1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2015:
Queridos amigos,
Falar da Guiné era automaticamente associar a clima doentio, cemitério de europeus, terra de febres, este artigo de Philip Havik centra-se no século XIX, não se podia ocupar militarmente a região sem usar portes da medicina tropical, serviços de saúde, os medicamentos possíveis.
Vamos ficar a saber que o primeiro cirurgião só chegou à Guiné nos anos 40 do século XIX, e não demorou muito.
Ao tempo, escrevia-se que tanto Bissau como Cacheu eram as terras mais insalubres, ali os militares ficavam arruinados, física e mentalmente, a mortandade era imensa.
É à volta deste sepulcro, deste clima mortífero que o investigador vai identificando os serviços de saúde que só conhecerão uma verdadeira viragem ao tempo de Sarmento Rodrigues.
Um abraço do
Mário
Boticas e beberragens: a criação dos serviços de saúde e a colonização da Guiné, por Philip Havik
Beja Santos
Philip Havik é um investigador do Instituto de Investigação Tropical que está a prestar assinaláveis estudos à Guiné Portuguesa. É o caso deste artigo publicado na
Africana Studia, n.º 10, de 2007. O investigador começa por nos recordar que apesar dos avanços da microbiologia, na viragem do século XIX, os ensinamentos da geografia e climatologia da saúde propostos por naturalistas e médicos, mantiveram uma grande influência sobre a abordagem dos trópicos pelas metrópoles e as autoridades coloniais. Este desfasamento pesou negativamente nas atividades dos serviços de saúde, pois a ciência bacteriana não se impôs tão rapidamente quanto desejável nas regiões tropicais. Assinala igualmente o investigador que o debate científico também não foi pacífico, com polémicas à volta das incertezas sobre o caráter viral ou parasitário de certas doenças. Entretanto, procedia-se a uma ocupação militar a partir dos entrepostos com a criação de novas localidades, e assim se a dando uma simbiose entre a medicina tropical, os serviços de saúde e este projeto de colonização acelerado.
Relativamente a África Ocidental, a ciência médica começou por se focar sobre as condições de permanência em terras quentes e húmidas, logo nas primeiras décadas do século XIX. Procuravam-se soluções para a saúde dos europeus através da neutralização das febres tropicais. Mas tudo na maior das lentidões. Até ao início de 1900, os habitantes dos presídios e entrepostos comerciais portugueses na costa da Guiné não dispunham de médicos, os moradores dependiam dos cuidados prestados pelos padres das missões e dos hospícios, bem como dos tratamentos feitos por curandeiros locais.
O primeiro cirurgião só chega à Guiné nos anos 40 do século XIX, casa-se com uma das filhas de um poderoso comerciante de escravos. A casa comercial deste, a Nazolini & Companhia, com sede em Bissau, torna-se no único local equipado com uma botica entre as possessões inglesas da Gâmbia e da Serra Leoa. O cirurgião, António Joaquim Ferreira, manda os doentes para uma fazenda na Ilha das Galinhas. Morre em 1854.
O governador-geral de Cabo Verde refere-se a Bissau e a Cacheu como
“as mais insalubres da província, das quais vem de ordinário grande número de soldados para ali destacados completamente arruinados da saúde”. O substituto de António Joaquim Ferreira, o cabo-verdiano Francisco Frederico Hopffer, envia uma série de relatórios para a Praia, enumera as doenças gravíssimas: inflamação do aparelho visual, reumatismo agudo e crónico, bronquite aguda e crónica, afeções de pele, doenças venéreas e sifilíticas, úlceras das pernas, padecimentos do fígado, em geral do baixo-ventre, diarreia, disenteria, doenças do sistema nervoso com epilepsia, histeria, delirium tremis, graves perturbações do sono e tremores. Convém registar que estes espectros de doenças afligiam tanto os moradores das praças como a população em geral. O mesmo facultativo, dava as seguintes razões para as causas destas patologias: elevadas temperaturas, grande humidade da atmosfera, extensas zonas pantanosas onde se pratica o cultivo de arroz em águas estagnadas, além da dissolução de costumes e a pouca diversidade alimentar. E também realça os aspetos da prevenção chamando à atenção para a higiene pessoal, alertando os militares para as vantagens dos soldados tomarem banho, pelo menos uma vez por semana. A maior parte destas propostas não foram acolhidas até aos anos 80 do século XIX, foi preciso esperar pela intensidade da ocupação militar que obrigou à revisão da problemática da saúde e dos respetivos serviços.
A partir de meados do século XIX apareceram as estatísticas clínicas, apontando para os problemas associados ao tratamento das febres perniciosas. A mortandade era elevadíssima: dos doentes admitidos nos primeiros meses da época das chuvas de 1858, um terço morreu. Em nenhum ofício, em nenhum documento se deixa de referir constantemente a Guiné pelo seu clima mortífero, por ser um sepulcro dos europeus. Vários governadores da Guiné perderam a vida por causa das febres palustres, por exemplo Honório Pereira Barreto sucumbiu em 1859 a uma caquexia palustre.
Na segunda metade do século XIX, algumas epidemias como por exemplo a febre-amarela, sarampo, varíola, bexigas e cólera continuavam a flagelar a região. E os ofícios expedidos registavam continuamente que a cólera fazia milhares de vítimas entre os indígenas. Discutia-se calorosamente como suster as epidemias, venceu a proposta de incendiar as moranças suspeitas de contágio. Já com a capital da província em Bolama, também aqui foram aparecendo com regularidade queixas sobre a falta de higiene, à semelhança do que se passava na fortaleza de S. José de Bissau em que se exigia, sem sucesso, que os militares com as suas amásias em autênticos cortelhos, nas condições mais insalubres.
Com a criação do Boletim Oficial da Guiné Portuguesa, em 1880, assistiu-se à publicação dos primeiros boletins de saúde mensais sobre o estado das praças da Guiné. Os clínicos em exercício eram principalmente oriundos de Cabo Verde e Goa.
Com a intensificação da ocupação militar, os facultativos começaram igualmente a dar atenção ao estado de saúde da tropa nativa. O investigador refere a existência de relatórios denunciando o aspeto desolador da tropa guineense que combatia no lado português, dizendo que pareciam mais cadáveres combatentes que soldados.
A evolução dos serviços clínicos aparece estudada pelo autor da primeira história da Guiné, o médico goês João Barreto, que registou as mudanças operadas até aos anos 1930. A grande viragem virá no governo Sarmento Rodrigues e no combate à doença do sono, entre tantas outras iniciativas. Bissau, entretanto, iria ser servida por um hospital construído de raiz, o hospital civil de Bissau, junto à Fortaleza da Amura, hoje Hospital Simão Mendes.
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de maio de 2016
Guiné 63/74 - P16146: Nota de leitura (843): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (3) (Mário Beja Santos)