
Queridos amigos,
A proposta do conceituado historiador guineense Julião Soares Sousa é um documento redigido com franqueza e profundo afecto pelos sofrimentos do seu povo, passa em revista as sucessivas crises, tumultos, intentonas e inventonas desde 1974 ao presente.
Desvela contradições e a posse maníaca pelo poder, recorda como as elites se divorciaram dos interesses da maioria e vivem em permanente locupletação.
Enuncia uma série de pontos que ele considera relevantes para levantar o Estado. E pede debate.
Os guineenses que têm este blogue como sala de conversa, parece-me, têm agora ensejo para depor nos termos construtivos que são o apanágio deste guineense que está a fazer carreira científica brilhante entre nós.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau: A destruição de um país (2)
Beja Santos


No texto anterior procedeu-se a uma análise sumária das crises, choques político-ideológicos que invadiram a vida da jovem república da Guiné-Bissau, praticamente desde a sua fundação. Retomamos o fio desta meada exatamente com conflito de 1998-1999, que introduziu uma viragem neste ciclo de autoritarismo e despotismo. Se é facto que Nino Vieira, após o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, introduziu uma modificação radical nas relações entre o partido/Estado e a sociedade, durante cerca de 20 anos as Forças Armadas foram progressivamente saindo da dependência do poder político, misturaram-se com dirigentes políticos no acesso ilícito de bens, foram coniventes em perseguições e assassínios, e por fim no tráfico de armas. Em 1998, a sociedade guineense ainda estava em estado de choque pela passagem ao franco CFA, a questão dos antigos combatentes e os vencimentos das Forças Armadas eram questões graves, eternamente dependentes; acresce a divisão do PAIGC e o confronto entre Nino e Ansumane Mané. Ciente da falta de apoios interno, Nino pede a intervenção do Senegal e da Guiné Conacri: o Senegal intervinha para liquidar os rebeldes do Casamansa e, conforme escreve o autor “A precipitação do Senegal em direção à Guiné foi instigado pelo facto de, logo nas primeiras horas, constar que os rebeldes do MFDC combatiam em Bissau ao lado da Junta Militar; a Guiné Conacri e o regime de Lânsana Conté vieram retribuir o apoio que Nino lhes dera a quando da rebelião militar de Fevereiro de 1986, que se saldou em 50 mortos, Nino e Lânsana tinham um acordo de ajuda reciproca, alicerçado em relações pessoais antigas e interesses privados em Lânsana na Guiné-Bissau. Foi um longo conflito de onze meses com vários acordos de cessar-fogo que, mal assinados eram rasgados".
Ainda na presidência de Nino, em Fevereiro de 1999, Francisco Fadul foi designado primeiro-ministro à frente de um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional. Depois de desafios e tensões, a junta militar tomou poder em Maio, Nino renunciou e Malam Bacai Sanhá ascendeu ao cargo de presidente da República interino. O que se seguiu trouxe a revelação que os militares não queriam abandonar o poder, exigiram um pacto de transição, confiscaram poderes constitucionais do presidente da República, ao mesmo tempo que o PAIGC em congresso expulsava uma dezena de personalidades de primeiro plano. Seguiu-se um período em que à sombra do desgaste do PAIGC Kumba Ialá soube impor-se pelo seu popularismo. Este período da presidência de Kumba o autor chama-lhe a IV República. A paz não chegou à Guiné. Ansumane Mané foi assassinado, os militares demitiram Kumba em 2003, nunca mais pararam as tricas entre a presidência da República, o primeiro-ministro e a oposição, isto enquanto a situação económica e financeira tinham resvalado para um novo caos. Os militares voltaram à ribalta, exigiram a criação de um Conselho Nacional de Transição Política. O líder do comité militar, Veríssimo Seabra, foi assassinado em Outubro de 2004, Henrique Rosa foi a personalidade escolhida pelas chefias militares e pela sociedade civil para ocupar o cargo de presidente interino, depois do golpe de Estado que depôs Kumba. Nino irá apresentar-se a eleições em Junho de 2005 que derrotará Kumba na segunda volta. É este o marco da fundação da V República, segundo o autor. A instabilidade não parou: em três anos de mandato Nino nomeou três chefes de Governo. Em 2009, em dois dias consecutivos, são assassinados Tagma Na Waie, CEMGFA, e Nino. Repetiu-se a dança do presidente interino, Carlos Gomes Júnior e Zamora Induta foi nomeado CEMGFA. O PAIGC entregou-se a novas lutas internas dilacerantes entre Carlos Gomes Júnior e Malã Baicai Sanhá. Houve novas querelas na hierarquia do mando, desta feita Malam Sanhá exonerou o Procurador-Geral da República, em condições nada pacíficas.
Julião Soares Sousa explica ao detalhe todas estas convulsões, e assim chegamos às eleições de 18 de Março de 2012, interrompidas por novo golpe de Estado militar que iniciou mais um doloroso período com afastamento da Guiné-Bissau da cena internacional. Refletindo sobre a função presidencial, o autor reflete sobre os equívocos e interpretações erróneas dos presidentes que se excederam no uso do poder e escreve: “O regime presidencialista é o que menos serve os interesses do nosso país. O chefe de Estado deve ser suprainstitucional, ter a função de moderação nos grandes debates nacionais. Os presidentes da República eleitos em lugar de serem presidentes de todos os guineenses são por norma presidentes das clientelas, daqueles grupos que apenas sobrevivem bajulando o poder e com grande capacidade para fomentar intrigas e semear ódios”. A sua observação prossegue pelo estado das finanças públicas e a grande desconfiança da comunidade internacional, fala na necessidade de projetos novos na área do turismo, da agricultura, das pescas e da exploração das riquezas de subsolo. Propõe, em consequência, uma alteração, maioritariamente aceite pelo povo guineense para o desempenho macroeconómico reapetrechamento do aparelho de Estado, a dignificação dos funcionários, a coesão da política educativa, uma nova política externa de credibilidade e de boa governança. O que pressupõe um diagnóstico rigoroso e uma energia para superar contradições entre o interesse público e o mercado liberal. Desde os anos 1980 que a Guiné-Bissau promete implementar reformas económicas e políticas, o resultado é a manutenção do poder típico de regimes totalitários e a deriva neoliberal, temos assim explicada a estagnação do país.
O apelo deste insigne historiador é a favor do poder democrático alicerçado em reformas: redução dos poderes do presidente da República; clarificação dos poderes do Procurador-Geral da República, e dessa recuperação política há que passar para a recuperação das instituições do Estado como entidade promotora de bem-estar. Este apelo é escrito na convicção de que a Guiné-Bissau está no limite entre a clarificação democrática e a penosa e inglória ditadura militar. Apela a um grande debate e lembra as palavras do bispo D. Septímio Ferrazzeta, proferidas na sede de Bissau, em 9 de Agosto de 1998: “O povo da Guiné-Bissau é pacato, sabe sofrer, mas até certo ponto… Quando cada um de nós pergunta as razões desta guerra, a resposta estará nos pontos seguintes: ninguém dá ao poderoso direito de ser arrogante; ninguém dará ao soberbo o direito de ser prepotentes; ninguém dará a quem exercer o poder o direito de receber o que pertence aos outros; ninguém dará o direito ao corrompido de matar o inimigo”.
É nestes tempos incertos que é preciso encontrar novos rumos em prol do resgate definitivo do nosso país, conclui o historiador guineense neste documento apresentado com uma proposta susceptível de levantar o Estado e garantir a paz a todos os guineenses.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10956: Notas de leitura (450): Guiné-Bissau: A Destruição de um País, por Julião Soares da Silva (Mário Beja Santos)