A minha longa vida como jornalista (iniciada em fevereiro de 1983), também escritor com oito obras publicadas, sempre a pautei pela dignidade. Ouvir, e saber ouvir, deu-me “estaleca” e ânimo, acessórios que indicam uma força enorme na destreza de bem caminhar numa “picada” que considero, até hoje, limpa.
Ouvir as partes é um direito do código deontológico e rege literalmente as frações envolventes. Sei, porém, que a energia de uma narrativa nem sempre agrada a gregos e a troianos. E mexer com a “coisa” incomoda.
Camaradas, na condição de jornalista fui, por duas vezes, sujeito à condição de réu. Escrevi publicamente a verdade, somente a verdade, mas eis que essa visível verdade não era a verdade dos queixosos. Não lhes convinha. Mentes mesquinhas que por vezes se julgam senhores da razão, não sabendo, porque assim o querem, distinguir “o trigo do joio”. A honra do homem é impagável e primo por essa nobreza. A retidão faz parte do meu ADN. Ninguém se assuma superior ao parceiro do lado.
Aguardei, calmamente, a decisão do tribunal. Sabia que não havia cometido nenhum crime de lesa a pátria, ou que mexesse com a honestidade moral de alguém. Entretanto, lá fui submetido aos princípios de um conjunto de impedimentos que usurparam o meu quotidiano ao longo de um processo que terminou com a minha absolvição.
Conheço, e muito bem, a força do conteúdo das palavras e como elas são entendidas por quem se julga o único portador da razão. Hoje, sou, tal como sempre o fui, amigo desses companheiros que compreenderam, mais tarde, que o móbil da decisão não estava, nem podia estar, do seu lado. Pediram-me desculpas pelo incómodo e nossa amizade mantém-se.
Arrisco, e a vida é feita de riscos, trazer ao nosso blogue a opinião, que é minha, sobre um antigo guerrilheiro que combateu ao lado das NT no conflito da Guiné. Aliás, foi através de pequenos textos lançados no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné que consegui desarticular tabus que entretanto ainda se consomem no ego de camaradas que não admitem inequívocas realidades por todos nós conhecidas. Lembro, a talho de foice, os “filhos do vento” e o impacto mediático que causou, não só a nível nacional como internacional. Bem-haja a arriscada ideia e as consequências que dela resultaram.
Não tive a oportunidade em combater ao seu lado. Não me foi dada essa missão e a oportunidade esvaziou-se no infinito de um horizonte onde o serpenteado das cores visíveis no infindável céu guineense era deslumbrante. Todavia, a mensagem da sua bravura passava de aquartelamento para aquartelamento a uma velocidade alucinante.
Todos, ou quase todos, lhe atribuíam dotes de combatente de primeira água. Falava-se dele amiúde e esse falatório obrigava a malta atribuir-lhe míticos feitos, uns verdadeiros, outros salpicados de “pozinhos” recheados de meras imaginações. Diz o povo “quem conta um conto, acrescenta-lhe mais um ponto”. Compreendo.
Não vou, como é óbvio, ser minucioso na sua forma de atuar, ou delinear o modo como enfrentava o IN. Foi comando, eu ranger, e muitas vezes me indaguei sobre a sua capacidade em agir quando o zumbido das balas pareciam não ter fim. Ou, a sua sagacidade na sapiência em resolver o conflito por ora deparado.
A guerra proporciona momentos de inquietação, sobretudo quando falamos na componente guerrilha. Enfrentar o inimigo, sem rosto, onde a surpresa amiúde acontecia, era um flagelo para jovens soldados atirados para as frentes de combate sem dó nem piedade. Jovens forçados a combater, sem “escola”, nem tão-pouco uma aprumada capacidade de ação, sendo o intuito prioritário salvar a pele. “Matar para não morrer” era o lema.
Recordo Marcelino da Mata, um guineense que nasceu em Porta Nova, Guiné, no dia 7 de maio de 1940 e que presentemente ostenta a patente de Tenente Coronel. A sua incorporação no exército português teve lugar a 3 de janeiro de 1960, em Bolama, mas acidentalmente, uma vez que acabou por ser agrupado no Centro de Instrução Militar em lugar do irmão.
Ofereceu-se, depois, como voluntário, sendo o fundador das tropas de operações especiais e membro ativo nos comandos africanos.
Segundo registos da História do Exército Português, o antigo combatente terá participado em 2412 operações e que lhe confere o direito em sustentar o título de militar português mais condecorado.
Aconteceu que das várias operações em que as NT levaram a ação ao extremo, e com baixas registadas ao IN, entre recuperações de material bélico e não só, deparamo-nos com nomes de graduados de alta patente como gestores da operacionalidade, sendo que pouco se falava do Marcelino da Mata nessas ditas reuniões. Admito, e aceito o perverso descuido que certamente era intuito, uma vez que a preparação da operação era delineada em gabinetes entre os graduados superiores, como é óbvio, sendo ele, no entanto, a arma “secreta” no terreno em determinadas operações.
Com o fim da guerra, graças ao 25 de Abril, Revolução dos Cravos, a nossa atividade guerrilheira teve o seu términus. O Marcelino “arrumou” as armas e fixou-se em Portugal. Mas, a sua vinda para Pátria à qual muito deu, ter-lhe-á virado as costas e, nessa altura, considerado como um ser humano alegadamente indigente.
Os movimentos revolucionários que então proliferavam num Portugal livre, e democrático, trancou-lhe as portas e o herói, “não morto, e nem tão-pouco posto”, caiu em desgraça. Numa entrevista dada ao jornalista Duarte Branquinho e publicada no jornal “O Diabo” de 1 de janeiro de 2015, segunda edição, sendo a primeira divulgada a 29 de julho de 2014, dizia: “Portugal esqueceu-se de mim, mas os amigos não”.
Marcelino da Mata adianta nessa entrevista, que sublinho com a devida vénia, quando o tema era o seu sentir por parte das Forças Armadas portuguesas, opina: “Tenho a impressão que há aí uma dor de cotovelo. Porque um preto que vem do Ultramar, da Guiné, do mato, e sou mais condecorado que os oficiais da nação, é uma vergonha para eles. Isso caiu mal”.
Leva-me a narração dos factos recuar aos tempos revolucionários e transpor mais uma dica sobre se houve, ou não, sensibilidade na sua prisão: “Parece que não existiu, mas eu fui preso e torturado que nem um cão. Foram a minha casa e não me encontraram. Foi a minha falecida mulher que me disse que lá tinham estado tropas à minha procura”.
E conclui: “… mandaram-me encostar à parede e eu recusei-me, dizendo que um militar não bate num militar, que se queriam deviam participar de mim. Mas agarraram em mim e encostaram-me à parede. Foi o fim da minha vida! Levei tantas que só Deus sabe. Depois de desmaiar, atiraram-me com um balde de água em cima e continuaram. Nem quero falar mais disso…”.
Recuso, perentoriamente, comentar tais factos, sei, melhor, sabemos que tudo terminou com perseguições e a sua subsequente fuga para Espanha, regressando a solo português após o Golpe de 25 de Novembro.
Reflito, convictamente, sobre o Tenente Coronel Marcelino da Mata e a sua destemida bravura na guerra da Guiné, deparando-me com várias Medalhas de Guerra, 1ª, 2ª e 3ª Classes, de entre outras condecorações com que foi agraciado.
No dia 2 de julho de 1969 foi nomeado Cavaleiro da Ordem Militar da Torre, do Valor, Lealdade e Mérito.
Cito, também, o nome de algumas operações para que a memória futura jamais esqueça: “Operação Trindente”, ilha do Como - “Operação Cajado” - “Resgate de 150 portugueses cativos em território senegalês” - “Operação Mar Verde” – “Operação Ametista Real”.
Marcelino da Mata foi várias vezes ferido na ocorrência de combates, mas quando na noite de 24 para 25 de abril de 1974 se ouviu “E depois do Adeus” pela voz de Paulo de Carvalho, o antigo combatente, tal como as tropas lusas que se encontravam nas três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné –, cessou a sua atividade operacional.
A sua história é vasta e as opiniões sobre o seu caráter como combatente poderão, eventualmente, não coincidirem. Numa pesquisa internauta fiquei a conhecer melhor o homem que tinha conhecido no meu quartel na então Nova Lamego em princípios do ano de 1973.
A sua vida não foi fácil e enterrar o “machado de guerra” é coisa muito vaga. Veja-se a forma como fora tratado já num Portugal onde os “Cravos” desabrochavam. Mas, o toque de alerta soou e o Exército Português que fez dele o atual Tenente Coronel.
Para trás ficam as memórias e o improvável regresso, mesmo como visitante, ao solo que o viu nascer: Guiné-Bissau.
Concluindo: este é um pequeníssimo texto onde deparamos com combatente guineense que passou de herói a vilão!...
Um abraço, camaradas
José Saúde