CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
29 - De 8 a 16 de Abril de 1974
Da História da Unidade do BCAÇ 4513: O reconhecimento de Sua Excelência
ABR74/08 – (...) De Sua Excelência o General Governador e Comandante-Chefe, foi recebida uma mensagem, manifestando o seu apreço pelo esforço desenvolvido pelo pessoal empenhado na segurança e trabalhos das duas frentes de estrada A. FORMOSA-BUBA.
Das minhas memórias:
15 de Abril de 1974 – (segunda-feira) – A estrada. Sempre a estrada
Em carta para a Metrópole refiro a dado passo: “Neste momento estão, ao todo, 7 grupos de combate em Nhala. Três, para além dos da minha Companhia, devido às obras da estrada nova. As máquinas ficam no mato a cerca de 9km daqui e temos de pernoitar lá para as proteger. Ainda mais, junto a um corredor do PAIGC. Passam-se, assim, 26 horas fora do aquartelamento”.
Era mesmo assim. Depois do encontro das duas frentes de trabalho ocorrido no passado dia 7 e com as máquinas a operar cada vez mais longe, para além das picagens de manhã cedo e da protecção às obras ao longo do dia, ainda tínhamos que dormir no mato para proteger a maquinaria. Era necessário rodar os grupos de combate nestas rotinas. Daí o reforço da tropa em Nhala.
E como era dormir no mato, em campo aberto, quase em cima de um trilho do inimigo? E, já agora, como era a última refeição do dia em tais circunstâncias? Tentarei dar uma ideia a seguir. Antes, referir que a preparação, de véspera, para um dia tão longo, era feita com mil cuidados e muitas preocupações. A Engenharia construíra no local de pernoita um abrigo à superfície, apenas com terra, que parecia uma LDG com uma barreira de segurança que a dividia em duas. Era assim uma espécie de barca do inferno mas, para não associar o Gil Vicente a um empreendimento sem grandiosidade, chamar-lhe-ei “LDG” em terra.
Antes de escurecer instalávamo-nos na “LDG” e organizávamo-nos como num destacamento, de modo estratégico e com sentinelas toda a noite em rotação. Dada a proximidade da mata nas nossas costas, o que eu mais temia era um assalto. E nós éramos apenas um grupo de combate desfalcado. Instruía todos para essa eventualidade. Recordo bem que, a pensar nessa situação extrema, arranjei de véspera uma saca velha de farinha e nela carreguei seis ou sete granadas defensivas (um peso do caraças, para além das que sempre usei à cintura), e que foi a minha cabeceira no dia das fotografias que junto.
Da mata à nossa frente, muito para além da estrada, e onde por mais de uma vez foram vistos vultos em movimento na orla, o meu receio era a flagelação prolongada. Mas também essa hipótese foi acautelada com maior quantidade de granadas.
Outro receio fundamentado era que, de manhã, com a chegada dos novos grupos de combate e as viaturas que nos levariam de regresso, fôssemos atacados aproveitando a inevitável confusão e excesso de homens no terreno, como já ocorrera noutros locais. Mas nem de noite nem de manhã aconteceu nada. Também poderíamos ser emboscados na correria maluca de regresso a Nhala, duas ou três viaturas com um pelotão mal dormido, desacautelado de cuidados. Enfim, mesmo ao almoço não estávamos livres de nos engasgarmos e morrermos asfixiados com as salsichas da bianda...
Imagem de satélite do Google Earth (2013), com a devida vénia, onde realcei a branco a estrada de A. Formosa-Buba (1973-74). A linha que tracei do “carreiro” de Uane é aproximada e intercepta a estrada (círculo vermelho) a, mais ou menos, 9 km de Nhala. Do lado de Buba não recordo a localização dos carreiros. As imagens que se seguem referem-se a uma das dormidas no mato na zona do círculo vermelho.
Foto 1: Abril de 1974 – Local de concentração das máquinas da Engenharia após mais um dia de trabalho. É aqui que iremos passar a noite para a sua protecção. Em primeiro plano, parte do pessoal de um grupo de combate da CCAÇ 18, creio, que estiveram com o meu grupo na protecção às obras durante o dia, e que agora se preparam para regressar a A. Formosa, deixando-nos sós. Vê-se uma White dos nossos camaradas da Cavalaria que os vão acompanhar. Tirando este bocadinho de terreno com sombras, onde até se podia fazer um piquenique, tudo em redor é inóspito e desolador. Um cenário de matas e terras revolvidas, quase apocalíptico. Em contraponto, o humor do pessoal parecia desenquadrado, como se não estivessem ali para o que se sabia. E quando assim era, significava que nada de mal nos acontecia. E não aconteceu.
Foto 2: Lamentavelmente desfocada, mas única, esta fotografia de mais alguns elementos do grupo de Cavalaria.
Foto 3: Todo o pessoal abandona o local e regressa a A. Formosa. Esta White teve um dia uma fraqueza de ânimo mesmo à minha frente, em Nhala. Mais tarde contarei o episódio.
Foto 4: O meu grupo de combate dispersa-se e toma a última refeição do dia, antes de se abrigar para passar a noite. Que virá rápida. De pé, da esquerda para a direita: Furriel Oliveira, Rui Pereira, Furriel Pastor e 1.º Cabo “Tarouca”. Sentados: Manuel Gomes, à esquerda, e o Baptista à direita. O do centro não recordo o nome.
Foto 5: O Furriel Oliveira faz a distribuição de água.
Foto 6: Este é o Victor, andrajoso mas de grande carácter e bonomia. E safado. Foi preciso a película dos slides fazer o périplo Guiné-Metrópole-Espanha-Metrópole-Guiné, para eu perceber aquele riso sarcástico: tinha as calças rotas e uma exposição indecorosa. Na altura, com o cantinho de uma lâmina raspei do slide as indecências. Quer dizer, estraguei o slide.
Foto 7: O grande e eficiente bazuqueiro do grupo, “Mafra” (por ser de lá). Ao fundo vê-se o 1.º Cabo maqueiro, Custódio.
Foto 8: O Alferes António Murta a dar corda a uma lata de feijoada, creio. O que recordo bem é que no final do repasto comi duas ou três mangas apanhadas ali próximo (Samba Sabali?). Fora o conselho de alguém para que passasse a noite sem ter frio...
Foto 9: Rapazes do melhor que havia, e eram muitos no meu grupo. Da esquerda para a direita: José Gomes, “Mafra”, Victor e Osório (de costas). O Osório é de Coimbra e encontrei-o uma vez, para alegria de ambos. Pena que não tenha fotografado a totalidade do grupo, mas nem sei se tinha película para todos. Nem os custos eram como os de hoje.
Foto 10: O Sol ainda não espreita. Uns dormem, outros vigiam. Eu recomeço a fotografar. Esta imagem foi captada da barreira que divide em dois o grande abrigo: “LDG” em terra, lado do morteiro. E de Nhala.
Foto 11: Ainda do lado do morteiro, com o pessoal já despertar. A humidade nos ossos ficaria ainda por muito tempo.
Foto 12: O lado oposto da “LDG” com o “posto de comando” em primeiro plano, onde se vê o Furriel Oliveira a tomar o pequeno-almoço junto à minha cama. Na minha cabeceira é visível o cordão da saca das granadas defensivas. Felizmente, teria de carregar com elas de novo no regresso. Próximo, vê-se o “posto de rádio”, com o operador ainda a dormir. Lá para onde o nevoeiro ainda tudo cobre, a meia dúzia de quilómetros, fica Mampatá.
Foto 13: Em tempo de guerra também se limpam armas, e o Fur. Oliveira esmera-se. Está na hora de “desembarcar” e montar guarda às viaturas que entretanto chegarão para nos levarem de regresso a Nhala. Não tarda, a nossa tranquilidade vai ser perturbada pela chegada, sempre caótica, dos grupos que nos virão render em jornada igual. Mas a nossa alegria vai ser muita ao vê-los chegar. Por nós, está cumprida a missão.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
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