segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10757: (Ex)citações (203): O "fado das comparações"... ou o humor sarcástico do Cancioneiro do Niassa (Luís Graça)

1. Comentário de L.G. ao poste P10754:

Camarada Rosinha, já que se evocou aqui (mal, segundo as regras deste blogue...) os "chicos", que são igualmente filhos de Deus e nossos camaradas (e todas generalizações serão sempre abusivas, nesta como noutras matérias...), e já que tu próprio, sempre oportuno, foste buscar (ou reforçar) a questão das similitudes e das diferenças entre "tugas" de Angola e de Moçambique (ainda há dias estive com o Mia Couto, no aeroporto de Lisboa...), toma lá mais esta... Neste caso, esta "canção do Niassa":

Fado das Comparações

Que estranha forma de vida!
Que estranha comparação!
Vive-se em Lourenço Marques, (Bis)
Cá arrisca-se o coirão!

Vida boa, vida airada!
Boites, é só festança!
Lá não se fala em matança, (Bis)
Nem turras; há só borgadas.

Niassa, pura olvidança!
Guerra, como és ignorada!
Conversa que é evitada, (Bis)
P'los que vivem n'abastança!

Falar na nossa desdita
Fica mal e aborrece!
E como lembrar irrita, (Bis)
Toda a gente a desconhece!

Ao passar pela cidade,
Com tanta tranquilidade,
Deu-me para] comparar, (Bis)


Meninas com mini-saias!
Mandai-as p'ras nossas praias
P'ra manobra de atacar! (Bis)

Pipis com carros GT's, [Ou: Hippies com carros GT's]
Mandai-os para as Berliets,
Tirai-lhes as modas finas; (Bis)


Melenudos efeminados
Eram bem utilizados
P'ra fazer rebentar minas! (Bis)

Bem como essas tais meninas
Que, apesar de enfezadinhas,
Mas com ar da sua graça, (Bis)


Serviriam muito a jeito
Para acalmar a dor do peito [Ou: Para aliviar a dor do peito]
Cá da malta do Niassa. (Bis)

Mas não, só por pirraça,
Hão-de lá continuar!
E nós temos de lerpar, (Bis)


Invertem-se as posições,
E trocam-se as situações,
Continuamos a aguentar! (Bis)

Nós, sem sermos desejados,
Ficamos cá apanhados,
Aos urros, num desvario! (Bis)


Eles, os daqui naturais,
Gastando dinheiro aos pais,
Vão para o Matola Rio! 

[Ou: Vão p'ra a puta que os pariu!]

Acabe-se com a tradição,
Entre-se em mobilização,
Utilize-se a manada!  (Bis)


Dentro de poucas semanas,
Como quem come bananas,
Estará a Guerra acabada. (Bis)



Gentileza da página na Net do Joraga [José Rabaça Gaspar], que inseriu a gravação áudio, com a  voz do João Paneque, na Rádio Metangula, em 1970 [Clicar aqui para ouvir]... Essa  versão tinha a seguinte introdução:

"Este é um fado que compara algumas coisas que se passavam. Não é um fado para ofender, e era cantado em ambientes muito particulares e com público esclarecido! De resto, como todo o cancioneiro, sobressai sempre o aspecto humorístico com que todos os  temas são abordados". 
  
Fonte: Reproduzido de Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, I Série > 11 de maio de 2004 > 11 Maio 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1) 

2. Comentário de L.G.: 

A música deste fado, do Cancioneiro do Niassa,   é a do clássico  fado Estranha forma de vida (Letra e música: Alfredo Duarte e Amália Rodrigues). No entantato, a segunda parte parece-me ser a do Embuçado , precisarei de tempo para confirmar.

Mas o que importa agora é a  letra: sarcástica, parodia a privilegiada condição dos colonos moçambicanos e dos seus filhos e filhas, condição que, vista de Metangula, no lago Niassa,   deveria   uma das  contradições daquela guerra, difíceis de (di)gerir:  de facto,  dificilmente se poderia convencer um soldado metropolitano que estava a defender o chão sagrado da Pátria, quando do inferno do Niassa se olhava para  o bem-bom de Lourenço Marques...Em todo o caso, é bom não esquecer que houve moçambicanos, filhos de colonos brancos, que morreram em combate no TO da Guiné: caso do nosso camarada Mário Sasso, por exemplo.

Noutro registo, era o mesmo tipo de crítica que nós fazíamos na Guiné - nós, os operacionais, a carne para canhão - aos mais privilegiados, não os colons que praticamente não os havia, mas sim a rapaziada da guerra do ar condicionado, instalada no relativo conforto e na precária segurança de Bissau... 

Recorde-se que na Guiné não havia colonos brancos, a única empresa que se podia chamar colonialista era a Casa Gouveia, ligada à CUF - Companhia União Fabril, mas que ficou praticamente inactiva com o início da guerra, reduzida a muitos poucos entrepostos no mato (em Bambadinca, ainda havia um, no meu tempo, 1969/71).

Acrescente-se que o léxico do combatente de Moçambique e da Guiné tinha muitas coisas em comum: por ex., a palavra lerpar que era utilizada pelas nossas tropas, nos dois TO, com o mesmo sentido de perda: morrer, ser ferido, perder qualquer coisa (por ex., ao jogo da lerpa), apanhar uma 'porrada' (castigo), ser escalado, etc. 


[Imagens acima: Cortesia da Wikipédia. A distância da capital, hoje Maputo, ao Niassa, é de 2800 km... Matola é hoje cidade e município,  capital da província de Maputo. É também nome de rio que desagua na baía do Maputo.]
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10756: Agenda cultural (239): O grã-tabanqueiro, nova-iorquino, João Crisóstomo, é um dos "Portugueses Pelo Mundo", retratado no livro que será apresentado hoje, 2ª feira, dia 3, às 18h30, na FNAC - Chiado


1. Excerto da página Cultura FNAC, reproduzido aqui com a devida vénia...

O livro "Portugueses pelo Mundo" será apresentado na FNAC Chiado, hoje, às 18h30,  em Lisboa, por Erick Andrade, Luís Flipe Borges e Raquel Ochoa,

 João Crisóstomo, nosso camarada de armas, e membro da nossa Tabanca Grande, a viver em Nova Iorque desde 1975, é um dos retratados no livro.

Recorde-se o que sobre ele já aqui se escreveu:

 (...) "O João Crisóstomo é um português das Arábias....Um dos muitos camaradas nossos que, depois do regresso da guerra, fez-se à vida, e quis conhecer o mundo largo e farto...Que na casa materna, a nossa Pátria, não cabiam todos...ou só cabiam alguns. A história, invulgar, deste nosso camarada, vim a descobri-la na Net... Confirma-se que é um militante de causas nobres (Gravuras Rupestres de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, autodeterminação de Timor Leste e do Sahara Ocidental)" (...)

Foi o primeiro a inaugurar a nossa série dos Camaradas da diáspora... 

Em julho de 2010, ele foi descoberto pela equipa da RTP, responsável pelo programa "Portugueses pelo Mundo":

(...) "Com 10 milhões de habitantes, Nova Iorque é a 'capital do Mundo', onde convergem todas as culturas que fazem desta cidade a mais internacional dos Estados Unidos da América. Viajamos até à 'cidade que nunca dorme', para absorver a sua influência no que diz respeito ao comércio mundial, às finanças, à cultura, à moda e ao entretenimento. É impossível ir a Nova Iorque e ficar-se indiferente, por isso vamos conhecer os sítios mais emblemáticos que tão bem contrastam com o ritmo alucinante duma cidade que nunca dorme. (...) Subimos para uma carruagem e recuamos para o tempo em que João Crisóstomo foi mordomo de Miss Jacqueline Kennedy Onassis. Hoje, com 65 anos, leva-nos a conhecer a Grand Central Station e outros pontos de interesse, onde encontra referências de Portugal." (...) 

O respetivo vídeo está aqui disponível no You Tube

2. O João Crisóstomo,  este português  que nos orgulha enquanto tal,  e também como nosso camarada da Guiné, é uma caixinha de surpresas... Ainda hoje, de manhã, a falar ao telefone, soube que a produtora, Teka 2000,  do filme "Aristides Sousa Mendes, o cônsul de Bordéus", em exibição nos cinemas, lhe agradeceu, a ele, pessoalmente, o apoio (financeiro) que, através dele, foi conseguido nos EUA para ultimar o filme... Eu já vi o filme, mas escapou-me este pormenor: a lista de agradecimentos é enorme...


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Ver aqui o trailer oficial do filme, disponível no You Tube...

Sobre o filme, escrevi no Cinecartaz do Público (24/11/2012)

"Luís Graça > Uma mensagem libertária, sempre atual

"Vi ontem o filme, e aconselho... Primeiro, é português, e devemos ter orgulho no que fazemos, no que é português, mesmo não sendo uma obra-prima... Segundo, é sobre um grande português que nos reconcilia com Portugal, sobretudo nestes tempos em que andamos tão zangados, connosco próprios, com as nossas elites, com o rumo da nossa história...

"Há uma mensagem libertária na história de vida do Aristides Sousa Mendes, e que continua sempre atual: Às vezes é preciso saber desobedecer, em nome de valores que não têm preço: "Prefiro estar com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus"... O cônsul de Bordéus referia-se ao cumprimento, cego e burocrático, da infame Circular 14, emitida por Salazar, e que proibia a concessão de vistos, pelo pessoal dos consulados e embaixadas, a certas categorias de refugiados onde se incluíam os judeus... (alguns dos quais de origem portuguesa)"... 




3. O João acaba de me mandar este mail, às 13h05:

(i) Como mencionei pel telefone,   a Marcador Editora lança hoje um livro interessante baseado no programa da RTP1 - Portugueses pelo Mundo  (que no momento actual de alguma maneira lhes chamou a atenção).  Nada de especial a meu respeito, salvo eu estar também aí mencionado. O convite que me mandaram é suficientemente infomativo.

(ii) Já que mencionaste o filme sobre ASMendes ( que acaba de ganhar um prémio em Coimbra,  no festival de filmes portugueses, como me informaram),  estou muito contente pois de alguma maneira também ajudei embora muito modestamente no estágio final do seu seu acabamento. Os produtores de alguma maneira reconheceram isso, mencionando o meu nome na lista final de agradecimentos.

(iii) Uma vez que vocês gostam de estar a par destas curiosidades, vou-lhes enviar algo mais brevemente. Mas para hoje chega, que tenho de ir tabalhar...
Abraço grande, João.


4. Convite  enviado pela editora ao João Crisóstomo, em 26/11/2012: 


PORTUGUESES PELO MUNDO - Livro

Estimado(a) Senhor(a),

É com um prazer enorme e grande entusiasmo que a MARCADOR EDITORA lhe vem dar conhecimento do nosso mais recente projecto: o livro baseado no programa da RTP1 que contou com a sua participação - PORTUGUESES PELO MUNDO.

Em parceria com a RTP1 e a Eyeworks (produtora do programa) registámos em livro as maravilhosas experiências de compatriotas que decidiram mudar a sua vida e abraçar uma outra geografia em busca de uma aventura ou de uma nova oportunidade. O objectivo é, não só, divulgar a experiências destes homens e mulheres, os seus testemunhos, as suas sugestões e as suas melhores dicas, mas também, mostrar a quem tiver a oportunidade de ler este livro que também poderá fazer o mesmo.

Como tal, a sua participação no programa foi citada neste livro, que será lançado no dia 3 de Dezembro pelas 18h30 na FNAC Chiado, evento para o qual muito nos honraria a sua presença (ou de um seu representante, amigo e/ou familiar).

Para além das livrarias nacionais, o livro poderá ser encontrado on line, através do site:
http://www.presenca.pt/livro/portugueses-pelo-mundo/

Assim reiteramos o nosso mais sincero obrigado pela sua participação neste projecto, que em muito nos honra poder participar.

Atenciosamente,

João Gonçalves | Publisher
joao.goncalves@marcador.pt

M +351 96 965 48 99 | T +351 21 434 70 80
Estrada das Palmeiras, 59 | Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena

Facebook: https://www.facebook.com/marcadoreditora
Site: www.marcador.pt

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Nota do editor:

Último livro da série > 28 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10733: Agenda cultural (238): Histórias da guerra colonial, com Jaime Froufe Andrade e Onofre Varela, no Centro Republicano e Democrático de Fânzeres, Gondomar, 30 de novembro, 6ª feira, 21h30 (Juvenal Amado / Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P10755: (In)citações (46): O cadete Lima, do último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra, em 1964, a juventude do império... (Rui A. Ferreira)

1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Rui Alexandrino Ferreira,  autor de Rumo a Fulacunda, e que foi alf mil inf na CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67) e cap mil inf na CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72)...

De acordo com a nota biográfica da sua editora, a Palimage, nasceu em Angola, em 1943, e em 1964 "integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império. 1965 - Rende, na Guiné-Bissau, um desaparecido em combate. 1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau. 1973 - Regressa a Angola em outra comissão. 1975 - Retorna a Portugal. 1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. Rumo a Fulacunda é a sua primeira obra literária".


Data: 3 de Dezembro de 2012 01:40

Assunto: O cadete Lima

Aqui vai um abraço muito especial ao meu ilustre camarada de recruta e especialidade, meu companheiro e meu amigo, Adriano Miranda Lima [, foto à direita, em baixo], um dos nossos últimos Tertulianos, de quem tenho a grata recordação dum passado que, tendo decorrido num período muito especial da nossa vidas, num rumo comum que tendo tido por palco a Escola Prática de Infantaria, em Mafra, onde ambos, incluídos no Pelotão dos Ultramarina versão literária e a terminologia filosófica do homem aranha, perdão do  Capitão Aranha, nos vimos, isso sim, em palpos de aranha para aguentar toda aquela imensidão de grandes cabeças que tinham jurado a pés juntos cumprir a execrável missão de fazer daquela seita de mal jeitosos cadetes a fina flor  da oficialidade miliciana.os e naquela que passou à história como a companhia segunda do Curso de Oficiais Milicianos, segundo 

Pois, meu caro cadete Lima (, a ti e ao coronel com o mesmo nome e já que um coronel não é mais que um cadete que não morreu), os meus mais sinceros votos para que sejas muito bem vindo e que te dês entre nós muito bem, fazendo parte desta grande família que é a rapaziada do blogue do Luís Graça.

Com a muita amizade e a consideração do

Cadete Rui A. Ferreira
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10715: (In)citações (45): Carlos Guedes e Teco com livro sobre a CCAÇ 726, em preparação (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P10754: Notas de leitura (436): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
O Sargento-Mor Paraquedista Manuel Godinho Rebocho tem uma versão muito peculiar das razões subjacentes ao 25 de Abril. Houve para ali como que uma luta surda de classes entre oficiais do conforto, gente do quadro permanente, e oficiais milicianos com provas dadas no terreno, na génese de uma guerra corporativa que foi ultrapassada pelo turbilhão das frentes da Guiné e Moçambique, as duas fações coligaram-se para apoiar a solução política anunciada por Spínola.
Tudo quando se passou ao 25 de Abril tem o rastilho dessa luta surda de classes onde se moveu e saiu triunfante a malta emocionalmente impreparada para as guerras de África e genericamente responsável por tudo quanto ali se passou.
Por favor, leiam “Elites Militares e a Guerra de África” para fundamentarem a vossa opinião sobre o 25 de Abril até agora desconhecido.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra (3)

Beja Santos

Chegámos a um ponto crucial das teses enunciadas pelo doutor Rebocho na sua prova de doutoramento que vieram a ser publicadas com o título “Elites Militares e a Guerra de África”. Os postulados são os seguintes. Estamos a caminhar a passos largos para os acontecimentos do 25 de Abril. Ele dá-nos o contexto: a partir de 1973, a guerra tornou-se mais violenta do que nunca; os oficiais do quadro permanente afastaram-se do teatro de operações, confinaram-se à gestão militar, a ministrar instrução, entregues à burocracia nas repartições. Os capitães milicianos tornaram-se na matéria-prima essencial, eles e os alferes milicianos, sobretudo, mas há que contar também com os furriéis milicianos. Por esta altura, o quadro especial de oficiais já não pode ser ignorado. Estala uma tensão profunda entre os operacionais que se mostram mais abertos à descolonização e os oficiais do quadro permanente a favor da presença portuguesa em África. E cita Dinis de Almeida: “A iminência de uma derrota na Guiné, criara condições para uma melhor implantação e influência do MFA que encontrava no estrato miliciano alguns dos seus mais sólidos aderentes (aí já se chegara mesmo ao ponto de entregar quase em exclusivo aos oficiais milicianos o comando das companhias operacionais).”. E documenta com a ira dos colonos da faixa central de Moçambique, profundamente desorientados com a morte da mulher de um fazendeiro europeu, em Vila Manica, distrito de Vila Pery. A comunidade branca apedrejou a messe de oficiais, esta comunidade branca, segundo o doutor Rebocho, era o alvo das seguintes quadras: "Vai para o mato,/ Chico malandro./ Por tua causa,/ É que eu aqui ando./ É que eu aqui ando./ É que eu aqui ando./ Estou farto deles,/ Da chicalhada./ Só mandam vir,/ E não fazem nada./ E não fazem nada./ E não fazem nada”.

E seguem-se os números: “Ao apreciar a lista de antiguidades dos oficiais do Exército do quadro permanente, reportada a 1 de Janeiro de 1974, verifica-se que existiam 1566 capitães de carreira, dos quais 938 da Escola do Exército e destes 471 eram de Infantaria, 183 de Artilharia e 105 de Cavalaria, os restantes eram de Armas e serviços não combatentes. Além destes, existiam 74 capitães do QEO, o que perfazia 833 capitães cujas funções deveriam ser as de comandante de companhia. No início de 1974, existiam no conjunto dos três teatros de operações, 410 companhias operacionais (…). Os capitães das armas combatentes eram mais do dobro das companhias existentes na guerra de África. Se todos os capitães comandassem companhias, função para efetivamente existem, e se permanecessem na Metrópole durante o mesmo período de tempo que no comando de companhias em África, todas elas poderiam ser comandadas por capitães de carreira. Mas não seria de exigir tão grande esforço, consideremos apenas metade, o mesmo é dizer que metade das companhias operacionais em África deveriam ser comandadas por capitães de carreira, o que não aconteceu. Ao contrário, formavam-se anualmente 260 capitães milicianos, ou 520 durante os 2 anos de uma comissão normal”.

E assim chegamos ao 25 de Abril, o último ato, segundo o autor do Decreto-Lei nº 353/73, de 13 de Julho, que criara condições para o ingresso dos capitães milicianos no quadro permanente. Revogada a legislação, as movimentações de caráter corporativo entraram numa espécie de luta entre os puros (os do quadro permanente) e os espúrios (milicianos). Spínola irá aparecer como o protetor dos milicianos e Costa Gomes o dos do quadro permanente. O manto diáfano das manifestações era a procura de uma solução política para a guerra de África. E depois o autor disserta sobre as particularidades dessas movimentações, matéria largamente conhecida mas que leva o doutor Rebocho a uma nova espiral de descobertas: o golpe de Estado militar teve à frente Andrade Moura, proveniente dos milicianos, e não Salgueiro da Maia, do quadro permanente. E está ali bem escrito, para que o leitor não entre em equívocos: “O capitão oriundo de miliciano, Andrade Moura, e o sargento Silva Brás, foram os homens decisivos do golpe militar, sem o contributo dos quais tudo se teria desmoronado”. Andrade Moura deu esclarecimentos sibilinos ao doutor Rebocho: “A arma de cavalaria não estava com a Comissão Coordenadora do MFA, mas com Spínola”. Costa Gomes, vem escrito, teve um procedimento caviloso, nem o Cardeal Richelieu se lembraria disto: “Costa Gomes sabia que, pelo menos por algum tempo, o poder ficaria nas mãos dos militares. Com a nomeação de uma Comissão totalmente fiel, preferiu liderar as forças armadas através do cargo de CEMGFA, lugar que reservou para si. Foram estes dois momentos, a nomeação da Comissão e a do CEMGFA, passados na noite de 25 para 26 de Abril, que derrotaram Spínola, provocando todos os acontecimentos seguintes, e definindo não só o futuro de Portugal, como dos territórios africanos”. Como não podia deixar de ser o golpe Palma Carlos, o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro foram altamente condicionados pelas tensões existentes entre os que acreditavam nas teses de Spínola e os que se escudavam atrás de Costa Gomes.

Chegou a hora das conclusões, depois de tanta investigação científica. Fica-se a saber o seguinte: a formação dos quadros combatentes à base de milicianos (oficiais e sargentos) constitui o maior erro praticado na condução da guerra de África, as autoridades tinham sido prevenidas e até andou por Portugal o Marechal Montgomery que alertou para a obrigação dos generais portugueses comandarem tropas; aquela guerra para ser ganha, ou ter um destino diferente da que teve, requeria oficiais com capacidades pessoais, com inteligências específicas (caso da inteligência emocional) e não só os conhecimentos adquiridos no curso para oficial; os oficiais do quadro permanente afastaram-se da guerra, muitos deles por falta de vocação e motivação profissional.

Tudo somado e conjugado, chegámos ao ponto alto da tese: “Acontecimentos motivados não por razão de ordem social, mas pelas qualidades do desempenho da guerra de África, o que determinou que os oficiais operacionais, do quadro e milicianos, seguissem o general António de Spínola, enquanto os oficiais ‘básicos’ seguiram o general Costa Gomes. As designações de esquerdistas, comunistas, moderados, direitistas e fascistas, não correspondiam assim, em minha opinião, aos comportamentos substantivos dos militares. Conforme demonstrei, os conflitos intramilitares tiveram basicamente as suas origens nas vocações e motivações que determinaram a qualidade do respetivo desempenho e o comportamento demonstrado, por sua vez derivado dos erros do processo de formação militar”.

O doutor Rebocho despede-se do leitor com o desejo que a sua investigação suscite novos trabalhos e possa contribuir para conhecer melhor a instituição militar e ajudar à elevação da sua eficácia e da sua dignidade, através de processos de seleção, recrutamento e formação consequentes com os valores que devem presidir à existência e continuidade das Forças Armadas.
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores desta recensão de:

26 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)
e
30 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10740: Notas de leitura (433): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10752: Notas de leitura (435): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (2) (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P10753: Convívios (484): Jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos, dia 8 de Dezembro de 2012, na Junta de Freguesia de Bonfim - Porto

Vai realizar-se no próximo dia 8 de Dezembro de 2012, pelas 20h30, o tradicional jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos, que será antecedido, pelas 19h30, da Assembleia Geral Ordinária da "Tabanca Pequena - Grupo de Amigos da Guiné-Bissau - ONGD".

Conforme o programa que se publica, os dois eventos terão lugar no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Bonfim (ao Campo 24 de Agosto), Porto.


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10703: Convívios (483): A Magnífica Tabanca da Linha: la vie en rose... Ainda dizem que há crise, pá!... (Fotos: Manuel Resende; legendas: JD/LG)

domingo, 2 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10752: Notas de leitura (435): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 29 de Novembro de 2012:

Meus amigos,
No seguimento do meu anterior "post" sobre o livro de Patrick Chabal " Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war", remeto-vos a 2ª parte da recensão, acompanhada por uma fotografia do autor.

Cordiais cumprimentos
Francisco Henriques da Siva
(ex-Alf. Mil. de Infantaria da C.Caç. 2402)


Amílcar Cabral – o líder revolucionário (2/2)

(continuação)

O autor detém-se na análise do Congresso de Cassacá (1964) que visou reorganizar a estrutura militar, reformar e disciplinar o partido, reduzir a autonomia de certos grupos, coarctar os abusos de poder, exercer um firme controlo político sobre a condução da luta armada (a principal questão de fundo) e, finalmente, a organização civil das áreas libertadas. Todavia, o líder do PAIGC e o Congresso reconheceram, igualmente, a existência de outras questões relevantes: a etnicidade (ou seja, a fraca adesão dos fulas aos ideais da guerrilha, antes alinhando com as teses portuguesas) e problemas de índole cultural que suscitavam óbices à prossecução da luta.

Os êxitos diplomáticos devem ser evidenciados, ao longo de todo o período de luta e em especial na recta final, referimo-nos ao início da década de 70. Leia-se: o reconhecimento do PAIGC, como único representante do movimento nacionalista da Guiné-Bissau, a nível da OUA; as declarações em diferentes instâncias da ONU; o apoio dos países socialistas e outros (Suécia, por exemplo) à causa independentista; a audiência concedida pelo Papa Paulo VI em Agosto de 1970 e o respaldo político internacional generalizado a uma eventual declaração de independência.

Todo o período que medeia entre Congresso de Cassacá (1964) e a declaração unilateral de independência (Setembro de 1973) consiste numa escalada da guerra, em que o PAIGC obtém importantes êxitos e o dispositivo militar português é expressivamente reforçado. Não obstante, o advento de um novo governador em 1968, António de Spínola e a implementação da sua politica “Por uma Guiné melhor” era potencialmente mais perigoso que qualquer resposta militar musculada, num conflito que foi sempre considerado como sendo de baixa intensidade, na medida em que se tratava de uma política de aliciamento e conquista das populações que punha em risco, essa sim, os objectivos do PAIGC (cfr. p. 94).

A guerra envereda nos últimos anos (1971-1973) por uma senda de maior agressividade. Sem embargo, o “PAIGC não procurava uma vitória militar uma vez que Cabral estava convencido de que seria demasiado pesada em termos de vidas humanas” (v. p. 95). Também, numa fase posterior, a propósito de uma hipotética vitória militar total Manuel dos Santos (Manecas) concorria, ponto por ponto, com a mesma opinião: “Não acreditávamos realmente numa vitória militar total” (v. p. 104). Todavia, nesta fase e tendo em conta o território que alegadamente dominava, bem como a população sob o seu controlo, o PAIGC já se considerava um partido-Estado.

O autor refere-se invariavelmente ao ideário político, à intensa actividade intelectual e à visão estratégica do líder do PAIGC, mas não se refere às suas qualidades militares. É, pois, legítimo concluir que Cabral deixava tudo isso aos operacionais no terreno, limitando-se apenas a orientá-los politicamente. Não era um militar, nem o que podemos considerar um “duro”, mas alegadamente um homem tolerante. Sabe-se, por exemplo, que Cabral, condescendente por natureza, opunha-se à pena de morte e à prisão perpétua e que, muitas sentenças dos tribunais populares neste sentido, não foram executadas.

É interessante notar que as eleições de 1972, na clandestinidade, obviamente, que visavam legitimar e consolidar o passo seguinte – a independência – “devem ser encaradas como a primeira tentativa para o estabelecimento de uma significativa separação e equilíbrio político entre o partido e o Estado” (p. 127). Quanto ao assassinato de Amílcar Cabral, Chabal explana as diferentes teses que correm sobre o assunto, designadamente as dissensões entre a elite política cabo-verdiana e os guerrilheiros guineenses que estariam na origem do crime, mas, após uma extensa explicação, acaba por concluir “não existirem provas que sugiram que a alegada divisão entre guineenses e cabo-verdianos era um tema politicamente saliente no partido” (p. 140), argumentando, ainda, que o golpe de Estado de 1980 não teria nada que ver com o citado antagonismo inter-étnico. Opinião com a qual discordamos inteiramente, não só pela análise de factos históricos subsequentes, mas pela circunstância, aliás reconhecida pelo autor de que a “política da integração da Guiné e Cabo Verde num país unificado, consagrada no programa partidário de 1956, era uma ideia exclusiva de Cabral” (p. 162) . Mais. O autor conclui, inequivocamente: “além disso, emerge agora que nem os cabo-verdianos nem os guineenses estavam plenamente preparados para a unidade” (p. 163).

Para além da narrativa biográfica, Patrick Chabal que estudou outros processos revolucionários de luta armada anticolonial em África, sobretudo em Angola e Moçambique suscita a questão essencial de se se saber por que razão é que a luta do PAIGC obteve maior êxito que a dos seus congéneres marxistas MPLA e FRELIMO. O autor pensa que aquele partido dispunha de importantes vantagens à partida: em primeiro, lugar, os demais movimentos nacionalistas guineenses desapareceram ou eram irrelevantes; em segundo lugar, existia uma organização melhor estruturada e uma mobilização mais generalizada do campesinato na Guiné em prol da guerrilha, susceptível de diluir as diferenças étnicas existentes e de estabelecer laços mais consistentes de unidade nacional; em terceiro lugar, subsistia um controlo político real de toda a actividade militar e, finalmente, o PAIGC estabeleceu uma administração minimamente eficaz nas áreas libertadas. Poderíamos ainda acrescentar que em contraste com os outros movimentos emancipalistas das ex-colónias portuguesas, o PAIGC dispunha de inegáveis trunfos diplomáticos que os demais não desfrutavam. Estes factores de diferenciação em relação aos outros movimentos de emancipação têm de ser sublinhados, estão na base do respectivo êxito e devem-se, em larga medida, à liderança de Amílcar Cabral. Por razões que o livro não adianta, nem poderia adiantar uma vez que não envereda pela futurologia, a evolução seria outra, já patente, porém, na gestão de Luiz Cabral e no golpe de Estado de “Nino” Vieira (golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980) a que Chabal alude de passagem.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10745: Notas de leitura (434): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (1) (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P10751: Tabanca Grande (370): Adriano Lima, cor inf ref, residente em Tomar, natural do Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde, grã-tabanqueiro nº 590

1. Mensagem do novo membro da Tabanca Grande, nº 590 (*), Adriano Lima, com data de 23 do mês passado:

Amigo: (...) 
Em mail anterior, respondi-lhe que é com imenso gosto que serei um tabanqueiro, ainda que nunca tenha estado na Guiné. Pois já vi que a Tabanca não tem apenas a ver com o chão guineense e com a memória de que são portadores os que lá andaram. É também um amplo espaço de encontro e partilha do que temos de mais belo e puro na nossa humanidade. Por isso, conte comigo. Desejo saber se tenho de fazer alguma coisa de concreto.


Tencionava enviar-lhe este texto sobre o espírito de solidariedade dos militares, uma vez que o seu saudoso pai é uma das suas figuras centrais (**).

Um abraço
Adriano



2. Recordo aqui o texto do Adriano Lima que publicámos no poste P9421, de 30 de janeiro p.p.:


(...) Sou Adriano Miranda Lima, coronel reformado, residente em Tomar, e nascido em Cabo Verde, S. Vicente. Não estive na Guiné, apenas em Angola e Moçambique.

Tive acesso ao seu blogue e só tenho razões para o felicitar efusivamente por esta belíssima e interessante iniciativa. Revisitar estas saudosas memórias é recolocar a história no seu devido lugar e com ela reencontrar-se num abraço fraterno em que o coração se dá inteiro.

Como servi longos anos no RI 15 [, Tomar], aliás, a minha unidade de colocação, após o termo das comissões no ex-Ultramar, acompanhei sempre o convívio dos antigos expedicionários mobilizados pelo Regimento. Algumas vezes coube aos expedicionários do RI 15 a organização do convívio, com participação dos camaradas de outros regimentos e unidades mobilizadoras. Cada "regimento" organizava o convívio de todos os que serviram em S. Vicente. 

Com o meu apoio pessoal, sendo eu então major, por duas vezes o convívio realizou-se no meu Regimento, em Tomar, e numa das vezes ele foi integrado nas comemorações do Dia da Unidade. Noutra ocasião, foi num restaurante em Tomar, e também estive presente, por simpático convite do elemento organizador, Sr. Francisco Lopes (Chico Concertina), infelizmente falecido há cerca de 4 anos. Dava-me muito bem com ele, e era sogro de um amigo meu, advogado.

Se estiver interessado em saber alguma coisa sobre o Batalhão que saiu de Tomar, terei o maior gosto em prestar informações ao blogue. Por acaso, publiquei um artigo num jornal online, sobre a memória desse batalhão.

Há um blogue chamado "Praia de Bote" (nome de um local de S. Vicente), em que tenciono publicar uns posts sobre as forças expedicionárias a Cabo Verde. Como tenho poucas fotos, queria pedir a sua autorização para me servir das que constam do seu blogue respeitantes ao BI 5, que eram do seu pai. Apenas como ilustração. Naturalmente que me refiro a fotos de carácter genérico, não pessoais.

Apraz-me também registar o afecto e a admiração com que cultiva a memória do seu pai neste Blogue. (...)



[Foto acima, à direita: Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Monte Sossego > c. 1941-1945 > "Peça de 9,4 cm de uma das duas antigas baterias de artilharia anti-aérea de Monte de Sossego (Foto oferecida pelo filho de um antigo oficial que serviu, à época, em Cabo Verde)" [Legenda: Adriano Miranda Lima] [Foto reproduzida aqui com a devida vénia...]
 

3. Relembro igualmente a resposta que dei na altura:

(...) "Adriano, muito obrigado pelo seu comentário, pelo seu elogio ao nosso blogue, mas também pelo seu pedido. Começando por este, disponha das fotos do meu pai, para os efeitos que julgar convenientes, citando sempre, naturalmente, o nosso blogue. Temos, aliás, mais fotos de mais outros dois expedicionários, na série Meu pai, meu velho, meu camarada, nomeadamente do Ângelo Ferreira de Sousa e do Armando Lopes [... e ainda do Feliciano Delfim dos Santos, embora este tenha não tenha estado em São Vicente, mas sim em Santiago, Santo Antão e Sal].

"Todos temos o dever de memória, deixando às gerações seguintes notícias sobre a nossa passagem por este planeta que é único, o berço da humanidade, é a nossa casa, ou é a aldeia onde todos somos vizinhos... Cabo Verde e Portugal têm uma longa história em comum, além de uma língua. Eu tenho um especial afeto por São Vicente e, em particular, pelo Mindelo que um dia destes espero poder finalmente conhecer ao vivo. (Não conheço Cabo Verde, de todo: estive apenas uma escassa hora ou duas no Sal, em paragem técnica do avião da TAP que me trouxe de férias, de Bissau a Lisboa, em 1970).

"Transmiti, este fim de semana, ao meu pai, Luís Henriques, a caminho dos 92 anos [, que não chegaria a completar por ter morrido a 8/4/2012,]  o seu interesse e o seu pedido. Até aos 80 anos, costumava ir ao convívios anuais da malta de Cabo Verde. Disse-me que nunca foi ao RI 15 (Tomar), a nenhum dos convívios dos antigos expedicionários, já que ele pertencia ao RI 5 (Caldas da Rainha). Em todo o caso, lembra-se bem das jogatanas de futebol, no Lazareto, entre uns e outros. Como também se lembra da epidemia de fome que assolou as ilhas, no tempo em que lá esteve (1941/43). O seu "impedido", o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer-me que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (c. de 16$00) - na altura, estava hospitalizado -, para ajudá-la nas despesas do enterro.

"Desejo-lhe, por fim, meu caro Adriano, a si e aos seus amigos, todo o sucesso na defesa do património daquela terra mágica, o Mindelo, berço de grandes poetas, músicos e cantores." (...)



4. Sobre o nosso novo grã-tabanqueiro, escreveu em 24/2/2012 o Manuel Amante da Rosa, também, seu patrício, nosso camarada de armas no TO da Guiné, e embaixador do seu país:

(...) Caro Luís: Não conheço o Adriano de vista mas sim do muito que tem escrito sobre Cabo Verde. Temas que também são prioritários das minhas investigaçõe: Defesa, segurança, energias renováveis, administração.

Mas somos aparentados através do meu irmão que é cunhado dele. Conheço quase todos os irmãos.
Conheci muito bem na Guiné o Tio dele Jorge de Miranda Lima e a Lurdes. O primeiro foi um entusiasta nacionalista, da primeira hora, tendo passado muitos anos preso no Tarrafal. Foi solto somente uns anos depois do Spínola ter estado na Guiné, juntamente com uns outros cinquenta presos políticos guineenses. Se o Capitão Basto Machado estiver vivo talvez possa relatar algo ou indicar algum outro camarada da sua Unidade que o possa fazer. Um forte Abraço, Manuel" (...)





Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > O Paquete Mouzinho. [A foto, tipo postal, parece-me ter sido tirada no Funchal, Madeira; mas foi neste navio que o 1º cabo inf Luís Henriques e outros expedicionários do RI 5, das Caldas da Rainha, rumaram para Cabo Verde, em meados de 1941].

Foto: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



5. Em 7 de outubro p.p., eu já lhe tinha, ao Adriano Lima, enviado um convite para ingressar na Tabanca Grande, dado o seu manifesto interesse pela história dos nossos expedicionários em Cabo Verde durante a II Guerra Mundial:

(....) "Caro camarada: Tomei a liberdade de reproduzir dois dos seus comentários (e mais alguns dos seus apontamentos publicados no blogue Praia do Bote)...


"Reitero o meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande. Juntos podemos fazer força no sentido da salvaguarda do património da Ilha de São Vicente, natural e cultural, incluindo os restos da presença dos militares portugueses entre 1941/45...

"Continuo a contactar militares desse tempo ou suas famílias e a lutar pela preservação dos seus álbuns fotográficos...

"Por sua vez, Cabo Verde é já o 10º país do mundo onde o nosso blogue é mais visto... Estamos com 3500 visitas por dia, em média.

"Disponha das nossas fotos. Veja as fotos da Lia Medina. Um Alfa Bravo. Luís Graça" (...)


6. A resposta do Adriano não se fez esperar, aqui vai com data de 8/10/2012:

(...) "Caro camarada e amigo: Tem toda a liberdade para utilizar os meus textos como entender e será para mim uma honra se for em proveito do blogue Luís Graça & Camaradas. Devo dizer-lhe que tenho frequentado o vosso blogue para recolher dados e imagens que possam ser úteis para os meus textos, os 3 que já escrevi e os que tenciono continuar a escrever para publicar no blogue "Praia de Bote", cujo editor e administrador é o professor Dr. Joaquim Saial, um cabo-verdiano adoptivo. Por isso é que há uns meses pedi a sua autorização para reproduzir uma ou outra foto que pudesse servir os objectivos dos meus textos. 

"Com todo o gosto integrarei a Tabanca Grande e acredite que tanto eu como o Joaquim Saial [, criador e editor do blogue Praia de Bote,] e outros colaboradores do blogue Praia de Bote, como o Valdemar Pereira, vice-cônsul de Portugal em Tours, aposentado e o José Lopes, professor na universidade de Aveiro, os dois últimos cabo-verdianos de origem, temos vindo a terçar armas para a preservação do património da ilha de S. Vicente. Infelizmente, por ignorância ou distorcida visão do que é cultura, algum património tem vindo a ser destruído ou abandonado. E creia que a memória dos expedicionários portugueses em 1941-45 é algo que toca profundamente a minha sensibilidade, pelas razões pessoais que expus num dos textos que já publiquei. Por isso é que foi para mim uma agradável surpresa o vosso blogue. Pena é eu não ter começado há mais tempo, há 20 anos atrás pelo menos, quando tínhamos ainda muitos testemunhos vivos, como o seu pai, o Francisco Lopes, o Shultz Guimarães e outros de Tomar que a lei da vida já não permite estarem connosco. 

"Para ser mais verdadeiro, comecei, sim, mas não continuei, pois o primeiro passo consistiu apenas em actualizar o historial do RI 15 e o seu anuário, o que exigiu apenas uma sucinta narrativa. Imagine, isso foi em 1985, quando os nossos expedicionários estavam ainda em pujança de vida. Mas às vezes não nos damos conta de que o tempo voa e perdemos oportunidades irrepetíveis".(...)

7. Comentário final do editor:

O Adriano está mais que apresentado, e é já de longa data nosso leitor e colaborador. A sua presença entre nós justifica-se, não por ter feito a  guerra colonial em Angola e Moçambique, mas pelo cordão umbilical que  mantemos com Cabo Verde.

A presença histórica dos portugueses na Guiné não pode ser desligada da história passada e recente de Cabo Verde. O Adriano está a ajudar-nos também a conhecer,  preservar e divulgar a passagem dos nossos pais e nossos camaradas pelas terras de Cabo Verde, entre 1941 e 1945. Bastaria esse elo em comum. Mas temos muitos mais.

Ele conhece e aceita as nossas regras de convívio bloguístico. Daqui parta o futuro, consideramo-nos como amigos e camaradas, pelo que o tratamento por tu se impõe com toda a naturalidade... Adriano, sê bem vindo. Já tomámos boa nota do teu novo endereço de email, e já recebemos o teu texto sobre o médico militar Baptista de Sousa, resultante de uma excelente  investigação de arquivo. Será publicado oportunamente.

Em troca deste mimo, insiro aqui o link para mais um vídeo do meu velho (que infelizmente nos deixou este ano em curso) e em que ele fala do quotidiano das tropas expedicionárias  na ilha de São Vicente no seu tempo (1941/43). Foi gravado em 17/10/2009, mas só agora inserido no

You Tube, na nossa conta Nhabijoes. [Clicar aqui para aceder ao vídeo]


Luis Henriques (1920-2012)_Cabo Verde_1941_43_Histórias_2

Vídeo (9' 59''). Lourinhã, Luís Henriques (1920-2012). Ex- 1º cabo inf, mobilizado pelo RI 5 (Caldas da Rainha), expedicionário, que viria a integrar o RI 23 (Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde, 1941/43). Locais por onde andou durante 26 meses: Mindelo, Lazareto, Matiota, São Pedro, Calhau... Histórias do quotidiano da tropa... Video de Luis Graça (, gravado em 17 de outubro de 2009, numa esplanada da Praia da Areia Branca). Inserido no You Tube em 18/11/2012.

Guiné 63/74 - P10750: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (16): 17.º episódio: O mistério das luzinhas do K3

1. Em mensagem do dia 29 de Novembro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), enviou-nos mais um episódio da sua campanha no K3, dias que fazem parte dos melhores 40 meses da sua vida, que segundo o nosso camarada se aproxima do fim. Infelizmente, dizemos nós.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

17º episódio - O mistério das luzinhas do K3

O nosso falhado historiador, referiu-se no 8º episódio, aos adversários como recrutas e no 16.º descreveu o facto de que já sabem destruir os holofotes do K3, o que demonstra que passaram para a especialidade de atiradores contra luzinhas. Perante essa evidência, decidiu apresentar a solução para que se acabasse de vez com esta guerra e assim sendo, não seriam precisos mais soldados, (a maioria retirados às terras que amanhavam para o seu sustento e dos seus familiares) soldados estes que se tornaram mártires ou heróis no cumprimento dum dever que lhes era imposto e que ainda hoje continuam tão desprezados como se "tinha" tivessem ou tenham.

A ideia genial surgira analisados alguns pequenos pormenores mas considerando que com tiros ninguém da sua CCAÇ 1422 sofrera, embora todos tivessem estado expostos em diversos "embrulhanços", mas tais tiros afinal acertavam apenas em holofotes, como se provava.

Daí que a solução proposta fosse a de que se instalassem velas, almentolias, faróis, farolins, lâmpadas de 60W, lamparinas e enfim... toda a panóplia qu'anuncia o Natal e que as colocassem nos matos, considerando que as iluminações perturbavam o IN e só a elas atiravam, como estava provado.

Tão simples quanto isso e eu diria mesmo revolucionário prá época, mas na verdade, passados que estão 47 anos, nem ele nem ninguém, recebeu qualquer resposta, constando ter apenas chegado uma mensagem confidencial, codificada e encriptada, mas que não foi possível descortinar porque o cabo cripto estava hospitalizado devido a um feroz ataque de matacanhas nos pézinhos.

Sabe-se, que indecifrável, dizia apenas: "INTERNE-SE ESTE GAJO NO JÚLIO DE MATOS".
Mas que existiam estranhices em vários procedimentos, lá isso era uma realidade. Deixem que lhes mostre três exemplos:
- Nenhum graduado podia sair para operações no mato, usando divisas ou galões;
- Óculos igualmente proibidos;
- Não usar o próprio nome.

Para o prestigiado e não menos culto escrevinhador, Senhor du Veryssimo, as coisas não ficariam sem serem questionadas e perguntou do porquê de tão insólitas situações, canhestras contra a liberdade de acção de cada qual.

Foi-lhe dito:
1º (divisas e galões). Eles os "mau-maus", têm ordens para atirar primeiro aos mandantes, pois que tropa sem chefia, desorganiza-se e torna-se presa fácil;
2º (óculos) Quem os usa, tem a vista cansada, o que significa que leram e estudaram... portanto ou são furriéis ou oficiais, logo alvos a abater;
3º (nome) Não sendo possível identificar pelo que atrás foi dito, talvez se consiga fazê-lo chamando pelo próprio nome, como por ex: "Oh Fulano!" e conhecedores que este é o Cmdt da Secção de metralhadoras, lixam-no se responder.

Tinha lógica... e considerando que a ordem era para cumprir aconselhei-o a rebaptizar-se e propus-me apadrinhá-lo, o que veio a acontecer. Em vez d'agua benta na tola, vertemos uma garrafa de Johnnie Walker pela goela e foi assim que às 2ªs e 3ªs, passou a ser Gaspar; às 4ªs e 5ªs, Melchior; às 6ªs e Sáb, Baltasar e no dia seguinte por ser dia do solilóquio científico préviamente contratado e já descrito no final do episódio anterior ele pede para ser CHAMEMMEOQUEQUISEREM, mas pelo menos ao Domingo, deixem-me ser o menos infeliz possível.

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10736: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (15): 16.º episódio: Alô K3

Guiné 63/74 - P10749: Ser solidário (139): A Tabanca Pequena de Matosinhos dá novo apoio à ONG guineense AD - Acção para o Desenvolvimento


Fonte: AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2012) > 29 de novembro de 2012 > Novo apoio da Tabanca Pequena

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10633: Ser solidário (138): Festa de S. Martinho no Centro Social de Runa, dia 10 de Novembro de 2012 (José Martins)

Guiné 63/74 - P10748: Parabéns a você (503): Herlânder Simões, ex-Fur Mil da CART 2771 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de Guiné 63/74 - P10742: Parabéns a você (502): Carlos Schwarz (Pepito), dirigente da ONG AD e Ernestino Caniço, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10747: Blogues da nossa blogosfera (60): Memórias de Outros Tempos - A Estadia no HM 241, no Blogue Coisas da Vida (Jorge Teixeira - Portojo)

1. O nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo), (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos este seu trabalho publicado no Blogue Coisas da Vida de que é autor e administrador, onde recorda a sua estadia no HM 241 de Bissau:









Memórias de Outros Tempos - A Estadia no HM 241

Faz 43 anos que abandonei o Hospital Militar depois de uma estadia de cerca de 30 dias com guia de marcha para a minha zona de residência, Catió.
Tudo começou meses antes, talvez em Junho, quando os dentes começaram a chatear. Consegui a consulta externa e em finais de Agosto arranjaram-me lugar num DO e lá fui até à cidade do Faz de Conta, que era Bissau.


Dias após consegui a vaga para me serem arrancados dois dentes. Que me deram cabo do juízo antes, durante e após as extrações. Apanhei o jeitinho de trincar os dentes.
Como andava a sentir-me mal do estômago e aproveitando a estadia, pedi uma consulta médica. Não demorou muito tempo a ser atendido pelo Dr. Maximino Cunha (agradeço ao Albino Silva ter-me informado do nome do médico) que era do meu tempo, incorporado no Batalhão de Chaves. Não sei qual era, mas sei que era também o dos meus amigos Cancela e Mano Velho Carvalho. Só há pouco mais de quatro anos conheci estes bronqueiros.
Disse-me o médico para esquecer o estômago e irmos ver os pulmões. Mas isso só com internamento. Imaginem como fiquei.


O internamento demorou muito tempo e então matava-o de qualquer maneira. De manhã ia-me apresentar aos Adidos, passava no Hospital para ver se havia vagas; as refeições e as dormidas eram no Quartel General, numa grande caserna, com beliches duplos, suja que nem pocilga.

 

As tardes eram passadas entre a Piscina do Quartel General ou os cafés da Cidade. Ao domingo eram os jogos de futebol. Para experimentar também fiz um serviço de patrulhamento nocturno com dois soldados, dentro de um Unimog salta-pocinhas, entre os Adidos e o Aeroporto. Quer dizer, a certa altura o condutor estacionou a viatura num local qualquer e ferramos a "galhada" até às 5 da manhã, hora de recolher. Ele é que sabia como era.


Finalmente consegui uma vaga na primeira enfermaria do lado esquerdo, com varanda e tudo.
A próxima consulta foi ainda com o Doutor Maximino - que acabou por ser o meu médico até ao fim - para além dos RX, receitou-me comprimidos e uma injecção diária que era de ir aos arames. O líquido, mais ou menos da cor de jeropiga, quando entrava pareciam vidros. Ainda por cima o bruto do cabo enfermeiro, lá porque era pegador de touros, não fazia carinhos nenhuns. Fiquei com tanta raiva ao homem que só não veio da varanda abaixo porque não tinha cabedal para ele. Consegui ao fim de poucos dias que as injecções fossem substituídas por comprimidos. Passei a tomar 16 diários, aumentados às quintas-feiras com o quinino e as vitaminas.

Ora um internamento requer pijama e chinelos. Como não os tinha, alguém me arranjou, originários provavelmente do caixote do lixo mas lavados, um casaco só com um botão, quase branco. Umas calças quase azul-bebé, sem elástico na cinta, cuja braguilha fechava em parte com um alfinete dama, ou bebé, como cá em cima lhe chamamos. Os chinelos, um de cada cor, eram daqueles que tinham uma borrachinha mais ou menos a meio e o dedão ia para um lado e o resto dos dedos para o outro. Num dos chinelos, de tão coçado, a dita borrachinha só segurava de vez em quando, mas usava sempre um clip de prender papeis.
Li há dias que esses chinelos foram inventados por um brasileiro e se chamam havanezas ou haitianas ou coisa parecida. Para o caso não interessa nada.


Tinha conseguido no dormitório do Q.G. umas feridas na cara que demoraram muito tempo a cicatrizar. Portanto, não fazia a barba o que tornava o meu conjunto visual por demais ridículo, do qual a malta "tainava" forte e feio. Coisa que não me preocupava, diga-se de passagem. Já cá cantavam quase 18 meses.
Na enfermaria foram meus companheiros o Sargento Carvalho das Daimler, também de Catió, mas por pouco tempo; e dois rapazes já em adiantado tempo de comissão. Um tinha sido operado de urgência, não me lembro agora se por doença se por ferimentos. O outro, chegamos à conclusão que já nos conhecíamos telefonicamente por motivos profissionais. Ele trabalhava no Turismo da Nazaré e eu na gráfica que lhes fornecia o material de propaganda. Era fadista amador, mais tarde tornou-se profissional e cheguei a vê-lo actuar na RTP. Foi ele que em Abril do ano seguinte me levou, e às malas, ao barco, no jipe emprestado por um major, pai da sua namorada.

Chegou à enfermaria um novo inquilino, velho conhecido de Catió, o Fidalgo de Montalegre, da CCS do BART 2865. Para arrancar dentes. Era um contador de estórias muito interessante. Recordo uma "a da tentativa de abatimento de um avião planador pelos guardas espanhóis, quando atravessou a fronteira pilotando o dito cujo".
Certo dia fomos visitados pelo Brigadeiro creio que se chamava Nascimento e, se também não estou em erro, era o Cmdt. Militar da Guiné. Depois de uma conversa a saber do estado de saúde da rapaziada, olhou para o Fidalgo que de boca aberta dormia e disse:
- Este sim, está muito mal.

Na realidade o aspecto do Fidalgo era terrível. De manhã tinha tirado mais alguns dentes, estava com a boca desdentada e meio ensanguentada. Dormia, talvez, ainda por causa da anestesia. Mereceu o comentário.


A enfermaria estava localizada num ponto estratégico. Permitia-nos ver o heliporto e a chegada de evacuados. Certo dia lá chegou mais um heli e descarregou um barbudo. Dissemos para nós mais um fuza que se f..d...
Mais tarde viemos a saber que era um cubano mercenário, o Capitão Peralta.
O Hospital ficou cheio de comandos e o homem ficou num quarto com sentinelas à porta. Esta foto correu mundo e já foi identificada. Não me lembro agora se pelo Dinis Dias ou pelo Pinto, que se reconheceu no meio dos dois outros maqueiros.

Durante a estadia, fiz algumas visitas (rondas) nocturnas a enfermarias acompanhado pelo camarada Quintino da CART 2410, que entretanto tinha passado aos auxiliares e começou a peluda mais cedo nos serviços do Hospital. Vi coisas horríveis. Nos africanos a causa maior das doenças eram a blenorreia e impressionava aqueles tamanhões de pénis a desfazerem-se.


Não havia entretenimentos, mas aos domingos deixavam-nos sair. Também a um domingo o Duo Ouro Negro, apenas com as suas violas, foram-nos dar um belo espectáculo.

Voltando às minhas doenças, os pulmões estavam um pouco estragados por uma bronquite crónica e não só por causa do clima. O Dr. Maximino recomendou-me deixar de fumar, ou no pior dos casos fumar charuto. Não havia charutos mas as célebres Timparillos, que passei a fumar. Depois novamente no mato não me estava a ver a andar com a cigarrilha na boca à Fidel, embora as comprasse no Bar de Catió e abusei delas uns bons tempos ainda.
Estava por resolver o caso do meu estômago, que depois de tomar a horrível papa, foi-me diagnosticada uma gastrite aguda.

Quero com isto dizer que passei a dieta. Peixe era a comida e normalmente o Espada. Coisa horrorosa, que trocava com os sulistas amantes de peixe por uma comida decente, embora seja um aforismo dizer comida decente. Mas pouco comia, a não ser o pequeno almoço e o lanche, por causa do pão. No intervalo eram as bolachas que tinha na mesinha de cabeceira. Claro que havia os dias de excepção, quando o prato não-dieta era feijoada. A troca era certa e tanto quanto me lembro não era má e sempre iam umas garfadas com mais prazer.

Havia em frente ao Hospital, mais ou menos, não me lembro bem, um bairro com um restaurante lá no meio que servia bifes (um insulto aos ditos, mas enfim...) e frango de churrasco. Como nos eram proibidas saídas nocturnas e a segurança tinha sido reforçada por causa do Peralta, o Quintino arranjou-nos umas divisas ou galões (?) de alferes e capitão que usávamos para sair disfarçados. Eu, o fadista e o operado passamos a realizar operações nocturnas ao tal restaurante para matar a fome e esquecer os padecimentos. Com direito a continência com grande batimento de pés e arma em sentido do sentinela à porta do hospital.


Descobri que havia uma biblioteca no Hospital. Embora a minha figura continuasse com muito mau aspecto geral, conversava muito com a Bibliotecária, uma senhora ainda jovem esposa de um militar. Descobri a Gabriela, do Jorge Amado e a Selva de Ferreira de Castro. Os dois livros marcaram-me pelas particularidades, de um e outro, muito comuns à Guiné: clima, cultura, geografia, colonialismo. Não me cansei, nem canso, de publicitar estes dois livros. O (A) Gabriela que hoje possuo, deve ser o meu quarto volume, pois os outros sumiram depois de emprestados.
O primeiro que comprei foi em Catió após o meu regresso do Hospital, na Loja de um senhor sírio, cujo nome esqueci, (o querido camarada Condeço chegou a enviar-me fotos nossas em casa dele, mas perdi-as numa das lavagens do PC), e meu fornecedor habitual de livros, discos, gravadores, máquinas fotográficas, recordações. E por lá ficou.


Faria trinta dias de internamento em breve e o médico quis preparar a minha evacuação para a metrópole. Disse-lhe que não queria e me desse alta. No horizonte previa o regresso em Janeiro, no primeiro barco. O último do ano já chegara a Bissau e levaria os mais velhos. Portanto, ficavam como velhinhos os que tinham embarcado em 1 de Maio de 1968, nos quais me incluía. Em Janeiro teríamos 20 meses de comissão. Já há muito que andava com a medalha ao peito. A célebre Barreta, verde e vermelha.
Lembrava-me do meu pessoal de quem estava afastado há 3 meses. Como era o único sargento e responsável pelo pelotão (o Oliveira aos 16 meses foi fazer um curso de artilharia em troca comigo e só o voltei a ver próximo do dia do embarque em Abril) tinha a obrigação de tratar das burocracias. Sempre eram mais de 30 homens e tinha um mês para isso. Os meus palpites não bateram certo, mas isso são outras estórias.
O médico, contrariado, notei, deu-me alta e muitos conselhos. Não me chamou burro mas subentendi. Enfim, médicos...

Aguardei no hospital que houvesse transporte aéreo para Catió, o que aconteceu no dia 4 de Dezembro, dia de Santa Bárbara e da Artilharia. A minha rapaziada recebeu-me com carinho e à espera de matar a sede, que a água da bolanha andava muito salgada.
Mas vamos à vida que o próximo barco é o nosso.


Fui-me informar como andavam as coisas por Catió e cheguei à GMC, Berliet ou lá que era, a viatura que tinha ido meio pelo ar numa mina. Estava à mercê da ferrugem.

Um pequeno convívio com rapaziada da CCS do BART 2865. Furriéis Mecânico, Transmissões e Armamento. Gente muito boa.

Um novo posto de transmissões que o Eduardo Monteiro (Dadinho para os amigos de infância) mandou construir. Naquele quartel já não se capinava.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10735: Blogues da nossa blogosfera (59): Reabertura do Blogue Lapland to Key West da Tabanca da Lapónia (José Belo)

Guiné 63/74 - P10746: Tabanca Grande (369): Mário Ferreira de Oliveira, 1º Cabo Condutor de Máquinas (na situação de reforma), Vedeta de Fiscalização Bellatrix, 1961/63, grã-tabanqueiro nº 589


NRP Sal - Foto enviada pelo nosso camarada Manuel Lema Santos (MLS),  com a seguinte nota datada de 27 de novembro último: "Para que nada falte mesmo ao camarada (Cabo de Manobra) que escreveu o artigo que li, aqui envio o navio-patrulha Sal, P584. Aliás, bela imagem que sugiro ser enviada ao autor do artigo. É uma imagem oficial, cedência da Revista da Armada".


1. Mensagem do nosso novo grã-tabanqueiro, Mário Ferreira de Oliveira, em dia de grande significado histórico e patriótica que hoje comemoramos (e continuaremos a comemorar, com ou sem feriado nacional):

De: Mário Oliveira
Data: 1 de Dezembro de 2012 10:09
Assunto: pedido de adesão á Tabanca Grande

Nhô Luis Graça! Home Grande,
Corpo di bó stá bom?
Bó casa tudo stá bom?
Tabanca Grandi stá bom?
Amim fala mantanhas pra bó e pra bó casa e pra camaradas di Tabanca Grandi.


Isto foi só um pequeno teste ao crioulo, em que, in ilo tempore, dava um jeito, mas agora dou é barraca.

Agradeço a tua rápida resposta e peço desculpa pelo meu atraso em responder, mas acontece que em informática sou um nabo e tive de esperar que o meu filho estivesse disponível para me ensinar a digitalizar e a enviar por email as fotos.

Espero ter aprendido e que este histórico email chegue em boas condições.

Solicito a todos os camaradas do Grande Fórum de Camaradagem que é a Tabanca Grande, que me seja concedida a Subida Honra de ser um de vós. Para o efeito junto as duas fotos da "praxe".

Sou natural de Cantanhede, onde nasci em 13-10-1936, casado com a Maria Fernanda, também de Cantanhede, sou pai de dois filhos, a Margarida, arquiteta, e o Paulo, técnico de eletrónica naval, e  resido em Vale de Milhaços, Seixal.

A minha comissão de serviço na Guiné teve a duração de 28 meses, e foi cumprida em 61/63 na Vedeta de Fiscalização "Bellatrix" onde para além de "pau para toda a obra" fui fogueiro-motorista, eram assim designados naquele tempo os actuais CM [. Cabos de Manobra]..

Quanto à minha expressão "infeliz" capitão G3,  utilizei-a porque o tristemente lendário fuzileiro, conhecido entre outros epítetos nada abonatórios por capitão G3, na Guiné, tendo como pano de fundo operações militares, onde diariamente militares dos três ramos faziam inimagináveis sacrifícios e de armas na mão morriam e matavam, o tal G3 passou-se para o IN, levando com ele conhecimentos e técnicas de combate, que lhe valeram a promoção a oficial e um posto de comando. Mas a infelicidade dele não se ficou por aqui: enviado com outros guerrilheiros para a Argélia, frequentar um curso que daria (se não fosse entretanto caçado) promoção quem sabe a general, teve a infelicidade de ver a carreira interrompida por um golpe de Estado de sinal contrário.

Tempos depois, isto para abreviar o que se sabe, responde em tribunal militar, e cumpriu a pena a que foi condenado. Não deve portanto nada à sociedade. Tem direito à sua privacidade, e fazer da sua vida o que entender. Que na madrugada libertadora que foi o 25 de Abril tenha finalmente encontrado a paz e a felicidade que não teve nos tempos conturbados do fascismo.

Agradeço a foto do NRP Sal, e irei retribuir com uma foto da proa do Sal, rasgando as vagas de uma enorme tempestade no dia 25 de dezembro de 1960, que há Natais inesquecíveis, ai isso há, até para os homens do mar!

Para todos um abraço amigo, do grato
Mário Oliveira

2. Comentário do L.G.:

Mário:
A tua juventude e jovialidade não passam despercebidas, são dignas de registo e de regozijo. O teu pedido de adesão já tinha sido aceite pelo régulo e adjuntos da Tabanca Grande [vd,. poste P10728]. Espero agora que os muitos e dignos representantes, na nossa Tabanca Grande, dos três ramos das forças armadas que bateram com os quatro costados na Guiné, de 1961 a 1974, abram alas e te recebam com ramos de palma em arco, festivamente...

Toma boa nota: és o grã-tabanqueiro (ou membro da Tabanca Grande) nº 589 (*)... Não és o grã-tabanqueiro mais velho, à tua frente e com quase 98 aninhos vai a nossa decana Clara Schwarz...De qualquer modo, rapazes da tua boa colheita de 1936 não temos muitos, e para mais marinheiros, dos bravos, como tu. Felizmente que venceste a barreira da "literacia" informática. com a ajuda do teu filho. Estás de parabéns, guarda esse mail, histórico, para mostrares aos teus filhos, netos e bisnetos.

A honra é toda nossa, a tua presença é também é uma recompensa para aqueles de nós, grã-tabanqueiros, amigos e camaradas da Guiné, que fazemos  todos os dias este blogue, desde 23 de abril de 2004, e que já ultrapassou os 4,3 milhões de visualizações. O mês passado tivemos 116 mil visitas, o que dá uma média diária de 3850... Vê estes números também como uma oportunidade para comunicares com esta vasta comunidade virtual (e real) que vai de Portugal ao Brasil, e de Cabo Verde à Lapónia... A rapaziada está por todo o lado, e ainda mexe como tu as falanges, falanginhas, falangetas, pernas, pernetas, neurónios...

Quanto ao teu crioulo, pá!, bate a bota com a perdigota: só mostra que os anos que constam do teu BI ou CU,  podem ser de calendário (manga de luas, as tuas) mas não são anos  mentais... Neste annus horribilis de 2012 alegra-nos e honra-nos a tua jovial presença sob o nosso mágico, secular, frondoso e fraterno poilão da Tabanca Grande!...

PS - A história do tal capitão G3, o ex-fuzileiro António Tavares Trindade,  já aqui foi evocada pelo nosso camarada Mário Pinto (**).

Por outro lado, saiu há dias um livro autobiográfico do António Tavares Trindade, com o título O homem a quem chamaram G3.

Vd. aqui, no Sítio do Livro, da editora Vírgula, a referência à obra e ao autor (nascido em 1944, em Lisboa).

(**) Vd. poste de 19 de janeiro de 201o > Guiné 63/74 – P5678: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (34): O turra branco "Capitão G3" (Mário G R Pinto)