sábado, 6 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14707: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte III): Op Jigajoga 2, 31/8/1967, e Op Jacaré, 16/9/1967... Fotos de Banjara


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... e todos eles membros da nossa Tabancca Grande: da esquerda para a direita,   o António Moreira, o Domingos Maçarico,  esquerda, o Alfredo Reis e o A. Marques Lopes,  O Domingos Maçariço foi gravemente ferido e evacuado para a metrópole no decurso da Op Jacaré,  16 de Setembro de 1967, na primeira tentativa (falhada) de assalto e destruição da base IN de Sinchã Jobel. 

Foto (e legenda) : © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.






Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara (vd. carta de 1956, escala 1/50 mil) > Foto nº 5 > 

O destacamento era constituído por: (i) uma caserna; (ii) quatro abrigos subterrâneos; e (iii) um posto de comando, que era uma casa abarracada, sem portas nem janelas... Tinha ainda outros abrigos à superfície. A envolver este destacamento, que no essencial era uma clareira circular com cerca de mil metros de diâmetro, havia duas fiadas de arame farpado paralelas e em círculo. As casas de banho, eram... a céu aberto. O capim era necessário cortá-lo de dois em dois meses, para evitar a aproximação camuflada do IN.


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Geba > CART 1690 (1967/68) > Banjara  > Foto nº 4 >

Banjara ficava situada a cerca de 40/45  km de Geba e a cerca de 20 Km de Mansabá, na estrada Bissau-Bafatá. Ficava no coração da mata do Oio, e teve, antes da guerra colonial, uma unidade industrial de serração de madeiras. Pertencia, durante a guerra, à área de actuação da Companhia de Geba, do Batalhão de Bafatá.

Na época, passava por ser, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé, o piro sítio da Guiné...  Não apenas pelos ataques a que estava sujeito o destacamento como, e  sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da companhia, e por estar cercado por uma cintura de posições IN, que vigiavam facilmente, de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores em redor, todos os movimentos da nossa tropa. Em termos de 'bases' IN tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte.




Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara  > Foto nº 6

A paisagem envolvente era de uma beleza indescritível, com dezenas de cajueiros, mangueiras, árvores gigantes, capim e as célebres lianas. O barulho ensurdecedor dos milhares de pássaros e a vozearia nocturna da mais variada bicharada, desde macacos a hienas, tornavam aquele ambiente um mistério todos os dias renovado.





Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 7 > A famosa fonte que saciava a sede, à vez, tanto das NT como do IN... A malta procurava lá ir a horas desencontradas...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 A> CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 12

Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares. A çaça era um recurso...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Gb, ea1967/68) > Banjara Foto nº 8 > Tudo o vinha à rede era peixe...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 >  CART 1690 (Gbea, 1967/68) > Banjara Foto nº 13 > Um valente javali...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 17 > Um dos nossos caçadores...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 2  >  Cobra, também se comia...




Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 20 >

O dia amanhecia, então, e, pelas 7 da manhã, iniciava-se a distribuição da 1ª refeição. As horas mortas do pessoal eram gastas, durante o dia, à caça, quando isso era possível e o capim estava seco e caído no chão, a jogar cartas, pôr a correspondência em dia e jogar futebol. O jogo de futebol era normalmente diário, mas sempre a horas diferentes, para não se cair na rotina, e sempre com os abrigos guarnecidos de atiradores.


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara > Foto nº 44 >  Às voltas com uma avaria na picada...


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara > Foto nº 55

A guarnição deste destacamento, comandado por um Alferes, variava entre 60 a 80 homens, normalmente (houve alturas em que tinha só um pelotão), bem armados e disciplinados, capazes de aguentar debaixo de fogo uma boas dezenas de horas. O seu comando era rotativo e por lá passámos os mais longos meses da nossa juventude, então com 23 anos, e responsabilidades tremendas em cima dos galões de Alferes.

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]

I. Continuação da publicação desta série, "Jogos de Cabra-Cega: Sincha Jobel",com a reedição de alguns postes do A. Marques Lopes, que tem por objeto central a descoerta e a tentativa de destruição, pelas NT, de Sinchã Jobel, uma base ("barraca") do PAIGC, em pleno coração da Guiné, na zona leste, no regulado de Mansomine, entre Mansambé e Geba. São os postes nº 35, 36, 39, 40, 45 e 763, originalmente inseridos na I Série, e como tal como lidos e conhecidos... Fizemos a revisão de texto (e atualizámos o texto de acordo com a ortografia em vigor). (*)


II. Jogos  de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte III): tentativa falhada de assalto e destruição da base IN


1. Depois da minha "descoberta involuntária", mas sem surpresa para alguns, iniciaram-se algumas operações mais elaboradas com o objectivo da destruição da base de Sinchã Jobel.

Era, como vos disse, uma antiga tabanca, já destruída, sendo agora uma clareira de cerca de 2.000 m2, cercada por uma mata densa, tendo a sul o Rio Gambiel, com água pelo peito e uma "ponte" submersa, isto é, dois troncos de palmeira debaixo de água, (quando fui para lá o meu guia indicou-ma, quando regressei, sem guia, tive de a descobrir); a oeste e a este tem várias bolanhas, uma delas mesmo perto da clareira (a tal onde durante a noite toda a minha vida me passou pelo pensamento); a norte, até Banjara, tem uma floresta muito densa e dezenas de poilões (há lá, na Guiné-Bissau de agora, uma serração).

Nas margens do rio Gambiel e das bolanhas os guerrilheiros tinham sentinelas; pelo lado de Banjara, a floresta impenetrável tornava o acesso impossível. É claro que a base de guerrilha não estava na clareira de Sinchã Jobel (nem antes dela, pois não a encontrei quando ia para lá) mas em algum local deste contexto que vos descrevo, para norte, muito bem situada e com ótimas condições de defesa.

Nesta fase, certamente ainda em início de implantação, é natural que os guerrilheiros só se manifestassem quando lhes parecesse conveniente (foi o que lhes pareceu quando viram trinta mecos a ir para lá...), por isso não se manifestaram nesta Operação Jigajoga 2. 

Além de que o seu principal objetivo era montar minas e emboscadas no itinerário Geba-Banjara e atacar os destacamentos. Mais tarde, quando fortalecidos e bem guarnecidos, creio que alargaram a sua ação até Mansabá e para o Xime e Xitole. Este enquadramento da base de Sinchã Jobel expliquei-o ao comandante do Agrupamento 1980, em Bafatá, mas, pelo que vão ver nos "próximos capítulos", não valeu de muito.


Op Jigajoga 2,  31 de Agosto de 1967:

"Situação particular:

O IN tem-se revelado a sul de Banjara, com mais intensidade nos regulados de Mansomine e Joladu. Em Sinchã Jobel possui uma base forte, que serve de apoio às suas acções.

"Missão:

- Assegura a ocupação do Setor, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

- Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no setor, impedindo que a subversão alastre.

- Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afetadas.

- Armadilha os itinerários utilizados pelo IN.

"Força executante:

Dest A - CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); CCVA 1693 (1 Gr Comb); 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções); 1 PEL 109/CAÇ MIL 3

Dest B - CCS 1877 (1 Gr Comb) /CCS 1877 (1 Gr Comb); 1 PEL REC/EREC 1578.

"Desenrolar da acção:

"Em 31 de Agosto de 1967, pelas 4h30., iniciou-se a progressão a partir de Darsalame. Durante a progressão foi batida toda a zona do itinerário, procurando vestígios e/ou trilhos que indicassem a existência do IN.

"Pelas 09H00 aproximação de Sare Tamba, os cuidados de pesquisa redobraram no sentido de localizar e assaltar o possível acampamento IN. Batida toda a mata durante 2 horas onde se supunha existir o referido acampamento, não foi possível localizá-lo nem o IN se revelou.

"No deslocamento para o objetivo pelas 11h00 foi ouvido um disparo de espingarda tipo Muaser ao longe, não sendo possível determinar a sua direção. Continuada a batida foram encontrados restos de um camuflado IN, não sendo possível, porém, encontrar mais nada. Pelas 11h50 foram ouvidos muito ao longe alguns rebentamentos fora da zona de ação.

"Por parecer mais fácil passou-se a bolanha junto a Sinchã Bolo e a seguir o Rio Jago na direcção de Sucuta (Madina Fali) onde se chegou pelas 15h00. Fez-se uma paragem para se conferir pessoal e material, porque as bolanhas foram de difícil travessia e foi a coluna atacada por um enxame de abelhas durante a transposição da primeira bolanha.

"Reiniciada a progressão em direção a Sare Budi foi detetada pelas l6h00, em 1445 121.07H, 100 metros após a entrar na mata uma armadilha A/P a qual foi destruída pela Secção do PEL SAP/1877. Em Sare Budi no itinerário para Sare Madina foram montadas 2 armadilhas A/P cujo croqui será elaborado pelo Cmdt SAP/BCAÇ 1877.

"Continuando a progressão em direção a Sinchã Fero Demori, não foi possível montar mais armadilhas em virtude do adiantamento da hora e não ser possível determinar o itinerário de acesso ao interior do setor desta CART.

"A chegada a Sare Banda verificou-se às 19h30, seguindo em meios auto até Geba, o que se registou às 20h30, tendo regressado às suas unidades o Gr Comb / CCAÇ 1685 e o 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções)".


2. Nesta altura, as cabeças pensantes do Comando de Agrupamento [sedeado em Bafatá, o Cmd Agr 1980, 1967/68] já teriam concluído, e tinham provavelmente informações, que a base se situava a seguir à clareira de Sinchã Jobel, para norte. Daí a presença de dois grupos da 5ª Companhia de Comandos para o eventual golpe de mão ao acampamento. 

Só que a guerrilha já se tinha também prevenido com minas A/P (já vistas na Op Jigajoga 2) e A/C como mais uma limitação no acesso à base e, ao mesmo tempo, um factor de alerta. Um dos feridos com o rebentamento de mina nesta operação foi o meu amigo (hoje eng agr  Domingos Maçarico, então alferes miliciano da CART 1690, que acabou por ser evacuado para o Hospital Militar Principal da Estrela, e anda agora com uma placa de platina na cabeça.


Op Jacaré,  16 de Setembro de 1967: 

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas nos regulados de Mansomine. Possui um acampamento forte em Sinchã Jobel que serve de base para as suas acções.

"Missão:

- Assegura a ocupação do sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

- Deteta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre.

- Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

Dest A - CCAV 1650 (-); CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); PEL MIL 111/C MIL 3

Dest B - 01 PEL REC / EREC 1578.

Dest C - 2 Gr  COMANDOS [,5ª CCmds]

Dest D - 1 Gr. Comb /CCS/BCAÇ 1877.

Dest E - 1 Secção / AML 1143.

Dest F - 1 Secção / AML 1143.

"Desenrolar da ação:

"Em 16 de Setembro de 1967, pelas 6h30, o Dest A menos o PEL MIL / C MIL 5 deslocou-se em meios auto em direção a Cheuel. Após a saída de Geba uma viatura avariou, sendo o pessoal distribuído pelas outras viaturas que constituíam a coluna.

"Cerca das 08h00, uma mina anticarro destruiu a terceira viatura da coluna a cem metros de Chuel, projetando os ocupantes, dos quais 8 foram evacuados por heli para o Hospital Militar 241, tendo os restantes ficado em condições de não prosseguir a operação, o mesmo acontecendo, com outros que ao saltar das viaturas se haviam magoado.

"Montada a segurança aos feridos e viaturas, procedeu-se a escolha e preparação do campo de aterragem para o heli que imediatamente fora pedido pelo PCV [posto de controlo volante] que na altura nos sobrevoava. Posta a situação ao PCV, quanto a baixas, foi ordenado ao Dest A para regressar ao quartel depois de evacuar as viaturas, e onde chegou pelas 17h00.

"Devido à quebra do segredo foi ordenado pelo cmdt AGRUP 1980 o cancelamento da operação.»

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Notas do editor:

Vd. postes anteriores da série:

3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João

5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14700: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II): Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui"...

Guiné 63/74 - P14706: Parabéns a você (917): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14699: Parabéns a você (916): Manuel Traquina, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14705: Tabanca Grande (466): Joaquim Fernando Monteiro Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Ganjauará, 1972/74) - 690.º Grã-Tabanqueiro

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo tertuliano Joaquim Fernando Monteiro Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142, Ganjauará, 1972/74, com data de 1 de Junho de 2015:

Bom dia camarada Carlos Vinhal,
Grato pela resposta ao meu contacto.

Apresentação:

Joaquim Fernando Monteiro Martins, ex-Furriel Miliciano com a especialidade de Atirador de Infantaria, nascido a 19-05-1950, natural de Gondomar, com residência em Águas Santas, Maia.

Frequentei a Escola Industrial Infante D. Henrique e trabalhei no Gabinete de Planeamento da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.

O Major Correia de Campos esteve em Gampará, assim como o Cap. Carlos Abreu, no COP 7, que viria a ser extinto.

Em Junho de 1972, no RI 1, na Amadora, tomei parte ativa na formação da CCAÇ 4142 e instrução da especialidade de atirador de infantaria.

A 16Set72, finda a instrução, a Companhia parte para a Guiné, onde no Cumeré, a CCAÇ 4142 iria ter a sua IAO.

A 18Out72, a CCAÇ 4142 é colocada em Gampará, onde iria render a CART 3417, os Magalas de Gampará, tendo como missão a defesa e segurança das populações da área, assim como a construção da 2.ª fase do reordenamento. Dias difíceis se seguiriam, adaptação a tão duro ambiente, as más condições sanitárias, fraca alimentação, condições estas já descritas no Blogue pelo nosso camarada Amílcar Mendes da 38.ª C.C. aquando da sua passagem por este chão.

Abraço J. Martins
Ex-Furriel da CCAÇ 4142
Gampará/Guiné/1972-1974

 Ex-Fur Mil Joaquim Fernando Monteiro Martins

O 3.º grupo de combate, em baixo, a contar da esquerda sou o terceiro, á minha direita está Fur Mil Rodrigues e, à minha esquerda o Mouzinho.

 Tabancas, algumas já construídas pela CCAÇ 4142

 Tabancas

 Eu, à esquerda, com o Alf Mil Dias, junto das minhas instalações


Localização de Ganjauará, na Penísula de Gampará.


2. Comentário do editor

Caro camarada Joaquim Martins, bem-vindo à Tabanca Grande.
Tenho que ressalvar que na tua apresentação falas do TCor Cav Correia de Campos e do então Capitão, agora Coronel Art, Carlos Abreu, porque fui eu que te perguntei se eras contemporâneo destes dois militares, que tive a honra de conhecer em Mansabá, quando cada um por sua vez comandou o COP 6 ali estacionado.

Desconheço o percurso militar do Coronel Carlos Abreu, que tive o prazer de rever em 2009 em Arruda dos Vinhos, como também te disse, além de saber que comandou o COP 6 e o COP 7.

O percurso do TCor Correia de Campos é mais conhecido, principalmente pelo seu desempenho no COP 7, na Península de Gampará, que tão bem conheces, uma zona muito problemática na altura. Correia de Campos ficou ainda na história da guerra na Guiné pelo seu exemplar desempenho aquando do assédio do PAIGC a Guidaje, em Maio de 1973.

Quanto à CART 3417, que a CCAÇ 4142 substituiu em Ganjauará, passou por Mansabá em Agosto de 1971 para fazer o seu Treino Operacional. Infelizmente o seu jovem Comandante pisou uma mina AP num dos patrulhamentos na zona de Manhau. Coincidência das coincidências, fui eu em coluna auto, comandada pelo então Major Correia de Campos, buscar o Comandante da 3417, que acabou por ao fim do dia ter de ser levado por terra até ao HM 241 de Bissau porque o mau tempo não permitia a circulação de meios aéreos. Foi um dia terrível para nós e para os periquitos da 3417.

Já sabes que estamos receptivos às tuas memórias escritas e fotográficas, ao mesmo tempo que nos disponibilizamos para qualquer dúvida que tenhas.

A título informativo, chamo a tua atenção para algumas entradas no nosso Blogue referentes à CCAÇ 4142 e pelo menos para três camaradas teus, a saber: Sarg Chefe Victor Gonçalves, Alf Mil Virgílio Valente e Sold Cozinheiro Joviano Teixeira.

Se clicares nas palavras de cor diferente abres os respectivos links.

Em nome da tertúlia e dos editores Luís Graça, Eduardo Magalhães Ribeiro e eu próprio, deixo-te um abraço de boas-vindas.

Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14673: Tabanca Grande (465): José Rodrigues, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857 (Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) - 689.º Grã-Tabanqueiro

Guiné 63/74 - P14704: Agenda cultural (409): 3 dias, 30 filmes no feninino, 12 países... Festival Olhares do Mediterrâneo, 2º edição... Começa hoje,no Cinema São Jorge, integrado nas Festas de Lisboa


2ª edição do festival Olhares do Mediterrâneo - Cinema no Feminino > 5 e 7 de Junho de 2015  Lisboa, Cinema São Jorge. Festival integrado nas Festas de Lisboa... Três dias de festa, 30  filmes seleccionados, de realizadoras de 12 países do Mediterrâneo – Bósnia, Egipto, Espanha, França, Grécia, Israel, Líbano, Malta, Palestina, Portugal, Turquia e Tunísia




ABERTURA, 5 de julho de 2015, sexta-feira

21h30, Sala Manoel de Oliveira

Exibição do filme antecedida da Abertura do Festival

Longa-metragem  > FOR THOSE WHO CAN TELL NO TALES


Jasmila Zbanic, Bósnia Herzegovina, fic., 2013, 75’ (em bósnio e inglês, legendado em português e inglês)

Kym, uma turista australiana em viagem pela Bósnia, descobre o legado silencioso de atrocidades cometidas durante a guerra ao chegar a uma cidadezinha, aparentemente idílica, junto à fronteira da Bósnia com a Sérvia. 

Trata-se de um tributo reflexivo à memória do massacre de Visegrad [Guerra da Bósnia], durante o qual morreram cerca de três mil pessoas. O filme pretende confrontar o espectador com a verdadeira escala deste massacre e a sua negação por parte dos historiadores.


23h15 Sala 3 | Longa-metragem

Longa metragem >  KUMUN TADI (SEABURNERS)


Melisa Önel, Turquia, fic., 2014, 89’ (em turco, legendado em português)

No cenário invernoso da costa turca do Mar Negro, Denise e Hamit desenham uma geografia de silêncios, enquanto o mar lhes impõe barreiras, às vezes, intransponíveis.

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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de junho de  2015 > Guiné 63/74 - P14703: Agenda cultural (406): Apresentação do livro "Cabra-Cega", de João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de António Marques Lopes, levado a efeito no passado dia 3, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos

Guiné 63/74 - P14703: Agenda cultural (408): Apresentação do livro "Cabra-Cega", de João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de António Marques Lopes, levado a efeito no passado dia 3, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos

Foi apresentado no passado dia 3, em Matosinhos, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca, o livro de autoria do nosso camarada António Marques Lopes, com o título "Cabra-Cega" (Chiado Editora, Junho de 2015), autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que conta a história de António Aiveca.

Este livro, já aflorado no nosso Blogue, está a ser muito elogiado pelas pessoas que entretanto tiveram a oportunidade de o ler.

À cerimónia de apresentação compareceram vários camaradas de armas e amigos do autor.

Do evento ficam algumas fotos


Ainda antes do início da cerimónia de lançamento, os mais afoitos já corriam aos autógrafos
Na foto: Manuel Carmelita, José Manuel Cancela, Albano Costa, encoberto, e João Carlos Peixoto.

Aqui, Francisco Baptista junto do autor


A Mesa, composta pelo representante da Chiado Editora, Luís Pires; pelo escritor e antigo combatente, Jorge Ribeiro, a quem coube a apresentação da obra, e pelo autor, Marques Lopes, Coronel DFA.

Depois da intervenção do representante da editora, que abriu a sessão, Jorge Ribeiro apresentou a obra, resumindo em poucas palavras o que ele representa enquanto livro autobiográfico que pretende ir mais além de um registo de memórias de guerra. O livro começa por descrever as origens de um rapaz, António Aiveca, que um dia quis ser padre, filho de um tractorista e de uma ceifeira. Como todos os jovens naquela época, acabou por ter de cumprir o serviço militar obrigatório, sendo mobilizado para a Guiné, onde foi ferido em combate. Evacuado para o HMP de Lisboa, depois de recuperado voltou ao teatro de guerra.

António Marques Lopes falando do seu livro.

A assistência queria ouvir as palavras do autor, e este não defraudou ninguém. Disse que aquele livro poderia ter sido escrito por qualquer um dos que passaram pela guerra, por isso não utilizou os nomes verdadeiros das personagens e dos locais dos acontecimentos, não identificou a sua unidade, etc. Sendo a história verdadeira cada leitor se poderá retratar nela.

A assistência foi pouco colaborante com perguntas, tendo havido apenas duas intervenções dignas de realce.

A primeira a cargo do Coronel Antero Ribeiro da Silva, amigo do Marques Lopes, que preside à Delegação Norte da Associação 25 de Abril, que falou da nobre missão levada a cabo pelas forças armadas durante a guerra do ultramar e da sua acção que muito contribuiu para o seu fim.

Deu os parabéns ao autor pelo seu contributo à já numerosa literatura de guerra, um meio de perpetuar o esforço de uma geração sacrificada.

O Coronel Rbeiro da Silva no uso da palavra

Interveio seguidamente o camarada Abel Fortuna, Presidente da Delegação do Porto da ADFA, que agradeceu também o contributo do Coronel Marques Lopes e lembrou a condição de Deficiente das Forças Armadas, assim como a necessidade de que se continue a acompanhar aqueles que sofrem física e psicologicamente os efeitos da guerra.
 
Abel Fortuna, Presidente da Delegação do Porto da ADFA, falando aos presentes

Aspecto da sala lotada com muitas caras conhecidas da Tabanca Grande, da Tabanca de Matosinhos e outros amigos do Coronel Marques Lopes, que não quiseram faltar ao lançamento do seu livro.

Fotos: © Carlos Vinhal e enviadas por Marques Lopes
Texto e Legendas das fotos: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14675: Agenda cultural (405): "África em Lisboa": cinco países irmãos (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé), cinco dias (de 27 a 31 de maio), no Museu da Carris

Guiné 63/74 - P14702: Notas de leitura (722): “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Um vendaval de ação e muito sexo com preservativo neste vibrante romance onde o narcotráfico e o radicalismo islâmico e a tirania de Bubo Na Tchuto são omnipresentes.
Iremos rir com o português esfarrapado que Gérard de Villiers forjou. Bubo, como é sabido, caiu numa cilada norte-americana e provavelmente irá apodrecer numa das suas prisões. Impressionam as descrições das rotas da droga neste romance que se lê num ápice, condimentado com os ingredientes clássicos da selvajaria e dos urros no sexo satisfatório, o desfecho é sempre a reparação que cumpre à CIA fazer para quem prevarica e perturba à ordem norte-americana.

Para que conste, um abraço do
Mário


Gérard de Villiers e a Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

“Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014, é a obra em que um dos mais populares autores franceses de livros de aventuras e espionagem abordou a Guiné-Bissau da droga. Um agente da CIA proveniente de Dakar será assassinado por homens do contra-almirante José Américo Bubo Na Tchuto, aliado guineense dos narcotraficantes e declarado terror da sociedade civil e política da Guiné. É aqui que entra em cena Malko Linge, o herói dos romances de Gérard de Villiers. Malko chega a Bissau e vem com vários propósitos: vingar a morte de Lemon, apurar o que os radicais islâmicos, sediados no Mali, tramam com a conivência de Bubo Na Tchuto, quem são os colombianos que com este negoceiam e qual o percurso que a droga leva a partir da Bissau.

Os romances de Gérard de Villiers celebrizam-se pela ação e pelo sexo escaldante. Malko irá conhecer a companheira de Bubo, de nome Agustinha, uma verdadeira beldade que comete a leviandade de dizer ao todo-poderoso Bubo que há um branco que lhe faz a corte. Enraivecido, o delinquente dirige-se com os seus mercenários ao Bissau Palace, quer desfazer à catanada o atrevido que importunou Agustinha. Malko escapa de ser retalhado. No bar Kalliste, em Bissau, aluga um quarto e pelo telemóvel conversa com o chefe da estação da CIA em Dakar. Recomendam-lhe que peça proteção a um oficial da União Europeia em Bissau. Malko pede uma entrevista à Ministra do Interior da Guiné, esta confessa-lhe que não lhe pode dar proteção, no entanto informa-o que três mauritanos ligados à Al Qaeda no Magreb islâmico estão num hotel em Quinhamel. É precisamente para Quinhamel que Bubo se dirige, pretende saber quando é que o Emir Mokhtar Ben Mokhtar vem à Guiné para receber milhões de dólares do narcotráfico e que serão carreados para ações terroristas. Só consegue apurar que a sua vinda está para breve. Bubo está inquieto com este branco que pode vir destabilizar a operação da chegada de toneladas de droga aos Bijagós.

Gérard de Villiers

Malko pede ajuda no Kalliste para chegar aos Bijagós incógnito. Em Bubaque, é recebido por Alex que lhe descreve as rotas da droga, quem são os colombianos e o suporte que lhes é dado por Bubo Na Tchuto. Malko terá oportunidade de ver as pistas de aterragem do aeroporto de Bubaca, que são eliminadas à noite por jovens, às ordens dos colombianos, sempre que chegam carregamentos de droga. E regressa a Bissau, continua atormentado com a história dos três mauritanos que são protegidos por Bubo, é nisto que surge Agustinha, que lhe prepara uma cilada, por ordem de Bubo. Luís Miguel Carrera, o importante narcotraficante colombiano, recebe-o em casa, à primeira ocasião agride-o, e dá ordens para o sepultarem numa cova do jardim. Acontece um milagre, claro está. Os executores emborracham-se com vinho de palma, zonzo e dolorido, Malko escapa de ser assassinado, vai começar uma grande perseguição, é impensável que aquele homem possa sair vivo de Bissau. Sidi Oulm Sidani, o representante do Emir Mokhtar, exige a Bubo que mostre a cabeça do espião quando o chefe radical chegar à Guiné-Bissau. Bubo e Luís Miguel, à cautela, preparam o assassinato de um branco para disporem de uma cabeça, aquela operação é demasiado importante para os dois, há que tranquilizar de qualquer maneira o radical islâmico.

Todos os apoiantes de Malko em Bissau lhe pedem para fugir do país, parece completamente impossível ele escapar com vida do cerco que lhe estar a ser feito. Malko interpela imprevistamente Agustinha que fica petrificada com aquele fantasma. Agustinha leva-o para sua casa, exige-lhe informações, fica a saber onde estão os mauritanos, ela não sabe que plano está a ser executado, pede-lhe ajuda para voltar aos Bijagós. Vamos, entretanto, sabendo mais sobre os itinerários da droga entre a Guiné e a Europa: a rota na Mali é percurso obrigatório, dali partem caravanas até Marrocos e a Argélia. A segurança no Mali é indispensável, há que contar com os radicais islâmicos. É aí que entra o Emir Mokhtar que precisa de dinheiro para munições, armas, combustível e comida, muito dinheiro, a maneira mais fácil do arranjar é através da droga guineense. Um dos suportes de Malko é um alto funcionário colocado nos serviços de informação na Amura, Djallo Samdu, dá-lhe a saber que o Emir Mokhtar já vem a caminho. É preciso pedir apoio à estação da CIA em Dakar para montar o cerco ao chefe terrorista.

Enquanto isto se passa, Malko consegue despistar os seus perseguidores, volta para casa de Agustinha temos ali sexo escaldante e depois ela leva-o muito discretamente até ao porto, de novo com destino aos Bijagós. Quem esteve nos Bijagós foi Luís Miguel Carrera para assassinar um branco e trazer-lhe uma cabeça, era uma exigência obrigatória do Emir maliano.

A ação acelera-se, o Emir chega a Quinhamel, é visitado por Luís Miguel Carrera e por Bubo, exige uma quantidade impressionante de dinheiro, ficou mais descansado depois de ver uma cabeça apodrecida, é do chacal norte-americano. Em Bubaque, Malko confirma que a operação de desembarque da droga está para as próximas horas. Steve Younglove, o chefe da estação da CIA em Dakar, informa-o que vai ser lançada uma operação para sequestrar o chefe terrorista, a droga não é assunto que interessa à CIA mas a um outro departamento, a DEA (Drug Enforcement Administration). Tropa especial irá desembarcar em Bissalanca, trará carros de combate especiais para ir até Quinhamel.

“Féroce Guinée” tem todos os condimentos para uma disciplinada tensão, o grande clímax já paira no ar. Alguém denuncia Agustinha a Bubo, ela será cruelmente executada, como abatido será Djallo Samdu dentro da Amura, sem que ninguém intervenha. As “Special Forces” chegaram na hora certa, Malko junta-se-lhes e vão para Quinhamel. Antes, teve lugar mais uma feroz perseguição nas ruas de Bissau, como num bom romance de aventuras, após uma movimentada perseguição, Malko liquida Pablo, o homem de mão de Luís Miguel Carrera. Em Quinhamel estão todos reunidos, há muito dinheiro em jogo.

Omitem-se aqui atos truculentos, sempre que pode Bubo fende o crânio dos seus inimigos e arranca-lhes o coração, besta mais sanguinária não há. Como mandam os bons preceitos, tudo parece estar a correr bem aos criminosos até que em Quinhamel a CIA captura o temível radical islâmico e Malko cumpre as boas leis da justiça, a CIA agradece, como manda o refinamento do cinismo, Steve Younglove lembra a Malko que legalmente lhe está interdito de matar. O bem vence o mal, a derrota da droga foi brutalmente posta em cheque.

Como “literatura de aeroporto” cumpre a sua missão, o herói sobrevive a todos os pesadelos e barbaridades, fica-se a saber que houve um narco-Estado onde a CIA fez justiça não por causa da droga mas por causa do radicalismo islâmico. Isso é que é importante, os africanos que se amanhem e aprendam a libertar-se destes tiranos sanguinários.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14685: Notas de leitura (721): “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14701: (Ex)citações (275): Hospitalidade, brejeirice e ... instinto de sobrevivência das mulheres e bajudas fulas de Nhala, na receção aos "periquitos", em 29/4/1973 (António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)



Vídeo (1' 02'' ). Alojado em You Tube > ADBissau
(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)



Vídeo (0' 44'' ). Alojado em You Tube > ADBissau 

(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)


1. Excerto do poste P14691 (*), da autoria do nosso camarada António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) [foto à esquerda]

(...) À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia.

Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

E cantavam acompanhando com palmas:

Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!. 

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné (**). E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"


E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc. (...)

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam. (...)

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente.

E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas.

Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão apalpou minha mama!

E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?

E estava o caso resolvido. (...) (***)

2. Comentário do editor LG:

A propósito da conferência “Filhos da guerra”, no âmbito do Festival Rotas & Rituais (Lisboa, Cinema São Jorge, 22 de maio de 2015), tomei nota no meu canhenho:

 “Temos dificuldade em abordar em público este problema, o das nossas relações com as mulheres guineenses no tempo da guerra colonial. Pior ainda, num público feminino ( e senão mesmo feminista), português e africano, ou de origem africana… Somos, os homens, facilmente “suspeitos de cumplicidade” uns com os outros… Os homens são todos iguais, em toda a parte, defendem-se uns aos outros, dizem elas…

"A intervenção, longa e incisiva,  do Jorge Cabral, em tempo de debate, acabou por provocar algum sururu na sala. Disse ele, em síntese:

- Defenderei até à morte a honra do soldiado português na Guiné. Nós não eramos  nenhum emprenhadores compulsivos. Mais: atrevo-me a dizer que 80% a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram quaisquer relações sexuais com mulheres africanos… E se querem falar de prostituição organizada (que no meu tempo praticamente se restringia a Bissau e, em pequena escala, a Bafatá), pois tenho a dizer que é muito maior hoje, só na capital da Guiné-Bissau, do que no meu tempo"…
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Notas do editor:


Guiné 63/74 - P14700: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II): Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui"...



Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 4 >  Abrigo



Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 6 > Posto de vigia  




Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 5 > Posto equipado com metralhadora pesada


Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 1 >  Picada... para Cantacunda  


Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 2 > Convívio com a população local.


Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 7 > Arame farpado...   Não impediu que o destacamento fosse atacado na noite de 10 para 11 de Abril de 1968, de que resultaram 11 prisioneiros (incluindo 1 furriel, o Vaz, e dois cabos)  e 1 morto. Os prisioneiros foram depois levados para Conacri. Foi um dos maiores roncos do PAIGC, em toda a história da guerra colonial.,.. Onze tugas "apanhados à unha", com a alegada cumplicidade de alguém do pelotão de mílícia local...



Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 8 > Chifres: quem não os tem, pede-os emprestados...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem complementar: LG]


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Geba > CART 1690 (1967/68) > Destacamentos e aquartelamentos >  A CART 1690, com sede em Geba, tinha vários destacamentos: Cantacunda, Sare Ganá, Sare Banda, Banjara... Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. Banjara (a noreste) e Cantacunda (a norte) eram o destacamento mais distante: ficavam a 45 km e 50 km, respetivamente, da sede da companhia, que era em Geba... Banjara não tinha população civil e estava cercada por mata;  era defendida por um pelotão, 30 efectivos; a  um quilómetro havia uma fonte onde, alternadamente, os NT  e o PAIGC se iam fornecer de água. Às vezes, encontravam-se… Mas havia uma fuga concertada dos dois lados, sem tiroteio.

Como se pode ver pelo "croquis" supra,  o destacamento de Banjara tinha, a norte, a base IN de Samba Culo, e  sul a base IN de Sinchã Jobel. Os abastecimentos eram feitos por terra, com grandes dificuldades. Às vezes demoravam muito tempo, pelo que era necessário recorrer aos "produtos da terra", isto é, apanhar algum bicho para comer (javalis, pássaros, macacos e, até cobras).


Infografia: © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.


1. O A. Marques Lopes já nos descreveu, em poste anterior (*),  as circunstâncias (que eu diria  insólitas, quiçá caricatas e até burlescas, se não tivessem sido tão dramáticas) em que ele se perdeu no mato e descobriu, atónito, a base do IN em Sinchã Jobel, no decurso da Operação Jigajoga, na noite de 24 para 25 de Junho de 1967.

É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o infermo físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das suas poderosas (mas pouco comvincentes) razões de Estado...

Há 10 anos atrás eu já tinha a visão (premonitória) de que esta história sairia em livro (**):

Na altura, em 2005, fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, o texto que voltamos a reprodzuir, poderia ser o excerto de um livro em curso:

"Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia"....

O A. Marques Lopes é um de nós,  que regressei do inferno e ainda está  vivo para contar, a única diferença talento literário para nos dizer como é que um  homem é capaz de sentir, pensar e fazer numa situação-limite como a guerra. Naquele já longínquo  dia 25 de Junho de 1967, de manhã, na região de Massomine, perto de uma antiga tabanca chamada Sinchã Jobel, ams barbas dos homens que o queriam matara ou apanhar vivo, o alferes mil Lopes, antigo seminarista,  regressava ao  mundo dos vivos, sob a proteção dos bons irãs da floresta, exclamando e ordenando aos bravos do seu pelotão:  "É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui".



2. Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II):  Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui" (***)...


Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... Eles não nos deixaram aproximar mais por outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas...

Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.

Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me veem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau!

Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina?

Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exato e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.

Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres[, no seminário], ttnha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.

Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu, aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... Aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... Avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde, por aqui, mais ou menos, estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.

A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo reto. Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio,  era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima.

Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.

Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?...

Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.

A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...

Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa. Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas.

A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa. Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.

Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.

Relaxa e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "IN" e o "turra" são, de facto, expressões meramente referenciais e sem o significado profundo contido nas palavras "inimigo" e "terrorista". Se não abreviasse, é claro que eu acabava por me cansar a pronunciar as palavras por inteiro. Passaria, enfim, a tratá-los com demasiada familiaridade, teria que me arrimar aos inevitáveis "os gajos", ou "os tipos" ou mesmo "os filhos da puta". Era tratá-los como trato, às vezes, os que me são indiferentes, os que me pisam ou dão um empurrão...

Isto seria, seguramente, o abandalhamento da guerra. Em vez de balas a malta começava a amandar-lhes com nomes feios, a gritar-lhes que fossem levar no olho, que não chateassem, que nos deixassem em paz... Era complicado. Não havia guerra que durasse. Poderia ser uma das consequências, resultante do cansaço pelas palavras difíceis e compridas demais para inserir na linguagem corrente da soldadesca. E poderia dar noutra coisa, se o maralhal não usasse profusamente estas abreviaturas: ao pronunciar por inteiro as palavras "inimigo" e "terrorista" é natural que começássemos a interrogar-nos sobre a correspondência entre o significado e o significante...

Ai estas aulas de linguística!... O que é isso de "inimigo"? Aqui, na terra deles, são eles meu inimigo?... Atacam-me para me roubar, para ficar com o que é meu?... Têm interesses opostos aos meus e atacam-me, por isso?... Para eles, sou eu o inimigo? Venho roubar o que é deles? Tenho interesses opostos aos deles?... Claro, cinco séculos de história, civilização, blá, blá, blá..., como diz o Salazar. O facto é que isso se traduz nos libaneses a dominar o comércio, no nazi Landorf, fugido da Alemanha depois da guerra, a vender quinquilharias aos pretos de Geba.

Eu, aqui, só estou a perder uma coisa: o curso de filologia românica que estes filhos da puta não me deixaram continuar. ... Não me parece que o "IN" seja meu "inimigo". Eu sou, com certeza, o "inimigo" deles. Linguística à parte, isto é mesmo uma situação aberrante.

Há pouco, quando os vi ali todos juntos, ainda pensei em disparar. Acabei por não o fazer e acho que fiz bem. É claro que eles devem ser muitos mais do que os que andam por aqui... E, sei lá, disparar, assim à queima-roupa sem que eles esperassem, sem mais, ainda era capaz de ficar com algum peso na consciência... Os meus anseios nunca foram matar. Só por medo o faria, por necessidade, pela situação.

Tenho encarado isto como uma aventura. A verdade é que nunca desejei vir para a guerra. Se me tivessem dado o adiamento da incorporação, estaria, agora, a terminar o segundo ano de românicas. Eu até gostava daquilo. Mas aos senhores da guerra não interessam os doutores em letras. Se eu estivesse em engenharia ou medicina, isso sim... há sempre pernas e braços para cortar, certidões de óbito para passar, há que fazer quartéis, arame farpado para erguer e picadas para abrir. Para os doutores ou candidatos de letras há que pôr-lhes mas é uma canhota nas mãos. Na guerra não servem para mais nada...

Se eu tivesse continuado nos padres, o mais certo era não ter vindo à guerra ou, então, vinha como capelão, um ofício que, aliás, também faz muito jeito na guerra. Há preconceitos a alimentar, consciências a adormecer e angústias para apaziguar. Sou vítima da vingança concertada dos senhores da guerra e dos senhores da consciência: já que não quiseste reconhecer os imensos benefícios da religião, sentir a honra de pertencer ao número dos eleitos, vais sentir as agruras da guerra... que é um inferno na terra.

Dentro em breve será noite. Já se estendeu sobre a bolanha um manto enorme de sombras, sinal de que o sol se começou a esconder por detrás da grande floresta de poilões que rodeiam a clareira de Jobel.

Já não estou tão calmo e seguro. A previsão do perigo eminente, a expetativa da emboscada ou do ataque repentinos não são nada comparados com um perigo que nos rodeia mas que não sabemos qual é, nada em comparação com este manto de escuridão que se abate sobre nós, que se entranha na minha farda, que me cobre as mãos, as pernas, o local onde estou. As trevas, meu Deus, é o pior que me pode acontecer. Mil vezes a emboscada que desaba sobre o grupo, mas que eu vejo, que acabo por limitar em todas as suas proporções, do que o perigo que só se imagina mas que nunca se vê, nem mesmo quando está em cima de nós.

Nesta terra de ténues ondulações,  a noite surge depressa. Começo a não distinguir as minhas próprias mãos. Não percebo como os outros ao longe as poderão ver. Mas vou fazer o que mandam as regras, barrá-las, e à cara também, com esta lama onde me assento. Mas, antes, vou beber desta água que me tem de molho há várias horas. Os outros já estão também com falta de água...Que remédio, tenho sede. Nunca a fome me atacou durante todo este tempo, mas a sede é um tormento e eu quero que se lixe a limpeza. Vou mesmo beber esta água, agora que já não consigo ver o seu grau de sujidade e inquinação.

Os sons noturnos assumem proporções descomunais em relação aos diurnos. Aquilo que durante o dia me parece uma grande algaraviada, uma sinfonia de cacofonias, aparece-me agora como uma execução em estereofonia. Consigo distinguir todos os sons e vozes de pássaros. Aquilo que me parecia uniforme na promiscuidade de vozes aparece-me agora como o conjunto de várias espécies de pássaros e mamíferos. Não sei identificá-los pelo nome, a não ser o dos macacos, mas sou capaz de os contar através das diferenças de vozes. Na margem da bolanha, entre as árvores, são os macacos e os periquitos que dominam. Aqui, por aqui mais perto, são as moscas e mosquitos que não cessam de zumbir aos meus ouvidos. De vez em quando há um ruído na água. Pode ser um peixe a saltar, mas também pode não ser... Ao longe, um pássaro, penso eu que é um pássaro, lança um pipilar modulado que mais me parece um uivo de lobo. Mas, segundo sei, aqui na Guiné não há desses bichos...

Quem me dera a mim que se ouvissem só os macacos, os periquitos, as moscas e os mosquitos! O que me enerva e causa medo são os mil sons que eu desconheço. Este borbulhar na água pode ser uma cobra e aquele chapinhar mais além pode ser um javali, o resfolegar que vem das palmeiras pode ser uma onça...

Lá mais para a frente, do outro lado da clareira, precisamente daquele sítio onde os guerrilheiros montaram a emboscada, vêm ruídos que parecem provocados por pessoas. Ia jurar que há uma tabanca para estes lados... Como é que eu não me apercebi destes ruídos durante o dia? Seria mais lógico que os ouvisse melhor , uma vez que as pessoas fazem mais barulho durante o dia do que à noite. As marteladas, ou outras pancadas em madeira, deveriam ser mais audíveis durante o dia, quando não há tanta preocupação em manter o silêncio, em não incomodar.

A explicação tem de ser esta: a tal enorme cacofonia diurna, que não deixa qualquer hipótese de identificação dos sons a que nos habituámos no nosso dia-a-dia. Porque a noite não deve ter sons, qualquer um que surja é identificável e sobressai no meio do silêncio, como milhares de pirilampos que, apesar de minúsculos, sobressaem na escuridão sem, no entanto, se conseguirem juntar num sol que torne a noite em dia.

Distingo perfeitamente os toques na madeira. Pilão ou martelo, é bater de gente. E surgem agora sons que só podem ser vozes de gente também. Então, contrariamente ao que me garantiram, esta zona não é desabitada! Isto explica a emboscada. Entrei no terreno deles, com tanto à vontade... e estupidez! Tenho de falar com o palerma do major de operações... se conseguir sair daqui.

De olhar no escuro, tentando fazer luz com os olhos e com a mente, ver mais além do que esta escuridão me permite, na expectativa. Esta noite faz-me lembrar outras noites que passei à janela, de olhar perdido no escuro ou na barreira de ciprestes que cercavam aquele pequeno mundo do seminário. Mas bem pior estava então, apesar de tudo. Neste momento, estou esperando, pacientemente; nervoso, mas não desesperado; receoso, mas não em pânico; sozinho, mas não perdido. Não estou triste, não choro e não desejo a morte. Pelo contrário. Impaciente, desesperado, perdido, em pânico e desejando a morte... assim era eu, não há muito tempo. Passaram-se apenas três anos. Tinha vinte anos e não tinha outros horizontes senão uma vida de torturas e recalcamentos, ou o inferno como alternativa.

Mais do que as obrigatórias meditações em conjunto no seminário, no meio dos maus cheiros dos "irmãos em Cristo", de olhos fechados em atitude piedosa, este é o ambiente ideal para meditar, ligado pela escuridão à natureza. Naquelas mais de mil noites nunca consegui estar sozinho, apesar de me lamentar de uma solidão terrífica. Os outros e a organização estavam sempre presentes em mim, quando lutava sozinho para me ver livre deles. Por isso mesmo. Enquanto tive dúvidas nunca me largaram. Só me deixaram quando eu passei a ter a certeza do que queria e do que não queria.

Aqui, na guerra, não há outra coisa que me ligue aos outros a não ser o desejo de sobrevivência, e este desejo liga-me efetivamente, mas não o sinto como prisão. Pelo contrário, liberta-me para este tipo de meditações, para aceitar e tirar partido desta noite, para estar com todos no desejo de regressar, de não morrer, de viver. Lá, não. Os laços que me prendiam aos outros só me arrastavam para desejos de morrer e de os odiar. Aqui, na guerra, não há perigo de ter dúvidas, a certeza surge-nos dos factos do dia-a-dia. É tudo muito real, muito direto, entra-nos pelos olhos dentro, por todos os sentidos. Quando se nos revela assim, e surge sempre, mais tarde ou mais cedo, é um facto que faz parte de nós e é, portanto, uma certeza. Quando vim para cá não sabia nada o que era esta guerra. Mas já estou a saber o que é.

Tenho-me interrogado variadas vezes sobre as razões por que entrei para o seminário. Mais para carpir uma mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sei. Foi a minha condição de menino pobre que me pôs perante essa necessidade. Mas nem por isso, naturalmente, fui responsável por essa decisão. A necessidade foi dos meus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se arvorou em meu protetor. As pressões daí decorrentes, o meio em que passei a ter de me mover, fizeram o resto.

À distância, sinto em mim uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-me mais cedo dessa catástrofe que sucedeu na minha vida. Mas, nem sei se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspetiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se cheguei, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?...

Já tenho desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não consigo. Numa guerra, nesta guerra em que me encontro como interveniente ativo, a fuga, os desejos, a esperança, a ideia de quem morre são os outros e não eu, tudo está depositado em Deus, que me há-de proteger e guardar... Mas porquê a mim e não aos outros?... aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos?

É uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afoga e perde naquilo que a minha formação religiosa chama "os insondáveis desígnios de Deus"... Quer dizer que, se eu morrer ou ficar estropiado, foi desígnio de Deus, se eu sair bem disto tudo, será também vontade de Deus. E posso, desta maneira, encontrar em Deus a "explicação" de todas as coisas, poderei continuar tranquilamente a fazer a guerra. Posso matar, porque nos desígnios de Deus tanto pode estar o castigo como o prémio. O desígnio que eu mate, o desígnio que o outro morra. O prémio para mim que matei e não morri e o castigo para o outro que não me matou e morreu? Ou serei eu castigado porque matei e o outro terá um prémio na outra vida porque não me matou? Se eu comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, serei condenado às penas eternas ou entrarei no rol dos bem-aventurados? Serei condenado ou premiado se tiver obedecido aos meus "legítimos superiores", àqueles que " têm sobre si a pesada responsabilidade de governar e mandar"? Serei condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César". A citação fatal do diretor do instituto filosófico onde andei, quando seminarista, o qual, desta forma, tentava calar as minhas dúvidas. Que confusão, se o que interessa a César vai contra o mandamento "não matarás"! É uma resposta hipócrita. Procura justificar a passividade da Igreja perante a guerra... Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra?

Antes de vir para a Guiné, o meu batalhão foi obrigado - é o termo - a assistir a uma missa na parada do quartel. Tal como no tempo das cruzadas, quando se partia para combater os infiéis e libertar os lugares santos. O padre capelão, o senhor major-capelão, fez uma eloquente exortação ao cumprimento do dever para com a pátria, da necessidade de defender os valores da civilização ocidental e o património legado pelos nossos antepassados... Enfim, a mesma conversa dos senhores da política, abstrata, situada em algo que não me toca, em valores que não compreendo, em património que não possuo. E, ainda por cima, era um dos padres do seminário onde andei, um que eu bem conhecia.

Pode a Igreja justificar a sua atitude perante a guerra pela necessidade que há de acompanhar, assistir os soldados que passam dias e meses, anos até, de profunda angústia e desespero? Que o objetivo não é apoiar a guerra, mas sim servir de consolo religioso a quem necessita da religião? Para mim, não serve. Tentando diluir as contradições que naturalmente emergem da mente de quem é religioso, está-se a colaborar na manutenção de uma situação que o soldado não deseja instintivamente, está-se a diluir as dificuldades para que essa situação indesejável se mantenha o máximo possível. E, o que é mais grave para mim, não se responde às angústias e interrogações de quem se vê confrontado com uma realidade que é pura negação de tudo o que lhe incutiram de bom, de justiça, de amor, de fraternidade.

Utilizando uma única frase dos Evangelhos - dar a César o que é de César - subverte-se todo o restante texto dos livros sagrados. Por oportunismo, pela mais rematada hipocrisia. São muitas as críticas que tenho a fazer àqueles que dizem representar-te cá na terra, ó Deus. Mas confio que me hás-de ajudar a sair deste aperto.

Tenho os membros anquilosados de tanta imobilidade. A pele das mãos está toda encarquilhada pelo permanente e prolongado contacto com a água. O mesmo deve suceder com os pés e com o material, devo ter tudo mirrado e encolhido.... Sinto nas mãos, nos braços e pelo corpo todo uma imensa comichão que, curiosamente, nunca tive vontade de coçar. Estou cheio de bolhas e ampolas, que só vejo nos braços e nas mãos mas que devem estar por todo o corpo, até na cara. À minha volta há milhares, talvez milhões de mosquitos e moscas tzé-tzé. A minha esperança é que só tenha sido picado por novecentas e noventa e nove moscas do sono... segundo dizem as estatísticas, só uma em mil é portadora da doença do sono, não é?... De qualquer modo, não sei se me fariam efeito: estou tão cheio de vacinas contra tudo que essa tal milésima, se me picou, deve ter morrido intoxicada, com certeza...

Devo ser um nojo completo. Uma merda da cintura para baixo.

Começa a surgir uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma luz branca muito mortiça. Por aqui, começo a vislumbrar uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Há outro silêncio neste despertar da mata e dos seres que a povoam. Imagino-os dolentes, agora conscientemente enrolados sobre si mesmos, sem se mexerem, como fazem inconscientemente durante o sono. Procuram forçar o prolongamento desse sono. Por isso, este, agitado ou tranquilo, deu lugar a modorra prolongada e estática, intencionalmente silenciosa, para não acordar. No entanto, porque não é só o ouvido que está desperto e atento, como sucede na mais completa escuridão, toda esta imensa calma que precede a agitação e luta de mais um dia na vida da natureza é apenas perceptível ao nível dos sentimentos mais íntimos do meu ser, pois a luz que penetra nos meus olhos desperta nestes uma segunda dimensão que faz sentir as coisas de uma forma avassaladora e total. Tudo aquilo que povoou a minha mente, os ruídos que se apossaram de mim através do ouvido, tudo isso passou a estar submerso pela impressão visual do que me é exterior. Durante estas horas de vigília noturna estive dominado e cercado por mim mesmo, por toda a minha vida, pelo passado.

Agora não. Sinto que tudo se vai diluindo, que a realidade externa se apossa de mim, que a posse da totalidade dos meus sentidos me introduz novamente no seio do meu destino, composto também de exterior. É uma visão "ruidosa", na medida em que este contacto com a realidade da manhã consegue abafar o domínio exclusivista do ouvido e do raciocínio. O conjunto harmonioso da vida não deixará que prevaleçam as sensações parcelares e limitadas. A total percepção da realidade não deixará que me deixe dominar por um único dos seus aspetos. A perfeita e clara perceção em todos os sentidos, agora, não deixará que me domine o medo do desconhecido ou do indefinido.

É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui.

A. Marques Lopes

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João