qual escrevíamos  as nossas cartas e aerogramas. No início até me pediam para escrever às namoradas. Mas depois da má experiência, documentada na estória “O Básico Apaixonado” (***), passei a funcionar como uma espécie de Ciberdúvidas [da Língua Portuguesa]:
 – Meu Alferes,   como se escreve isto? Meu Alferes como se escreve aquilo?

Ora, uma tarde o Belmiro perguntou-me:
– Meu Alferes, f…..é com u ou com o?
– Mas para quem estás a escrever? Põe copular, é assim que se diz.

Não sei se seguiu o meu conselho. A carta era para o irmão e certamente o Belmiro  gabava-se das suas proezas sexuais.

Mais de quarenta anos depois deve ter relembrado a palavra.
– Mas atenção,  Belmiro, como  a outra, esta também se escreve com um o.

Bem, aqui entre nós, o ou u não interessa mesmo nada. Até porque é bem melhor de fazer do que de escrever…

 Jorge Cabral
______________

Notas do editor:

(*) Últimos postes da série, publicados no ano em curso:

29 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10307: Estórias cabralianas (73): O Conde de Bobadela (Jorge Cabral)

(...) Estou no Tribunal de Mafra à espera de um Julgamento, quando uma mulher me interpela:
- É o Senhor Conde, não é?

Hesito, mas para evitar mais conversa, respondo:
-Sou sim. Como vai a senhora?
-Ai, que já não se lembra da Aurora! Eu trabalhava em casa do Senhor D.Ilídio. O Senhor Conde ia lá muito, quando estava na tropa. (...)


9 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9873: Estórias cabralianas (72): Ressonar... à fula (Jorge Cabral)

(...) Além de ressonar, sempre falei a dormir. Um dia em Missirá propus-me descobrir, de que falava, o que dizia. Ora, havia lá um velho gravador de fita, máquina pertencente a não sei quem, enfim nossa, pois viviamos numa espécie de “economia comum”. Resolvi pois gravar uma das minhas noites. (...)
(...) Há uns tempos recebi uma simpática mensagem de uma leitora das “estórias cabralianas”. Gabava-me o humor mas alertava-me, algumas indiciavam uma certa “fixação mamária”. Nada de grave, que não pudesse ser tratado no seu divã, de psicanalista, presumo. (...)

3 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9304: Estórias cabralianas (70): Sambaro, o Dicionário e o Afecto (Jorge Cabral)

(...) Agora que tenho tempo, tornei-me um caminheiro. Logo pela manhã abalo pela cidade. Travessas, calçadas, pátios, becos, vilas, percorro devagar essa Lisboa escondida, quase invisível. Foi num desses passeios que encontrei Ansumane. Um negro velho e calvo, que entre a Travessa da Lua e o Beco das Estrelas, arengava em crioulo. (...)

(**) O nosso alfero veio logo protestar: "Luís, a antiguidade é um Posto! Comecei em Dezembro de 2005! O 'Básico Apaixonado' é de 7 de Janeiro de 2006, tendo sido posteriormente republicado". 

 E eu tive que lhe dar razão: "Querido 'alfero': Os meus neurónios já não andam bem!... Fui lá atrás, a dezembro de 2005 (!), aos postes da I Série (que já ninguém lê), descobrir algumas preciosidades tuas, as primeiras estórias cabralianas, de que fiquei logo fã, repubicadas depois,  mais tarde,  na série do mesmo nome... Bato-te a pala e peço-te mil e uma desculpas pelo lapso biocronológico. É verdade, aqui(e lá) a antiguidade é(era) um posto... Foi "pela mão do Humberto Reis" que a gente se reencontrou em Lisboa, em dezembro de 2005... Abraços, longos. Luís".
  
(***) Vd. poste de 23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1689: Estórias cabralianas (3): O básico apaixonado (Jorge Cabral)

(...) O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão. Para os Destacamentos eram mandados os especialistas que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás! (...)

Guiné 63/74 - P10462: Notas de leitura (413): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Continuamos à volta da história da Guiné, de René Pélissier, seguramente uma das obras incontornáveis para o estudo da Guiné entre 1841 e 1936.
Importa esclarecer que há muitíssimo pouco acerca do período pré-colonial (a grande exceção é a tese de doutoramento de Carlos Lopes intitulada “Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de que falaremos oportunamente), segue-se a história da Guiné de João Barreto (muito ultrapassada), a história da Guiné portuguesa de Teixeira da Mota (obra fundamental), temos depois René Pélissier e haverá que ter em conta os trabalhos de António Duarte Silva e a guerra da Guiné propriamente dita em que o livro do coronel Fernando Policarpo é indispensável.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné por René Pélissier (2)

Beja Santos

René Pélissier é seguramente, tal como Teixeira da Mota, a referência obrigatória para o estudo da história da Guiné, no período colonial. É patente que o século XIX foi de grande turbulência: ficou esclarecida a dimensão do território, confinado a uma fração do que fora a Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII, que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa; na primeira metade do século, portugueses e lusitanizados vivem junto aos rios, em tensões com as populações nativas e a presença de outros concorrentes estrangeiros; a perda do tráfico negreiro irá alterar a atividade comercial; todo o trabalho de interiorização irá custar sucessivas campanhas que se prolongarão até 1936. Como é óbvio, ainda há outros factos a anotar, como é o caso da separação completa da Guiné de Cabo Verde, a despeito de metade dos funcionários administrativos serem provenientes do arquipélago.

As insurreições à volta de Bissau são uma constante, ainda na primeira metade do século XIX; mas também em Cacheu e mais esporadicamente no Geba. O autor documenta rigorosamente todos estes conflitos, hostilidades e insubordinações, deixa bem claro como é frágil e poroso o domínio territorial. Por vezes, os contingentes militares têm que pedir auxílio às forças estrangeiras.

“À imagem das suas superfícies contraditórias e imaginárias, a Guiné de Cabo Verde, antes de 1879, é o império das incertezas. Incertezas não só na sua extensão, mas na sua própria existência. Como, efetivamente, conservar feitorias que se esboroam e cuja vida económica está dependente, exclusivamente do estrangeiro, a sobrevivência política dos socorros pedidos ao exterior e a identidade de uma crioulização de geometria variável?”. A tão inquietante pergunta procura responder o historiador. Queixa-se da falta de documentação, mas é possível identificar os vários nomes de maior influência história: Caetano José Nosolini e Honório Pereira Barreto, não se poderá entender a diplomacia a apagar fogos juntos dos grumetes de Bissau e de Farim, a travar as perturbações no Geba, nos conflitos internacionais que vão envolver Bolama e a região do Casamansa, a intervenção francesa em Bissau, o florescimento do amendoim no rio Grande de Buba, sem a atividade destes dois proprietários, que muito provavelmente tiveram comércio negreiro. A segunda metade do século XIX, eles vão estar presentes no combate às perturbações, de Norte a Sul da colónia, e fazendo frente à avidez de franceses e britânicos. Até agora acantonados à volta de Bissau, Cacheu e Geba, os portugueses lançam-se no Geba e hasteiam bandeira em Bambadinca, Fá e Ganjarra, isto a um tempo em que os Papéis se vão sublevar no Norte e que surge outro fenómeno inquietante que as autoridades portuguesas não têm capacidade para controlar, as invasões Fulas no Gabu (a grande batalha de Kansala ou Cam-sala terá ocorrido em 1864 e representa a perda de poder dos Mandingas a favor dos Fulas.

Entrou-se assim num período de ameaças estrangeiras, da exploração económica do Rio Grande de Buba (comércio do amendoim), de expedições contra os Papéis do Norte e de uma clarificação dos estabelecimentos portugueses. Em 30 de Dezembro de 1878 ocorre o desastre de Bolor, uma significativa derrota do exército na Guiné e em que os vencedores são os Felupes de Jufunco. Em 18 de Março de 1879 o distrito da Guiné será desafetado da província de Cabo Verde. Dali em diante, a Guiné torna-se numa verdadeira província com um governador totalmente independente do governador-geral na Praia. A lição tirada do desastre de Bolor é de que as autoridades têm mesmo de avançar e ocupar território. O autor recorda que em 468 meses (1845-1878) o Exército e a Marinha portugueses combateram pelo menos 9 vezes, não tendo aí resultado o domínio do território. Se até agora o importante era manter a alfândega, a ideia de ocupação é um princípio vital, segue-se um período em que a Guiné está permanentemente em armas. Já não chega as concentrações comerciais em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Bissau, Geba e Bolama, a fronteira francesa parece querer asfixiar tudo. Enviam-se destacamentos para os Bijagós, para o Rio Grande de Buba, para o Geba e mais acima, no Casamansa. A despeito desta ofensiva, da procura de ganhar posições no Sul da Guiné, haverá uma vitória dos Beafadas contra os portugueses em Jabadá, os incidentes franco-portugueses no Casamansa será uma constante e é neste período que ganha notoriedade o alferes Marques Geraldes, um militar que terá sido o primeiro a percorrer a Guiné desde o centro até ao Casamansa, praticamente sozinho, o que lhe granjeará um enorme prestígio. Ao tempo surge um problema inesperado na fronteira do antigo Gabu, ocupado pelos Fulas-Pretos. Um insurgente, Mussa Molo, começa a praticar razias junto dos Beafadas, toda a região do Geba vai entrar em convulsão. É por esta época também que a região do Cuor passa a ter importância dado que aqui se assegura ou se corta o trânsito com Bissau.

E ao tempo em que se celebra a Convenção Luso-Francesa de delimitação de fronteiras (Maio de 1886) que as forças militares espadeiram em todo o território: no Rio Grande de Buba, no Cubisseque, junto ao Casamansa, no Mansomine. Portugal terá cedido à França o Casamansa para obter apoio ao projeto da imensa faixa inter-oceânica entre Angola e Moçambique. Como observa Pélissier, em troca daquilo que nada lhe custa (a concessão a Portugal da sua liberdade de ação na África centro-austral), a França vai engolir as duas margens do Casamansa e levar as suas posições até à proximidade do rio Cacine. Concretamente, a Guiné portuguesa perdeu profundidade continental. Após um período de vitórias, a que se pode associar o nome de Marques Geraldes, entra-se numa fase que Pélissier classifica de anos medíocres, a Guiné é no essencial uma colónia fluvial.

Começa um novo período, que se estenderá até 1908, prosseguem as campanhas, na maioria dos casos bastante tímidas, deu-se a liberalização alfandegária, previram-se grandes sociedades interessadas em explorar a Guiné, falou-se em capitalistas franceses (caso do conde de Butler) e de um consócio ítalo-português, envolvendo o marquês de Liveri de Valdausa e António da Silva Gouveia, facto é que se irá criar a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné, a Casa Gouveia que só se extinguirá em 1974.

Prosseguem à guerras à volta de Bissau, os papéis estão mais renhidos do que nunca, e Mussa Molo continua a ser uma dor de cabeça sobretudo no Gabu e em Pachisse. Em 1895 consegue-se obter uma posição no Forria. Dá-se uma inversão da preponderância dos franceses no negócio do amendoim, os alemães continuam muito ativos. O imposto de palhota continua a ser praticado em Farim. Aos poucos, sente-se que as populações nativas estão cansadas de se revoltar contra os portugueses mas é exatamente neste período que começam as guerras luso-mandingas, que se estendem de Farim, passando pelo Oio, até ao Geba. A Pax Lusitana, a despeito de um estado latente de insubmissões e guerras de fisco, é quase uma realidade.

(Continua)



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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10461: Dossiê Guileje / Gadamael (25): Memórias do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (Armindo Batata)


1. Resposta, de ontem, do Armindo Batata ao meu pedido para comentar as suas fotos publicadas no poste P10442 (*)


Caro Luís

Vamos lá então, na medida do possível, acrescentar as legendas, mas, com muito raras excepções, não me recordo dos nomes de ninguém.


Na primeira foto, a número 15 [, à esquerda], sentados, estou eu e mais dois alferes da companhia. Não identifico o local. 

Na que se segue [, foto nº 12, à direita], estão, um dos cabos do Pel Caç Nat 51 e o 2º sargento do mesmo Pel Caç Nat. 

Este 2º sargento era de Bissau, casado com uma enfermeira a trabalhar também em Bissau. Não estava desarranchado.


 Na última fotografia [, nº 14, à esquerda, ] está um outro cabo do mesmo pelotão. 

Tão aprazível local era a entrada e o tecto do abrigo do Pel Caç Nat 51 (dos cabos, sargentos e por vezes também meu).

Este abrigo situava-se no lado oeste do aquartelamento (lado do Mejo) junto ao paiol e debaixo de um grande mangueiro. 

O fogareiro a petróleo devia ter sido certamente emprestado para a ocasião (tal não era difícil num Pel Caç Nat). 

Habitualmente os cabos tomavam as refeições neste local, os sargentos na respectiva messe ou também aqui e o alferes tomava as refeições, juntamente com os restantes oficiais, na messe. 

A messe de oficiais era o alpendre do edifício comando/quarto do capitão/quarto dos alferes. Na fotografia pode-se ver esse alpendre, com a mesa para refeições no primeiro plano e as cadeiras do bar de oficiais (aqui apetece-me sorrir) ao fundo em segundo plano. 

A passagem em primeiro plano era habitualmente muito concorrida durante o jantar, já que estava no caminho de um dos espaldões de morteiro 81, dos espaldões da artilharia e dos abrigos de 3 ou 4 grupos de combate. 

Nos lados perpendiculares a este corredor/messe ficavam o chuveiro e lavatório abastecidos por bidão (o lado onde está o militar a fumar) e no lado paralelo oposto, o sanitário, que constituía um excelente abrigo para quem fosse lá apanhado sentado. 

Em último plano o depósito de géneros. O militar nesta fotografia era o alferes comandante do pelotão de artilharia que substituiu o alferes (Gonçalves?) morto em combate em Fevereiro de 1969. 

Na outra fotografia é visível a protecção do alpendre/messe de oficiais. Entre portas estou eu. De costas, t-shirt branca, calças do camuflado e quico, creio ser o cap Barbosa Henriques [, da CART 2410].

Não me recordo de que festividade se tratava, mas era a apresentação de uma cerimónia fula à tropa.

Abraço
Armindo Batata


2. Comentário de L.G.:


Armindo, obrigado pelo teu companheirismo, camaradagem, pachorra, paciência...  A gente ainda não se conhece pessoalmente, mas eu já percebi que tenho à minha frente um bravo de Guileje... Não  vou abusar da minha tendência para a adjetivação, coisa que tu não aprecias. Estou-te grato, sem advérbio modo, pelas legendas com que enriqueceste as tuas/nossas fotos, que passam a ser património da Tabanca Grande. Um dia destes  gostaria de falar contigo ao telefone, se me deres o teu contacto. 

Camarada, não consegui localizar as fotos a que te referes a partir deste parágrafo: 

"A messe de oficiais era o alpendre do edifício comando/quarto do capitão/quarto dos alferes. Na fotografia pode-se ver esse alpendre, com a mesa para refeições no primeiro plano e as cadeiras do bar de oficiais (aqui apetece-me sorrir) ao fundo em segundo plano".

Peço que me confirmes, por outro lado, em que altura exatamente estiveste em Guileje, com o saudoso capitão Barbosa Henriques, que eu e o Jorge Cabral conhecemos em Fá Mandinga, setor de Bambadinca,  como instrutor da 1ª companhia de comandos africanos, no final de 1969, princípios de 1970.  Um Alfa Bravo. LG (**).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10442: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (2):Funeral fula em Guileje (ou melhor, funeral muçulmano, segundo o nosso amigo Cherno Baldé)



(**) Último poste da série > 30 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10460: Dossiê Guileje / Gadamael (24): O abastecimento de água ao aquartelamento e tabanca de Guileje (Manuel Reis, ex-Alf mil, CCAV 8350, 1972/74)

domingo, 30 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10460: Dossiê Guileje / Gadamael (24): O abastecimento de água ao aquartelamento e tabanca de Guileje (Manuel Reis, ex-Alf mil, CCAV 8350, 1972/74)

1. Mensagem de Manuel Augusto Reis, com data de hoje, e em resposta a um pedido meu, formulado no poste P10456 (*)

Caro Luís:
Terei muito gosto em responder ás questões por ti solicitadas. Muito me espanta que este assunto ainda não tenha sido referido neste espaço. Já foi dissecado noutro espaço, dada a sua importância e influência que teve na decisão final da retirada de Guileje.
O poço localizava-se em Áfia, a 4 Km de Guileje, e a recolha da água era feito por um pequeno grupo de 8 homens (secção), que garantiam uma falsa protecção pois, se detectados pelo inimigo, eram facilmente apanhados à mão.

Nunca houve qualquer problema, emboscadas, minas, etc, era necessário que sucedesse uma vez,  para redobrar os cuidados, bem típico dos portugueses. Era assim nas companhias anteriores, a sobreposição foi feita deste modo rotineiro e assim continuou no meu tempo.

Como era feita a nível de secção, só me recordo de lá ter ido uma vez à água. Passei por lá outra vez de regresso a um patrulhamento que efectuámos ao Quebo, nas imediações do Mejo, onde supostamente se localizaria um novo aquartelamento, que apresentaria algumas facilidades logísticas, dada a proximidade de um largo rio que fazia fronteira com o Cantanhez.
A recolha da água era feita uma vez por dia, só excepcionalmente se ia a Áfia duas vezes. No caso de obras, por exemplo, tornava-se necessário mais água e havia necessidade de lá voltar.
Os homens, os bidões e a bomba eram transportados em viatura através de uma picada em estado muito razoável.
A população abastecia-se de água nas imediações do aquartelamento, mesmo junto do arame farpado, onde existiam uns pequeços poços. Era aí também, nessa bolanha, que as lavadeiras lavavam a roupa, nossa e delas. Foram atacadas no dia 21 de Maio de 1973, tendo recolhido ao aquartemento, apavoradas, sem ferimentos, pois tratou-se de uma pequena intimidação.

As mulheres que lá se deslocavam tinham sido por nós informadas que a partir de 19 de Maio, à tarde, o caminho estava bloqueado pelo PAIGC (3º Corpo do Exército), que receberam  ordens para se deslocarem para lá, quando lá se encontravam nas matas do Mejo.

 O dia 18 de Maio, de tarde, foi a última vez que se efectuou essa deslocação sob o comando do então Major Coutinho e Lima. A secção destacada para esse serviço tentou esquivar-se, devido à turbulência que se verificou, umas horas antes, com uma violenta emboscada, nas imediações do aquartelamento, na picada para Gadamael, e que envolveu 3 grupos de combate.
No dia 21 já não existia água e a sua necessidade esteve na origem do risco que a população assumiu.
Na época das chuvas, com a picada intransitável, o reabestecimento era efectuado na bolanha pelas NT e população.
À pergunta que formulas sobre a inexistência de um poço de água no aquartelamento não te sei responder em concreto. De facto, nas imediações, os pequenos poços utilizados pela população poderiam ser uma solução com um pequeno investimento.  
Julgo que te respondi a tudo.
Um abraço.    
Manuel Reis
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Notas do editor

(*) Camaradas de Guileje:  Não temos aqui descrições detalhadas da ida á "fonte de Guileje"... É uma questão que me intriga...

Como é que era no vosso tempo ? Quantas vezes por semana ou por dia é que se ia buscar água ? Ia sempre um grupo de combate a fazer segurança ? E no caso da população ? As mulheres e crianças eram escoltadas pela mílícia ? Qual era a distância exata do de Guileje até à fonte (no Rio Afiá) ? 4 km ? A pé, era mais do que uma hora... Houve emboscadas, minas, percalços, etc., no vosso tempo ? Quando é que a bomba a motor ? Por que razão é que em tantos anos (19634/73) nunca se abriu um poço dentro do perímetro da tabanca e do aquartelamento de Guileje ?...

Provavelmente nunca ninguém pensou que um dia poderiam "morrer à sede"... (Desculpem a ironia, mas os nossos comandantes eram pagos para pensar, decidir, comandar, prevenir, prever, liderar)...

Guiné 63/74 - P10459: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (2): A cidade moçambicana da Beira,berço do Mário Sasso (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)




Moçambique > Cidade da Beira > c. 1905 > Rua Conselheiro [António] Ennes > Foto do domínio público, cortesia da Wikipedia ("View of Rua Conselheiro Ennes, Beira, Mozambique. Photograph of original postcard c1905, published by The Rhodesia Trading Co. Ltd., Beira"). A capital da província de Sofala tem o estatuto de cidade a partir de 1907. É hoje a maior cidade de Moçambique, a seguir a Maputo (antiga Lourenço Marques).

António José Enes  (Lisboa, 1848 / Queluz, 1901), mais conhecido por António Enes, diplomado com o Curso Superior de Letras, foi um político, jornalista, escritor e administrador colonial português:  destacou-se  em Moçambique,  onde exerceu as funções de Comissário Régio durante a rebelião tsonga,  na região sul daquele território. Foi o principal organizador da expedição de Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque contra o Império de Gaza, e que levou à prisão de Gungunhana, em 1895.

Enes defendera,  em 1870, a ideia dos Estados Unidos da Europa, temendo que Portugal fosse absorvido pela vizinha Espanha. Foi membro destacado do Partido Histórico e da Maçonaria. Exerceu as funções de deputado, de bibliotecário-mor da Biblioteca Nacional de Lisboa (1886) e de Ministro da Marinha e Ultramar na primeira fase do governo extrapartidário de João Crisóstomo de Abreu e Sousa. Era amigo pessoal de D. Carlos, que lhe atribuiu a grã cruz da Torre e Espada pelos seus "grandes e relevantes serviços", prestados à Pátria e ao ao seu Rei,  em África.

É autor, entre outras obras, de A Guerra de África em 1895. Prefácio de Afonso Lopes Vieira. Lisboa: Prefácio, 2002. 507 pp. [1º edição, 1898].  Fonte: Wikipédia e LG].


A. Continuação da nova série (*) do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) [, foto à esquerda, em Catió, assanaldo com um círculo a vermelho].


B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > (**)

2. A Cidade Moçambicana da Beira

Situada na costa leste de Moçambique, lá em cima, à borda do Índico, a cidade da Beira, de traçado geométrico, foi a encruzilhada onde se fixaram tanto as gentes do oriente amarelo como as do ocidente, negro e de feição europeia, por efeito da colonização ocidental, secular.

Indianos e malabares, asiáticos e gente de toda a orla mediterrânica, foram-se implantando, ao longo da costa de África, colorindo-a de matizes étnicos originais e muito singulares. Mesmo os que mantinham as linhas fisionómicas europeias comungavam, todos, de um mesmo tipo, anímico, resultante dessa peculiar mistura, visivelmente marcado pelos traços da grandeza ilimitada dos elementos geográficos que a todos abraçava.

Ali arribou, em tempos, gente vinda das costas do Adriático. Os Balcãs foram sempre um sítio sujeito a inesperadas convulsões, radicadas em rivalidades étnicas e religiosas, nunca bem resolvidas. 

Uma dessas famílias dava pelo apelido desconhecido, que não suscitava qualquer significado no linguajar típico, misto de português e de falares, indígenas. Era o ramo dos Sassos, oriundo da Eslovénia. Pacatos, com visível espírito de iniciativa e trabalhadores. Ficaram deslumbrados com a abundância natural que encontraram naquelas paragens. Depressa se tornaram, não só, queridos no meio, como assumiram um papel de dinamização daquelas terras. Desde as pequenas lojas de comércio, sempre a abarrotar das coisas mais modernas e de úteis utensílios, já consagrados nas terras balcânicas, às primeiras empresas empregadoras, em moldes nunca vistos.

O trabalhador duma casa dos Sassos tornava-se, a breve trecho, se demonstrasse razões de confiança, num elemento participativo integral, nos ganhos e nas perdas. A prosperidade florescia, de dia para dia, enquanto os Sassos se afirmavam como indispensáveis à vida e harmonia da cidade.

Foi assim até à 3ª geração. Eslovénia ou Jugoslávia, escondidas para lá do Adriático, já não diziam nada aos netos dos primeiros. Nunca lá foram. Era só o que os velhotes saudosistas iam tartamudeando sobre as velhas lembranças da mocidade difícil que tinham tido, há tanto tempo. Eram ferretes cravados na cabeça que só eles enxergavam.

Quando o Mário fez e 7º ano do liceu, ali na Beira, sem grandes novidades, no dia a dia, tudo era igual, nunca mais largou o pai, a chagá-lo com a de querer ir estudar para Lisboa, da Europa…. Seria talvez o apelo telúrico europeu que lhe corria no sangue a ditar toda a teimosia, que chegava a ser irritante. Tinha lá uns tios a viver. Já não era tão difícil. Na cabeça delirante do puto, tudo girava em turbilhão, à procura de uma porta aberta.

Quis o destino encarregar-se de lhe fazer a vontade. Naquele ano, os tios de Portugal foram passar férias à Beira. Em casa deles. Durante os 3 meses de verão. Fartou-se de acompanhar os primos que lhe encharcaram a cabeça com loas das ruelas e coisas de Lisboa. O Castelo de Lisboa, Sintra e arredores, a vida nocturna de fado, nos românticos bairros alfacinhas…Até a fala típica alfacinha deles o seduziam. Sabe-se lá porquê.

O certo foi que o vapor que os trouxe de volta, teve mais um passageiro a bordo. O Mário, de grandes orelhas e olhos bogalhudos, uma boca com uns lábios grossos que até chateavam…e cabelos lisos, demasiado compridos, atrevidos, à boa maneira dos futuros Beatles, até seriam da mesma idade… Havia de facto, uma certa semelhança entre ele e os futuros reis da fama. Com as suas guedelhas de rebeldia, haveriam de revolucionar o mundo inteiro.

Deixar os pais em África, a dizer adeus, chorosos, no cais da Beira, foi coisa de somenos importância. Eles ficavam bem e o Mário, ainda ia melhor, na ânsia de ver Lisboa, a mítica Coimbra ou as terras verdes do norte.

Que diferença. Uma terra, já com uns bons séculos de existência e a Europa, civilizada, à espreita, a dois passos. França ou Inglaterra eram já ali, para quem estava habituado às distâncias negras africanas… A África era demasiado natural, nas suas florestas carregadas de vida, e de liberdade, nos rios da fartura e muito francos, nas gentes pacatas e sem histórias, sempre iguais… Sentia um certo enjoo de tanta fartura!…

A atracção pelo desconhecido e pela aventura corria-lhe no sangue. Se possível, viver duas vidas numa só…era seu modo de estar, irresistível, sem saber porquê. (Continua)
_____________


Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10430: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (1): A origem do nome, Palmeirins (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)


(**) Dedicada à memória do alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728, morto em combate no Cantanhez, em 5 de desembro de 1965

Guiné 63/74 - P10458: Blogpoesia (304): Cangalheiros deste povo (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

Cangalheiros
por Ricardo Almeida [, foto atual, à esquerda]

Cangalheiros deste povo
e
Do meu povo!,
Que já nem têm um covo
de
De terra para enterrar.
As mortes que então provocais,
Hão-de pesar-vos na alma,
Sem tempo p'ra queixumes nem ais,
Por serem mais pesados que a lama,
Os mortos que tendes de carregar...

Mas se isto não bastar
e
Se justiça houver,
Estarei cá para ver
Vosso corpo a enterrar
e
Sobre essa terra escrever
Aqui jáz erva daninha,
Não queirais essa semente,
Que isto é campo de doninha,
Não queirais ser conivente.
e
Senhores de Portugal,
Não há quem vos faça mal
Porque o poder que possuem
Não foi dado pelo povo
Mas outrossim  usurpado;
e
Nem o próprio jornal
Não os factos desta guerra
Não vá o povo saber
e
Clamar contra o poder,
Nalgum jornal lá da terra!

Mas um dia tenho a certeza,
Se saír vivo daquì.
Denunciarei a pobreza
Deste povo  e do meu povo,
e
Do mais que eu já vi.

Venham ver, venham ver...
A mãe com filhos pequenos
Sem nada ter p'ra lhe dar,
Que de nascença morenos
e
Da icterícia amarelos,
Porque a ferida do seu figado
Já não se pode sarar.


PS - Poema enviada em 26 do corrente, com a seguinte nota:

Em jeito de roda pé
volto a chamar atenção que isto é escrito,
num contexto politico muito adverso,
politico, económico, social, cultural,
e que levava ao desespero e à revolta
porque não bastava os itens acima descritos,
como a guerra que dizimava lá longe toda uma geração.
Por isso estas crónicas em jeito de poesia.

Peço desculpa por algum lapso que possa surgir,
fruto da pouca experiência de escrever no computador.

Com um abraço para toda a Tabanca Grande
marques de almeida
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Guiné 63/74 - P10457: Blogoterapia (218): Obrigado pelo acolhimento nesta Grande Tabanca, que abriga as alegrias e as dores de uma geração, batizada com suor, sangue e mosquitos, nas águas escuras dos deltas dos rios da Guiné (Vasco Pires, Brasil)


Guiné  > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel,  Janeiro de 1971 a Outubro de 1972) > Vista aérea de Gadamael Porto nos finais do ano de 1971.  Foto do cor art ref António Carlos Morais da Silva, e por ele gentilmente cedida ao nosso camarada Manuel Vaz.

Foto:  © Morais da Silva (2012) [Editada por L.G., com a devida vénia]


(...) [ Sobre o ex-cap art Morais da Silva disse o Vasco Pires: Cheguei a Gadamael Porto, lá por meados de 70 para assumir o comando do 23° PelArt, encontrei uma Companhia em fim de comissão, comandada pelo então Capitão de Artilharia Rodrigues Videira, que logo nos primeiros dias me falou da importância da disciplina em zona de guerra. Logo em seguida veio uma Companhia de Infantaria, comandada pelo saudoso Capitão de Infantaria Assunção Silva, morto em combate, intrépido oficial altamente disciplinado e disciplinador, que foi substituído pelo então Capitão de Artilharia António Carlos Morais Silva, sobre o qual já falei neste blog, como um dos mais brilhantes Oficiais do Exército Português que conheci, nos meus três anos de serviço" (...)


1. Mensagem de hoje, nosso camarada e novo grã-tabanqueiro Vasco Pires, que vive no Brasil [, foto atual, à direita]:
 

Caros Luís Graça e Carlos Vinhal,

Fico muito grato, pela fraternal acolhida nesta Grande Tabanca, que abriga as alegrias e dores de uma geração, batizada com suor sangue e mosquitos, nas águas escuras dos deltas de rios da África Ocidental. 


Mais uma vez, expresso a minha admiração pela sabedoria como toda a equipe editorial magistralmente administra tantas emoções,  por vezes extremadas, de um tempo só cronologicamente distante.

Forte abraço

Vasco Pires



2. Sobre o 
Vasco Pires (e o Manuel Vaz) disse o seguinte o cor art ref Morais da Silva (que eu espero que não furioso comigo por quebrar o sigilo de um mail privado...):

Boa noite: Muito obrigado pelo alerta [, em relação ao poste P10443],  A foto que refere [, vista aérea de Gadamael,] foi cedida ao Martins Vaz que levou a cabo o levantamento da "história" de Gadamael e que, para esse trabalhão, me solicitou a dar-lhe conta do que era Gadamael no período do meu comando em 1971/72.

O Vasco Pires foi o meu alferes artilheiro. Empenhado, eficaz e corajoso. Uma das minhas "muletas" que a minha memória muito preza.

Abraço, 

Morais Silva


3. Comentário do Vasco Pires, em resposta ao anterior:
 

Caro Luís Graça:  

Fico agradecido, pelo teu e-mail. Mais de quarenta anos depois, ler as generosas palavras do seu 'commanding officer', perdoa-me o anglicismo, da estatura do Coronel Morais Silva, é ainda uma forte emoção.

Só me resta também agradecer a tua dedicação, e da tua equipe de editores, que mantem vivo um tempo, que marcou para o bem e para o mal, a vida de tantos de nós.
 
Forte abraço
VP

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Nota do editor:
 
Último poste da série > 21 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10418: Blogoterapia (217): Mário Tito, aliás, Mário Serra de Oliveira, camarada da diáspora, está disponível, em 27 de outubro, no lançamento do seu livro, ou então na 1.ª quinzena de novembro, para estar com os camaradas de cá, para "papiar crioulo" e "parti mantenha e lembra tempo di tuga"