Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:
Queridos amigos,
Seria de toda a conveniência que aqui se vazassem comentários dos confrades que participaram ou que acompanharam de perto a Operação Tridente. A história da Unidade, a do BCAV 490, gentilmente emprestada pelo Carlos Silva, é muito parcimoniosa, remete para um anexo que não tenho. Há o "Tarrafo", de Armor Pires Mota, há este documento que ora se apresenta, temos o depoimento do António Heliodoro, a que se irá fazer referência, apareceu no volume Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial, de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011. Apelo, pois, a contributos que possam constituir o outro lado do espelho que é a poesia do Santos Andrade.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (20)
Beja Santos
“Morreram dois fuzileiros
muitos rapazes atingidos
precisamente noutra altura
Baía e Ameixa foram feridos.
Foi antes do meio-dia
que os fuzileiros foram ao mato
onde houve o grande contacto,
que com o fogo se estremecia,
lutando com valentia
foram feridos muitos companheiros.
Os bandidos traiçoeiros
deviam ser degolados.
Por causa desses malvados
morreram dois fuzileiros.
Quando o ataque principiou,
daquilo já se esperava,
a retirar obrigava
a força que os enfrentou.
Feridos às costas se carregou
havendo muito gemido.
O helicóptero foi pedido
levando os feridos para Bissau.
Entre Cauane e S. Nicolau
muitos rapazes foram atingidos.
Quando um caça patrulhava,
os bandidos fogo faziam
até que o atingiam
e no chão se despedaçava.
Tudo se incendiava:
gasolina, óleos e pintura.
O piloto sofreu amargura,
ao ficar todo queimado
e foi este caso passado
precisamente noutra altura.
Em S. Nicolau quiseram
resistir dois pelotões.
Como noutras ocasiões
avançar nunca puderam.
Muita rajada lhes deram.
Aquilo foi um castigo,
devido a tantos inimigos
retiraram do matagal,
mas na retirada, às 9 e tal,
Baía e Ameixa foram feridos.”
********************
Em 2019, a editora QuidNovi deu à estampa um conjunto de volumes sobre a guerra colonial. O quinto volume destacava a Operação Tridente, desenhada no maior sigilo. Os comandantes das unidades envolvidas no ataque apenas foram informados de todos os planos escassos dias antes do embarque. Os próprios oficias subalternos só souberam da ordem e do objetivo militar na véspera do Dia D. Foram 71 dias o tempo da operação. Ao fim de 48 dias de combates, as tropas portuguesas intercetaram um estafeta com uma carta de Nino Vieira, escrita à máquina e destinada a dois importantes chefes de guerrilha, Rui Djassi e Domingos Ramos, eram a prosa de aflição, Nino precisava de reforços, e concluía: “Tenho encontrado uma situação muito grave. As tropas estão aumentando cada vez mais as suas forças, tanto como terrestres, aviação e também por meios marítimos. Camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem guerrilheiros aí, já estamos a contar com a baixa de 23 camaradas durante todos estes dias dos ataques”.
Vejamos o essencial deste texto sobre a Operação Tridente, tal como consta neste quinto volume das Edições QuidNovi. Na véspera do ataque, a artilharia portuguesa instalada em Caiar flagelou sem descanso toda a região norte das ilhas de Caiar, Como e Catunco. Os guerrilheiros acreditavam que esse seria o local de desembarque. Enganaram-se. As forças envolvidas na Operação tomaram as ilhas de assalto pelo lado sul. Os desembarques decorreram sem um único tiro. O Dia D, 15 de janeiro de 1964, precisamente às 8.30 horas, os fuzileiros especiais pisaram a zona de combate: o destacamento 7, comandado pelo Primeiro-Tenente Ribeiro Pacheco desembarcou num ponto da ilha Caiar enquanto o destacamento 8, sob as ordens do Primeiro-Tenente Alpoim Calvão chegava a um outro local na ilha do Como. A missão destes fuzileiros era estabelecer cabeças de praia que permitissem o desembarque das companhias de cavalaria, que vinham em três agrupamentos. O agrupamento A, comandado pelo Major Romeiras, tinha ordens para seguir imediatamente para a tabanca de Caiar. O agrupamento B, sob o comando do Capitão Ferreira, tem por objetivo Cauane, aqui se darão os primeiros combates, as tropas portuguesas atacam com fogo morteiro ao mesmo tempo que a Força Aérea bombardeia. A primeira baixa é um T6 abatido pelos guerrilheiros. O comandante do DFE8, Alpoim Calvão, toma uma decisão arriscada: à cabeça de um grupo de fuzileiros entra na mata densa e começa a desalojar a guerrilha. O agrupamento C está sob o comando do Capitão Anselmo, sobe o rio de Catunco, tomam Catunco Papel e Catunco Balanta sem oposição da guerrilha. O agrupamento D, sob o comando do Primeiro-Tenente Faria de Carvalho desembarca na costa leste de Catunco, nas margens do rio Cumbijã. O comandante da Operação Tridente está ainda a bordo da fragata Nuno Tristão. Concluída a primeira fase da Operação, as unidades ocupam posições de combate, inicia-se a segunda fase que se prolongou até ao dia 24, nas ilhas de Caiar, Como e Catunco combate-se violentamente, fazem-se batidas, são feitos alguns prisioneiros, na ilha do Como as forças do PAIGC flagelam severamente, em Catunco não se encontram guerrilheiros mas foram descobertos depósitos de arroz e muito gado. Estamos já na terceira fase, o Tenente-Coronel Cavaleiro desceu ao terreno, as tropas de cavalaria, os fuzileiros especiais, o grupo de comandos, o pelotão de paraquedistas estão todos em ação.
Vejamos o relato dos acontecimentos como são descritos neste livro:
“Os portugueses conseguiram integrar-se progressivamente na mata, pelo sul, pelo norte e pelo lado oeste. A artilharia e a Força Aérea bombardeavam à noite pontos suspeitos na mata. Os militares localizaram e destruíram dois grandes acampamentos das forças do PAIGC. Foram arrasadas as tabancas de Cauane, S. Nicolau, Curcó, Cassaca, Samane, Uncomené, Cachida e Cachil. O mais violento dos combates, na mata de Cassaca, decorreu entre as seis da manhã até às quatro da tarde.
A 24 de Março, ao fim de 71 dias de operação, o Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro podia cantar vitória. Os grupos de guerrilha, incapazes de susterem os ataques portugueses, estavam em fuga. Foram arrasadas praticamente todas as tabancas das ilhas de Caiar, Como e Catunco”.
As forças portuguesas regressam ao continente, é decidido criar um destacamento em Cachil. O bardo irá depois falar-nos de Farim. Por ora, vamos continuar a desfiar a sua lírica em pleno Como.
(continua)
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Notas do editor
Poste anterior de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 19 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)
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Guiné 61/74 - P20086: Parabéns a você (1670): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 (Guiné, 1967/69)
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20083: Parabéns a você (1669): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Guiné, 1969/71)
Nota do editor
Último poste da série de 21 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20083: Parabéns a você (1669): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Guiné, 1969/71)
quinta-feira, 22 de agosto de 2019
Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O belíssimo moínho do Miguel Nobre, no alto da serra... Dizem que é que é "o mais alto" da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar.
Daqui tem-se uma vista fantástica sobre o mundo, ou pelo menos sobre o meu/nosso oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra, o oceano Atlântico, as praias de Torres Vedras, Lourinhã, Peniche, as Berlengas, a Serra dos Candeeiros... Está-se mais perto do céu e eu, da minha infância onde havia muitos moinhos e cabeços. Mas o mais fascinante é o moinho, o moinho de Aviz, e o seu dono, sem esquecer naturalmente a serra de Montejunto e os seus miradouros. O moinho, que ostenta o símbolo Aviz nas suas velas, estava em ruínas há uns anos atrás, foi reconstruído e é hoje uma beleza de se ver... Tudo somado, ficou-lhe em cerca de 200 mil euros, o preço na altura de um bom apartamento em Lisboa... Infelizmente, mais recentemente o Miguel teve um AVC... Está recuperar e a lutar contra o infortúnio. O amor aos moinhos de vento tem-no ajudado a superar este problema de saúde. Um grande abraço para ele e para os meus amigos do Cadaval, Céu e Joaquim Pinto Carvalho, que lá me levaram.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação) (*)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]
91. O chiqueiro, o quinteiro, o curral, mais as galinhas, os pintos, os perus, os coelhos, os patos, os gansos, a coquicha, a galinha pedrês não-a-mates-nem-a-dês, a retrete de madeira, na casa dos teus tios do Nadrupe, as batatas comidas em comum, numa travessa que tinha um cavalinho ao meio, e que ainda não era o cavalo da GNR, louça de Sacavém, barata, para o povo, o terceiro estado, o mísero estado.
E nada de alvoraçá-lo, sangrai-o e sangrai-o e, se morrer, enterrai-o.
92. O vinho dava de comer a um milhão de camponeses que eram todos os habitantes da tua aldeia.
Lembras-te de vomitar a ceia, em dia de matança do porco, quando o teu pai chegou, à noitinha, de motorizada, a anunciar a vinda de mais um herdeiro, o terceiro, era menina e chamava-se… Inha.
93. Se havia uma idade da inocência era quando se subia à portentosa figueira da ti Elvira e do ti Manel da Quinta, da Quinta do Bolardo, e se partia a cabeça, e se descobria o sangue, não o de Cristo, mas o teu sangue, que não era frio e azul, era espesso, quente e vermelho.
Faziam inocentes tropelias, brincavam aos índios & cobóis no meio da vinha do Senhor, tomavam banho, nus, nas tinas de fazer o vinho, os meninos do campo e da cidade, da vila e da aldeia, e dormiam com primas mamalhudas em camas de ferro e colchões de palha e travesseiros de barbas de milho.
94. Até um dia em que no calendário deixou de haver o domingo à tarde, e o cão a uivar na vinha vindimada do Senhor, morreu o ti Silvano, de morte súbita, assim de repente, em plena força da vida, sem tempo para chamar nem o médico nem o padre, muita saúde, que Deus não dava tudo!, ameaçava o coadjutor do padre vigário, e confirmava o facultativo, o doutor das Beiras, que veio casar com a menina rica da tua aldeia.
95. Lembras-te dos gritos lancinantes das mulheres, das tias, das primas, da tua mãe, o último adeus, o muro rente do cemitério, as campas rasas dos fiéis defuntos, as cruzes de latão, as flores murchas, o talhão dos anjinhos que iam para o purgatório!... Tu, sem deitares um lágrima, siderado, colado ao chão!
Ainda não havia flores de plástico, nem muito menos sabias tu o que era a morte, só a do porco, e Deus era pai, infinitamente misericordioso, e o padre vigário (que sucedeu ao que te batizara na igreja do Castelo,) tinha para tudo uma explicação, até para o absurdo da vida e da morte dos pobres de Cristo, da morte dos tios queridos em plena força da vida, ou para a dor das pobres crianças inocentes, e que nem batizadas tiveram tempo de ser, a não ser talvez pela parteira aparadeira, a verdade é que tu nunca mais foste capaz de lá ir à noite brincar, para o adro da igreja do Castelo, ao lado ao cemitério, que bastava o sinistro pio da coruja, no alto da torre sineira, e os fogos fátuos de verão, para o sangue nas veias te gelar!
96. Deixou de haver domingo à tarde, e a inexplicável magia da infância, bordaram-te o enxoval, as meninas da rua do Clube, uma rua abaixo da tua, aos serões, as meninas do ti Louçã, que era pintor de portas e janelas, tetos, paredes e tabuletas, as meninas costureirinhas, tuas vizinhas, meteram-te na camioneta dos Capristanos, nunca soubeste quem, com destino ao seminário de Santarém, antigo palácio real, medieval e depois colégio dos jesuítas, tu e o teu baú, terrivelmente sozinho ante os dilemas da fé, da vida, da carne, do pecado, da morte, da ressurreição e do esplendor da vida eterna, amén!, ali especado, aterrorizado, num corredor pavorosamente alto e comprido, mais alto e mais comprido do que a tua rua dos Valados, e as paredes cobertas de retratos de reis e rainhas e de azulejos com contavam histórias que só podiam da ser da bela vida que levavam os reis e as rainhas, entre caçadas e danças palacianas.
97. Lá atrás ficava o mar, a Atalaia e o Mont’oito, a P’ralta, a Areia Branca, o Porto das Barcas e os casais de Porto Dinheiro e a Ribamar dos teus antepassados Maçaricos, e os fantasmas dos corsários que infestavam a costa, assaltavam, roubavam, violavam, matavam, queimavam, faziam reféns, para trás ficava o relógio, sonolento, da torre da igreja matriz, a vinha vindimada do Senhor, o piar da coruja, os fogos fátuos, os terrores do inferno e da castração, e os sardões que se apanhavam com anzol e pedaços de pão embebidos em leite na parede do cemitério, restos da antiga muralha do castelo que fora alcáçova e antes castro ou dólmen ou promontório.
E a história era isso: sedimentos e sedimentos sobrepostos, o pouco que restava da passagem de tantos povos que se matavam e enterravam uns aos outros.
98. E as primeiras beatas fumadas às escondidas, e os putos todos em fila a mijar contra a parede do cemitério, e a medir o tamanho das pilas, e os primeiros nomes das putas da tua terra, segregados ao ouvido pelos mais velhos, o "Frasco do Veneno", que era teu primo, em segundo grau, e que há emigrar, sem retorno, para o Brasil, e que te ensinou todas as asneiras do teu vocabulário de carroceiro, cada uma custando-te depois muitos valentes puxões de orelhas da tua mãe, e um ror de rosários, avé-marias, padre-nossos, e salvé-rainhas, pesado castigo do teu confessor.
99. E o moinho do T’chico Moleiro e os ventos que sopravam nas velas e nas cabaças, numa sinfonia agoirenta, e a amante do moleiro que vigiava os putos que lhe iam roubar as pêras, as uvas e as ameixas, o terror e a magia, enfim, das pequenas e grandes coisas da vida quando já se tem dez anos feitos, a 4ª classe e o exame de admissão ao liceu.
100. Levaste contigo a tela do Brugel , o Velho, como se fora uma cruz, pesada, tê-la-ás perdido para sempre quando te sentiste estrangeiro como o Camus, na tua própria terra.
Ou então, deixa-me adivinhar: enterraste-a, definitivamente, na guerra, lá nas bolanhas ou na florestas-galeria da Guiné, entre os mais pobres dos pobres, os teus camponeses fulas pretos da Guiné.
Ou talvez nem isso: nunca te libertarás dela, dessa tela da infância, um caleidoscópio cheio de pictogramas, a não ser talvez através do exorcismo da memória e da escrita.
Fim
Lourinhã, 10/11/2005. Revisto.
Nota do editor:
(*) Postes anteriores da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)
17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)
18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)
20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)
21 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)
Daqui tem-se uma vista fantástica sobre o mundo, ou pelo menos sobre o meu/nosso oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra, o oceano Atlântico, as praias de Torres Vedras, Lourinhã, Peniche, as Berlengas, a Serra dos Candeeiros... Está-se mais perto do céu e eu, da minha infância onde havia muitos moinhos e cabeços. Mas o mais fascinante é o moinho, o moinho de Aviz, e o seu dono, sem esquecer naturalmente a serra de Montejunto e os seus miradouros. O moinho, que ostenta o símbolo Aviz nas suas velas, estava em ruínas há uns anos atrás, foi reconstruído e é hoje uma beleza de se ver... Tudo somado, ficou-lhe em cerca de 200 mil euros, o preço na altura de um bom apartamento em Lisboa... Infelizmente, mais recentemente o Miguel teve um AVC... Está recuperar e a lutar contra o infortúnio. O amor aos moinhos de vento tem-no ajudado a superar este problema de saúde. Um grande abraço para ele e para os meus amigos do Cadaval, Céu e Joaquim Pinto Carvalho, que lá me levaram.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação) (*)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]
E nada de alvoraçá-lo, sangrai-o e sangrai-o e, se morrer, enterrai-o.
92. O vinho dava de comer a um milhão de camponeses que eram todos os habitantes da tua aldeia.
Lembras-te de vomitar a ceia, em dia de matança do porco, quando o teu pai chegou, à noitinha, de motorizada, a anunciar a vinda de mais um herdeiro, o terceiro, era menina e chamava-se… Inha.
93. Se havia uma idade da inocência era quando se subia à portentosa figueira da ti Elvira e do ti Manel da Quinta, da Quinta do Bolardo, e se partia a cabeça, e se descobria o sangue, não o de Cristo, mas o teu sangue, que não era frio e azul, era espesso, quente e vermelho.
Faziam inocentes tropelias, brincavam aos índios & cobóis no meio da vinha do Senhor, tomavam banho, nus, nas tinas de fazer o vinho, os meninos do campo e da cidade, da vila e da aldeia, e dormiam com primas mamalhudas em camas de ferro e colchões de palha e travesseiros de barbas de milho.
94. Até um dia em que no calendário deixou de haver o domingo à tarde, e o cão a uivar na vinha vindimada do Senhor, morreu o ti Silvano, de morte súbita, assim de repente, em plena força da vida, sem tempo para chamar nem o médico nem o padre, muita saúde, que Deus não dava tudo!, ameaçava o coadjutor do padre vigário, e confirmava o facultativo, o doutor das Beiras, que veio casar com a menina rica da tua aldeia.
95. Lembras-te dos gritos lancinantes das mulheres, das tias, das primas, da tua mãe, o último adeus, o muro rente do cemitério, as campas rasas dos fiéis defuntos, as cruzes de latão, as flores murchas, o talhão dos anjinhos que iam para o purgatório!... Tu, sem deitares um lágrima, siderado, colado ao chão!
Ainda não havia flores de plástico, nem muito menos sabias tu o que era a morte, só a do porco, e Deus era pai, infinitamente misericordioso, e o padre vigário (que sucedeu ao que te batizara na igreja do Castelo,) tinha para tudo uma explicação, até para o absurdo da vida e da morte dos pobres de Cristo, da morte dos tios queridos em plena força da vida, ou para a dor das pobres crianças inocentes, e que nem batizadas tiveram tempo de ser, a não ser talvez pela parteira aparadeira, a verdade é que tu nunca mais foste capaz de lá ir à noite brincar, para o adro da igreja do Castelo, ao lado ao cemitério, que bastava o sinistro pio da coruja, no alto da torre sineira, e os fogos fátuos de verão, para o sangue nas veias te gelar!
96. Deixou de haver domingo à tarde, e a inexplicável magia da infância, bordaram-te o enxoval, as meninas da rua do Clube, uma rua abaixo da tua, aos serões, as meninas do ti Louçã, que era pintor de portas e janelas, tetos, paredes e tabuletas, as meninas costureirinhas, tuas vizinhas, meteram-te na camioneta dos Capristanos, nunca soubeste quem, com destino ao seminário de Santarém, antigo palácio real, medieval e depois colégio dos jesuítas, tu e o teu baú, terrivelmente sozinho ante os dilemas da fé, da vida, da carne, do pecado, da morte, da ressurreição e do esplendor da vida eterna, amén!, ali especado, aterrorizado, num corredor pavorosamente alto e comprido, mais alto e mais comprido do que a tua rua dos Valados, e as paredes cobertas de retratos de reis e rainhas e de azulejos com contavam histórias que só podiam da ser da bela vida que levavam os reis e as rainhas, entre caçadas e danças palacianas.
97. Lá atrás ficava o mar, a Atalaia e o Mont’oito, a P’ralta, a Areia Branca, o Porto das Barcas e os casais de Porto Dinheiro e a Ribamar dos teus antepassados Maçaricos, e os fantasmas dos corsários que infestavam a costa, assaltavam, roubavam, violavam, matavam, queimavam, faziam reféns, para trás ficava o relógio, sonolento, da torre da igreja matriz, a vinha vindimada do Senhor, o piar da coruja, os fogos fátuos, os terrores do inferno e da castração, e os sardões que se apanhavam com anzol e pedaços de pão embebidos em leite na parede do cemitério, restos da antiga muralha do castelo que fora alcáçova e antes castro ou dólmen ou promontório.
E a história era isso: sedimentos e sedimentos sobrepostos, o pouco que restava da passagem de tantos povos que se matavam e enterravam uns aos outros.
98. E as primeiras beatas fumadas às escondidas, e os putos todos em fila a mijar contra a parede do cemitério, e a medir o tamanho das pilas, e os primeiros nomes das putas da tua terra, segregados ao ouvido pelos mais velhos, o "Frasco do Veneno", que era teu primo, em segundo grau, e que há emigrar, sem retorno, para o Brasil, e que te ensinou todas as asneiras do teu vocabulário de carroceiro, cada uma custando-te depois muitos valentes puxões de orelhas da tua mãe, e um ror de rosários, avé-marias, padre-nossos, e salvé-rainhas, pesado castigo do teu confessor.
99. E o moinho do T’chico Moleiro e os ventos que sopravam nas velas e nas cabaças, numa sinfonia agoirenta, e a amante do moleiro que vigiava os putos que lhe iam roubar as pêras, as uvas e as ameixas, o terror e a magia, enfim, das pequenas e grandes coisas da vida quando já se tem dez anos feitos, a 4ª classe e o exame de admissão ao liceu.
100. Levaste contigo a tela do Brugel , o Velho, como se fora uma cruz, pesada, tê-la-ás perdido para sempre quando te sentiste estrangeiro como o Camus, na tua própria terra.
Ou então, deixa-me adivinhar: enterraste-a, definitivamente, na guerra, lá nas bolanhas ou na florestas-galeria da Guiné, entre os mais pobres dos pobres, os teus camponeses fulas pretos da Guiné.
Ou talvez nem isso: nunca te libertarás dela, dessa tela da infância, um caleidoscópio cheio de pictogramas, a não ser talvez através do exorcismo da memória e da escrita.
Fim
Lourinhã, 10/11/2005. Revisto.
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Nota do editor:
(*) Postes anteriores da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)
17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)
18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)
20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)
21 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)
Guiné 61/74 - P20084: In Memoriam (347): Dulce Almada Duarte (1933-2019), figura de vulto da cultura cabo-verdiana, viúva do fundador do PAIGC, Abílio Duarte (1931-1996) (Zeca Macedo, EUA)
1. Mensagem de Zeca Macedo [ex-2º tenente fuzileiro especial, DFE 21 (Cacheu e Bolama, 1973/74), nascido na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951, e a viver nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 13/2/2008; aqui na foto à esquerda, no navio escola Sagres, com a eposa Goretti]
Data: terça, 20/08/2019 à(s) 19:12
Assunto: Morte de Dulce Almada Duarte
Luis, acabo de ler a noticia da morte de Dulce Almada Duarte, viúva de Abílio Duarte [1931-1996]. [um dos fundadores do PAIGC e o primeiro presidente da Assembleia Nacional da República de Cabo Verde] [, foto à direita].
Data: terça, 20/08/2019 à(s) 19:12
Assunto: Morte de Dulce Almada Duarte
Luis, acabo de ler a noticia da morte de Dulce Almada Duarte, viúva de Abílio Duarte [1931-1996]. [um dos fundadores do PAIGC e o primeiro presidente da Assembleia Nacional da República de Cabo Verde] [, foto à direita].
Dulce desempenhou um papel importantíssimo ao serviç de Cabo Verde, durante e depois da luta armada .
(i) a linguista, Dulce Almada Duarte, morreu hoje,as vésperas de completar 86 anos;
(ii) nasceu em 1933 na ilha de São Nicolau;
(ii) nasceu em 1933 na ilha de São Nicolau;
(iii) mais tarde, estudou línguas românicas na Universidade de Coimbra;
(iv) apoiou a causa do anticolonialismo e abraçou a luta pela independência em Cabo Verde e Guiné-Bissau;
(v) a linguista desempenhou várias tarefas durante a luta pela independência: co-produziu um programa de rádio em português para desmoralizar as tropas coloniais em apoio aos combatentes da resistência: durante a luta, escreveu uma série de artigos para a libertação para o PAIGC e traduziu obras feitas por Amílcar Cabral para o francês; em França foi Leitora de Português na Universidade de Caen (Normandia), na Argélia, foi docente na École Supérieure d'Interprétariat;
(vi) esteve no quadro da luta pela independência de Cabo Verde em todos esses países e ainda no Senegal, Guiné-Conacry, Marrocos e Cuba;
(vii) após a independência, Duarte trabalhou nos Ministérios da Educação e da Cultura, tendo desempenhado os cargos de Directora do Gabinete de Estudos, Directora -Geral da Cultura e Directora do Património Nacional;
(viii) dedicou-se à investigação sobre a Língua e a Cultura Cabo-Verdiana, publicou dois livros sobre o Crioulo Cabo-Verdiano: Cabo Verde. Contribuição para o Estudo do dialecto Falado no Seu Arquipélago (1961) e Bilinguismo OU diglossia as relações de força entre o crioulo e o português na sociedade cabo-verdiana (1998).
Um abraço amigo
Zeca Macedo Tenente FZE-DFE 21
Cacheu-Bolama 73-74
Jose J. Macedo,Esquire
Law Offices of Jose J. Macedo
392 Cambridge Street
Cambridge, MA 02141
Tel. (617) 354-1115
Fax (617) 354-9955
Zeca Macedo Tenente FZE-DFE 21
Cacheu-Bolama 73-74
Jose J. Macedo,Esquire
Law Offices of Jose J. Macedo
392 Cambridge Street
Cambridge, MA 02141
Tel. (617) 354-1115
Fax (617) 354-9955
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Nota do editor:
Último poste da série > 20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20078: In Memoriam (346): José Manuel Vitória Cordeiro, ex-1.º Cabo At Art.ª do 3.º Pelotão da CART 2520 (José Nascimento, ex-Fur Mil Art)
Último poste da série > 20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20078: In Memoriam (346): José Manuel Vitória Cordeiro, ex-1.º Cabo At Art.ª do 3.º Pelotão da CART 2520 (José Nascimento, ex-Fur Mil Art)
Guiné 61/74 - P20083: Parabéns a você (1669): José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Guiné, 1969/71)
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20079: Parabéns a você (1668): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)
Nota do editor
Último poste da série de 21 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20079: Parabéns a você (1668): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)
Lourinhã > Praia de Paimogo > 3 de agosto de 2011 > Enseada e porto de Paimogo, com o forte do séc. XVII ao fundo.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
81. Nasceste algures, ou em nenhures, a oeste de qualquer coisa, não vinha (nem teria que vir), no mapa-mundo, a tua terra, perdida na ponta mais acidental do velho mundo, nem no registo civil te puseram a nascer nela, eras da vila, logo vilão, e ao vilão, cuidado, ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão...
E também nunca gostaste do alvoroço do povo, dos ajuntamentos do povo, dos foguetes, da multidão dos loucos, e das matilhas de mastins dos grandes e poderosos… Livra-te do louco e do alvoroço do povo. Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro.
Por que razão é que a tua terra teria que ser importante ? Nunca teve nenhum rei ou rainha, nem muito menos nenhum santo ou santinha.
82. Afinal, nunca gostaste de jogar à bola, nem de andar à bulha e à guerra, nem de apanhar as canas dos foguetes, nem de trepar às árvores e roubar os ovos dos ninhos nem sequer gostavas do nome da tua terra, nem muito menos de ver matar o porco.
Serás, mais tarde, guarda-redes, efémero, de equipas efémeras, nas férias grandes, já adolescente, na maré vazia, na praia do Caniçal, a baliza, feita de canas, desmedida, com o forte de Paimogo, o cabo Carvoeiro e as Berlengas a esfumar-se, ao fundo, o farol, recortado, entre as brumas da memória, ó Pátria, sente-se a voz dos teus egrégios avós…
83. Podia ter sido um filme com final feliz, com lágrimas doces e quentes, como as da tua mãezinha, mas não foi, e nunca te perguntaste porquê nem saberias porventura responder a essa questão existencial.
Afinal, a ração não é para quem se talha, é para quem calha..., ouvirás no Norte, muito mais tarde, quando lá fores casar com uma rapariga nortenha...
Na praia, os padres jogavam à bola, de sotaina preta, e tu jogavas o pião, no adro da igreja, com ar de menino bem comportado, como o "Marcelino, pão e vinho" [1], o filme da tua infância, exibido no cinematógrafo no clube 14 de julho.
Domingo à tarde não havia ainda matinés, entrava-se no cinema, escondido, à noite, debaixo do capote do papá...(Mentes: nunca trataste o teu pai por papá, nem a tua mãe por mamã, que a rica teve um menino, e a pobre pariu um moço!, como se dizia no Alentejo).
Jogar o pião sozinho era triste, mas em grupo, em círculo, era arriscado por causa dos arrebenta-piões como o "Brutamontes". Quantas vezes choraste por ver o teu pião rachado ao meio? Pião das nicas, na escola, e até depois na guerra, foi o papel que te calhou no filme da tua vida.
84. Debulhava-se o trigo e o centeio no campo de jogos do Nadrupe, chamava-se assim a tua aldeia, a terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Bruegel, o Velho, podê-la-ia ter pintado, a tua terra, num qualquer domingo à tarde, numa tela com gente atarracada, e doente dos pulmões, a comer pevides e tremoços, no "Casamento de Camponeses", e a dançar o baile mandado do prior e do regedor, enquanto um cão uivava na vinha vindimada do Senhor.
85. Ao fundo, o ti’ Dolfo, de carroça puxada por um macho, indo à vila, atrapalhado, ou não ele fora homem, acossado pela hora do parto, pelas dores do parto da mana Maria, (oh!, raios te partam, priga!), chamar a parteira ou aparadeira, a dona Irene, a primeira mulher, de calças, que tu verás, mais tarde, de olhos esbugalhados de menino, a andar de bicicleta por ruas e ruelas, terraços e telhados, como nas telas do Chagall, guiando a cegonha que trazia os bebés de França.
86. Foi assim que tu foste nascer no Nadrupe, a terra da tua mãe, mas registado na terra paterna, a vila, segredo de Polichinelo que vais guardar dos teus colegas de escola. (Imagina só se o "Brutamontes", que era da vila, sabia que tu eras "saloio... do Nadrupe"!)
87. Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem.
88. As maçãs reinetas metidas na palha, os primeiros beijos roubados na palha do trigo, o pilau que o menino exibia para a criada, a tua tia a degolar as galinhas, (que a galinha perdês não a mates nem a dês!), e a tua mãe a esfolar os coelhos que seguravas pelas pernas, os olhos fechados para não veres o sangue a espirrar, o peixe a secar ao sol no telheiro, ou no estendal da roupa, a arraia, o chicharro, o carapau, e o gato a mijar, e as moscas-varejeiras disputando as vísceras do coelho, no tempo em que até os pobres tinham criados, burros, cães, gatos, perus e patos, e a lagosta era a sete e quinhentos o quilo [2], o tamboril, o peixe-diabo, se deitava fora, de tão feio que era, tal como a arraia, o safio, a moreira ou o cação.
E o polvo, que era o petisco dos pobres. E os ovos crus, com um furinho em cada ponta, que te metiam pela goela abaixo, com dois brutos dedos a apertarem-te o nariz, quando estavas fraco dos pulmões. Os ovos crus e o óleo de fígado de bacalhau eram a medicina do povo.
89. E os vizinhos, valentaços, machos, arruaceiros, que puxavam das navalhas ou das sacholas ou das forquilhas ou das caçadeiras, quando o vinho e as paixões subiam à cabeça, e que se estripavam ou se matavam uns aos outros, por questões de honra, ciúme ou propriedade ?! E os excessos das paixões da alma das mulheres ? Lembras-te daquela que matou o marido, cortou-o às postas e assou-o no forno a lenha como se fora bacalhau à lagareiro...
Essa violência entre vizinhos perturbava-te… Quem disse, afinal, que a tua aldeia era uma terra de brandos costumes ?
90. Dois tostões o par, o chicharro, no verão de todas as farturas, vinham em bandos, no inverno, os filhos dos pescadores de Peniche, das traineiras da sardinha, estender a mão à caridade dos camponeses, de barriga farta, no pós-guerra em que tu nasceste.
(Continua)
_________
[1] "Marcelino Pão e Vinho" : um filme espanhol de 1955, realizado por Ladislao Vajda, baseado no livro homónimo ["Marcelino, pan y vino"] de José María Sánchez. Sinopse: "Marcelino é um órfão deixado à porta de um mosteiro e criado por doze frades. Certo dia, ele oferece, durante sua refeição, um pedaço de pão e um pouco de vinho a uma imagem de madeira de Jesus, crucificado, que aceita a oferta e passa a conversar com o menino. É o início de uma grande e bela amizade."
[2] 7$50, em finais dos anos 50, seria hoje o equivalente a 3 euros... Mas o salário, médio, nos campos, não ultrapassaria os 20 escudos (menos de 9 euros).
____________
Nota do editor:
(*) Últimos postes da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)
17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)
18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)
20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação) (*)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação) (*)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]
E também nunca gostaste do alvoroço do povo, dos ajuntamentos do povo, dos foguetes, da multidão dos loucos, e das matilhas de mastins dos grandes e poderosos… Livra-te do louco e do alvoroço do povo. Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro.
Por que razão é que a tua terra teria que ser importante ? Nunca teve nenhum rei ou rainha, nem muito menos nenhum santo ou santinha.
82. Afinal, nunca gostaste de jogar à bola, nem de andar à bulha e à guerra, nem de apanhar as canas dos foguetes, nem de trepar às árvores e roubar os ovos dos ninhos nem sequer gostavas do nome da tua terra, nem muito menos de ver matar o porco.
Serás, mais tarde, guarda-redes, efémero, de equipas efémeras, nas férias grandes, já adolescente, na maré vazia, na praia do Caniçal, a baliza, feita de canas, desmedida, com o forte de Paimogo, o cabo Carvoeiro e as Berlengas a esfumar-se, ao fundo, o farol, recortado, entre as brumas da memória, ó Pátria, sente-se a voz dos teus egrégios avós…
83. Podia ter sido um filme com final feliz, com lágrimas doces e quentes, como as da tua mãezinha, mas não foi, e nunca te perguntaste porquê nem saberias porventura responder a essa questão existencial.
Afinal, a ração não é para quem se talha, é para quem calha..., ouvirás no Norte, muito mais tarde, quando lá fores casar com uma rapariga nortenha...
Na praia, os padres jogavam à bola, de sotaina preta, e tu jogavas o pião, no adro da igreja, com ar de menino bem comportado, como o "Marcelino, pão e vinho" [1], o filme da tua infância, exibido no cinematógrafo no clube 14 de julho.
Domingo à tarde não havia ainda matinés, entrava-se no cinema, escondido, à noite, debaixo do capote do papá...(Mentes: nunca trataste o teu pai por papá, nem a tua mãe por mamã, que a rica teve um menino, e a pobre pariu um moço!, como se dizia no Alentejo).
Jogar o pião sozinho era triste, mas em grupo, em círculo, era arriscado por causa dos arrebenta-piões como o "Brutamontes". Quantas vezes choraste por ver o teu pião rachado ao meio? Pião das nicas, na escola, e até depois na guerra, foi o papel que te calhou no filme da tua vida.
84. Debulhava-se o trigo e o centeio no campo de jogos do Nadrupe, chamava-se assim a tua aldeia, a terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Bruegel, o Velho, podê-la-ia ter pintado, a tua terra, num qualquer domingo à tarde, numa tela com gente atarracada, e doente dos pulmões, a comer pevides e tremoços, no "Casamento de Camponeses", e a dançar o baile mandado do prior e do regedor, enquanto um cão uivava na vinha vindimada do Senhor.
85. Ao fundo, o ti’ Dolfo, de carroça puxada por um macho, indo à vila, atrapalhado, ou não ele fora homem, acossado pela hora do parto, pelas dores do parto da mana Maria, (oh!, raios te partam, priga!), chamar a parteira ou aparadeira, a dona Irene, a primeira mulher, de calças, que tu verás, mais tarde, de olhos esbugalhados de menino, a andar de bicicleta por ruas e ruelas, terraços e telhados, como nas telas do Chagall, guiando a cegonha que trazia os bebés de França.
86. Foi assim que tu foste nascer no Nadrupe, a terra da tua mãe, mas registado na terra paterna, a vila, segredo de Polichinelo que vais guardar dos teus colegas de escola. (Imagina só se o "Brutamontes", que era da vila, sabia que tu eras "saloio... do Nadrupe"!)
87. Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem.
88. As maçãs reinetas metidas na palha, os primeiros beijos roubados na palha do trigo, o pilau que o menino exibia para a criada, a tua tia a degolar as galinhas, (que a galinha perdês não a mates nem a dês!), e a tua mãe a esfolar os coelhos que seguravas pelas pernas, os olhos fechados para não veres o sangue a espirrar, o peixe a secar ao sol no telheiro, ou no estendal da roupa, a arraia, o chicharro, o carapau, e o gato a mijar, e as moscas-varejeiras disputando as vísceras do coelho, no tempo em que até os pobres tinham criados, burros, cães, gatos, perus e patos, e a lagosta era a sete e quinhentos o quilo [2], o tamboril, o peixe-diabo, se deitava fora, de tão feio que era, tal como a arraia, o safio, a moreira ou o cação.
E o polvo, que era o petisco dos pobres. E os ovos crus, com um furinho em cada ponta, que te metiam pela goela abaixo, com dois brutos dedos a apertarem-te o nariz, quando estavas fraco dos pulmões. Os ovos crus e o óleo de fígado de bacalhau eram a medicina do povo.
89. E os vizinhos, valentaços, machos, arruaceiros, que puxavam das navalhas ou das sacholas ou das forquilhas ou das caçadeiras, quando o vinho e as paixões subiam à cabeça, e que se estripavam ou se matavam uns aos outros, por questões de honra, ciúme ou propriedade ?! E os excessos das paixões da alma das mulheres ? Lembras-te daquela que matou o marido, cortou-o às postas e assou-o no forno a lenha como se fora bacalhau à lagareiro...
Essa violência entre vizinhos perturbava-te… Quem disse, afinal, que a tua aldeia era uma terra de brandos costumes ?
90. Dois tostões o par, o chicharro, no verão de todas as farturas, vinham em bandos, no inverno, os filhos dos pescadores de Peniche, das traineiras da sardinha, estender a mão à caridade dos camponeses, de barriga farta, no pós-guerra em que tu nasceste.
(Continua)
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[1] "Marcelino Pão e Vinho" : um filme espanhol de 1955, realizado por Ladislao Vajda, baseado no livro homónimo ["Marcelino, pan y vino"] de José María Sánchez. Sinopse: "Marcelino é um órfão deixado à porta de um mosteiro e criado por doze frades. Certo dia, ele oferece, durante sua refeição, um pedaço de pão e um pouco de vinho a uma imagem de madeira de Jesus, crucificado, que aceita a oferta e passa a conversar com o menino. É o início de uma grande e bela amizade."
[2] 7$50, em finais dos anos 50, seria hoje o equivalente a 3 euros... Mas o salário, médio, nos campos, não ultrapassaria os 20 escudos (menos de 9 euros).
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Nota do editor:
(*) Últimos postes da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)
17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)
18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)
Guiné 61/74 - P20081: Banco do Afecto contra a Solidão (23): o ex-soldado paraquedista nº 04341366, Álvaro Magalhães, eo seu processo kafkiano, que se arrasta desde o início dos anos 90, de reconhecimento de doença em serviço...Camaradas, quem pode ajudar ? (Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)
1. Mensagem do nosso amigo e camarada Jaime [Bonifácio Marques da] Silva, natural de (e residente em) Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande, com 60 registos no blogue:
Data: terça, 13/08/2019 à(s) 11:54
Assuntio: Processo do paraquedista Ávaro Magalhães
Caro Luís:
Vê se consegues que algum camarada nosso tem disponibilidade para averiguar se o processo do paraquedista Álvaro Magalhães, combatente em Angola, ainda se arrastará por mais tempo:
O Álvaro, por indicação do seu médico de família, iniciou nos anos 90 o processo para lhe ser reconhecido qe sofre de "stress pós.traumático de guerra".
Data: terça, 13/08/2019 à(s) 11:54
Assuntio: Processo do paraquedista Ávaro Magalhães
Caro Luís:
Vê se consegues que algum camarada nosso tem disponibilidade para averiguar se o processo do paraquedista Álvaro Magalhães, combatente em Angola, ainda se arrastará por mais tempo:
O Álvaro, por indicação do seu médico de família, iniciou nos anos 90 o processo para lhe ser reconhecido qe sofre de "stress pós.traumático de guerra".
O processo deu entrada nos Hospital Militar da Força Aérea em Lisboa no início dos anos noventa.
O tempo passou e, quando o Álvaro tenta saber da evolução do processo, é informado que este tinha desaparecido. Por volta de 2008, desesperado, pede-me ajuda e conseguimos que desse entrada um novo processo em 2009..
Tudo volta à estaca zero e entrega novo processo que ainda se arrasta. O Álvaro vive desesperado e necessita de ajuda muito urgente.
Identificação do processo:
Processo de averiguações por doença em serviço N.º 004/ 2018 / AMI / 001 /DS
O último ofício que recebeu foi oriunda do Ministério da Defesa Nacional - Força Aérea - Comando Pessoal / Serviço de Justiça do Hospital das Forças Armadas na Avenida da Boavista, Porto.
Álvaro Magalhães - Ex. sold. Paraquedista / 04341366
Por favor vê o que podes fazer.
abraço
Jaime
Identificação do processo:
Processo de averiguações por doença em serviço N.º 004/ 2018 / AMI / 001 /DS
O último ofício que recebeu foi oriunda do Ministério da Defesa Nacional - Força Aérea - Comando Pessoal / Serviço de Justiça do Hospital das Forças Armadas na Avenida da Boavista, Porto.
Álvaro Magalhães - Ex. sold. Paraquedista / 04341366
Por favor vê o que podes fazer.
abraço
Jaime
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Nota do editor:
Nota do editor:
Último poste da série > 3 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17427: Banco do Afecto contra a Solidão (22): Notícias do antigo 1º sargento da CCAÇ 1419 (1965/67) e da CCAÇ 2312 (1968/69), e cofundador da ONG Ajuda Amiga, António Joaquim Lageira: deixou de comparecer aos convívios anuais e estava num lar do exército, em Oeiras, em 2015 (Ana Pacheco / Carlos Fortunato)
Guiné 61/74 - P20080: Historiografia da presença portuguesa em África (173): A cédula pessoal do território da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2018:
Queridos amigos,
Creio que ninguém se surpreenderá com o facto de a província da Guiné ter nascido juridicamente em 1886. Do século XV ao século XIX, multiplicaram-se as designações, quase todas elas desencontradas. Não havia fronteiras, as praças e presídios situavam-se no litoral ou em pontos estratégicos dos rios. Ninguém se fixava no interior. Quando o Alferes Francisco Marques Geraldes viaja da região do Geba para Selho, no Casamansa, descobre que havia populações que nunca tinham visto um branco, caminhava-se para o fim do século XIX. As fronteiras deram litígio, um deles é uma ferida permanente, o Casamansa. Sékou Touré sonhava com a grande Guiné e com o seu talento diplomático Amílcar Cabral dizia com meridiana clareza que as fronteiras do novo país seriam exatamente as da antiga colónia portuguesa. E assim aconteceu, a despeito de fenómeno de cobiça como a região costeira entre o Senegal e a Guiné-Bissau que se julga estar impregnada de petróleo.
Um abraço do
Mário
A cédula pessoal do território da Guiné-Bissau
Beja Santos
A província da Guiné-Portuguesa nasce no século XIX. Antes, a partir do seu descobrimento, multiplicaram-se as designações, sempre imprecisas, vagas e arbitrárias: Rios da Guiné de Cabo Verde, Grande Senegâmbia, Pequena Senegâmbia, Terra dos Negros… Na constituição liberal não há nenhuma referência à Guiné, fala-se em Cacheu e Bissau, Eça de Queiroz, num dos seus trabalhos jornalísticos, fala de Senegâmbia, referência igualmente feita por Honório Pereira Barreto na sua incontornável Memória para as autoridades de Lisboa. Igualmente os limites territoriais eram indefinidos, havia a ideia de que tudo começava no território continental do Cabo Verde e se estendia até à Serra Leoa. Da leitura que fiz às descrições seiscentistas da Guiné, da autoria de Francisco Lemos Coelho, documento anotado pelo historiador Damião Peres, edição da Academia Portuguesa de História, 1953, apura-se que este comerciante e aventureiro terá passado a meninice em Guinala (região de Buba), morou em Cacheu e Bissau, viajou pelo Casamansa, atravessou por terra deste rio para o rio Gâmbia, navegou pelo Geba, percorreu as ilhas dos Bijagós, explorou a costa da Serra Leoa. Ao começar a sua descrição, é muito claro: “É a Costa da Guiné de que pretendo dar notícia, toda aquela terra que se estende do Cabo Verde, o qual fica em altura de 14 graus até ao focinho da Serra Leoa que fica em 7, que esta é a terra que é navegação dos portugueses, assim moradores que vivem por todos os rios que estão neste distrito, como os que passam a estas partes a negociar, em o qual distrito há os reinos, portos, gentes e comércio que aqui se verá”. E a sua primeira descrição serão os Jalofos, etnia predominante no Senegal.
Produto direto da Conferência de Berlim, que se estendeu de 1884 a 1885, decorrente dos permanentes litígios entre portugueses e franceses naquela região da África Ocidental, obteve-se mediante a Convenção Luso-Francesa de 1886 uma perda entendida como chocante e contrária à presença portuguesa, a região do Casamansa, a posse definida do interior da Guiné, punha-se termo a um mar de brumas e entregava-se a Portugal a Guiné continental e insular, com a mesma superfície que possui atualmente, 36.125 quilómetros quadrados.
Começa o texto da convenção nos seguintes termos: “D. Luís, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, D’Aquém e D’Além mar, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc. Faço saber que se concluiu e assinou em Paris entre mim e o Presidente da República francesa uma convenção especial em que do lado português foram plenipotenciários, o senhor João de Andrade Corvo, Conselheiro de Estado e o senhor Carlos Roma du Bocage, Deputado, Capitão do Estado-Maior de Engenharia…”; e no artigo primeiro esclarecem-se as fronteiras: ao norte, uma linha que partindo do Cabo Roxo, se conservará, tanto quanto possível, em igual distância dos rios da Casamansa e de S. Domingos de Cacheu; a Leste, a fronteira seguirá o meridiano de 16º de longitude oeste de Paris, desde o paralelo de 12º 40’ de latitude norte; a leste a fronteira seguirá o meridiano de 16º de longitude oeste de Paris, desde o paralelo de 12º 40’ de latitude norte, até ao paralelo de 11º 40’ de latitude norte; ao sul, a fronteira seguirá uma linha que partirá da foz do rio Cajet, situado entre a ilha de Catack (que ficará para Portugal) e a ilha de Tristão (que ficará para a França) e, conservando-se tanto quanto possível, segundo as indicações do terreno, a igual distância do rio Componi (Tabati) e do rio Cacine, depois do braço setentrional do rio Componi (Tabati) e do braço meridional do rio Cacine, esteiro de Cacondo a princípio, e do rio Grande por fim, virá terminar no ponto de interseção do meridiano de 16º de longitude oeste de Paris com o paralelo de 11º 40’ de latitude norte. Ficarão pertencendo a Portugal todas as ilhas compreendidas entre o meridiano do Cabo Roxo, a costa, e um limite meridional formado por uma linha que seguirá o talvegue do rio Cajet e se dirigirá depois para sudoeste…
No artigo segundo, o reino de Portugal reconhece o protetorado da França sob os territórios de Futa-Djalon. Depois o texto da convenção espraia-se sob a região do Congo, as possessões francesas da costa ocidental de África.
Foram constituídas delegações para delimitar as fronteiras, trabalho que se iniciou em 1887, com divergências e interrupções. E escreve-se no Anuário da Guiné de 1948: “Constituída uma nova missão Luso-Francesa foi possível de 1900 a 1905 fixar as fronteiras da Guiné Portuguesa. A missão portuguesa era chefiada por Oliveira Muzanty. Em 1919, o Capitão-Tenente Teixeira Marinho à frente de uma missão geográfica conclui os trabalhos de campo, permitindo o traçado de uma nova carta de Guiné. De 1929 a 1931, uma nova missão luso-francesa fez as rectificações das fronteiras. A representação portuguesa foi confiada ao Major de Artilharia Soares Zilhão que a chefiava e aos adjuntos engenheiros geógrafo Baptista Lopes e topógrafos Morais Soares e Fausto Duarte".
Em resumo, a província da Guiné, depois desta convenção de 1886, confrontava-se ao Norte, Leste e Sul com a África Ocidental Francesa (Senegal ao Norte, e Guiné Francesa a Leste Sul), e a Oeste com o oceano Atlântico.
Após os trabalhos de delimitação de fronteiras, ficou então definida uma linha convencional que partindo do Cabo Roxo corre pela região dos Felupes e Baiotes, mantém-se quase a igual distância dos rios Cacheu e Casamansa até ao marco 145; segue depois por novo rumo, aproximadamente na direção Este e, ao chegar ao marco 133, na vizinhança de Canja, inflete para Nordeste, apoiando no paralelo 12º 40’, até ao marco extremo 58. Ali começa a fronteira Leste, entre as regiões de Pachiche e Pajade que desce pela margem sinuosa do rio Cocoli, e se afasta novamente, contornando o Futa-Djalon até ao paralelo 11º 40’. A fronteira sul estende-se pela região montanhosa abaixo de Dandum, acompanha o rio Cogon, segue para o território compreendido entre esse rio e o Corubal e inflete na direção da foz do rio Cajet. Quanto à fronteira Oeste, ela é a linha da Costa banhada pelo Atlântico, recortada de estuários e canais, salpicada de numerosas ilhas entre as quais as do arquipélago dos Bijagós.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20059: Historiografia da presença portuguesa em África (171): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Creio que ninguém se surpreenderá com o facto de a província da Guiné ter nascido juridicamente em 1886. Do século XV ao século XIX, multiplicaram-se as designações, quase todas elas desencontradas. Não havia fronteiras, as praças e presídios situavam-se no litoral ou em pontos estratégicos dos rios. Ninguém se fixava no interior. Quando o Alferes Francisco Marques Geraldes viaja da região do Geba para Selho, no Casamansa, descobre que havia populações que nunca tinham visto um branco, caminhava-se para o fim do século XIX. As fronteiras deram litígio, um deles é uma ferida permanente, o Casamansa. Sékou Touré sonhava com a grande Guiné e com o seu talento diplomático Amílcar Cabral dizia com meridiana clareza que as fronteiras do novo país seriam exatamente as da antiga colónia portuguesa. E assim aconteceu, a despeito de fenómeno de cobiça como a região costeira entre o Senegal e a Guiné-Bissau que se julga estar impregnada de petróleo.
Um abraço do
Mário
A cédula pessoal do território da Guiné-Bissau
Beja Santos
A província da Guiné-Portuguesa nasce no século XIX. Antes, a partir do seu descobrimento, multiplicaram-se as designações, sempre imprecisas, vagas e arbitrárias: Rios da Guiné de Cabo Verde, Grande Senegâmbia, Pequena Senegâmbia, Terra dos Negros… Na constituição liberal não há nenhuma referência à Guiné, fala-se em Cacheu e Bissau, Eça de Queiroz, num dos seus trabalhos jornalísticos, fala de Senegâmbia, referência igualmente feita por Honório Pereira Barreto na sua incontornável Memória para as autoridades de Lisboa. Igualmente os limites territoriais eram indefinidos, havia a ideia de que tudo começava no território continental do Cabo Verde e se estendia até à Serra Leoa. Da leitura que fiz às descrições seiscentistas da Guiné, da autoria de Francisco Lemos Coelho, documento anotado pelo historiador Damião Peres, edição da Academia Portuguesa de História, 1953, apura-se que este comerciante e aventureiro terá passado a meninice em Guinala (região de Buba), morou em Cacheu e Bissau, viajou pelo Casamansa, atravessou por terra deste rio para o rio Gâmbia, navegou pelo Geba, percorreu as ilhas dos Bijagós, explorou a costa da Serra Leoa. Ao começar a sua descrição, é muito claro: “É a Costa da Guiné de que pretendo dar notícia, toda aquela terra que se estende do Cabo Verde, o qual fica em altura de 14 graus até ao focinho da Serra Leoa que fica em 7, que esta é a terra que é navegação dos portugueses, assim moradores que vivem por todos os rios que estão neste distrito, como os que passam a estas partes a negociar, em o qual distrito há os reinos, portos, gentes e comércio que aqui se verá”. E a sua primeira descrição serão os Jalofos, etnia predominante no Senegal.
Produto direto da Conferência de Berlim, que se estendeu de 1884 a 1885, decorrente dos permanentes litígios entre portugueses e franceses naquela região da África Ocidental, obteve-se mediante a Convenção Luso-Francesa de 1886 uma perda entendida como chocante e contrária à presença portuguesa, a região do Casamansa, a posse definida do interior da Guiné, punha-se termo a um mar de brumas e entregava-se a Portugal a Guiné continental e insular, com a mesma superfície que possui atualmente, 36.125 quilómetros quadrados.
Começa o texto da convenção nos seguintes termos: “D. Luís, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, D’Aquém e D’Além mar, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc. Faço saber que se concluiu e assinou em Paris entre mim e o Presidente da República francesa uma convenção especial em que do lado português foram plenipotenciários, o senhor João de Andrade Corvo, Conselheiro de Estado e o senhor Carlos Roma du Bocage, Deputado, Capitão do Estado-Maior de Engenharia…”; e no artigo primeiro esclarecem-se as fronteiras: ao norte, uma linha que partindo do Cabo Roxo, se conservará, tanto quanto possível, em igual distância dos rios da Casamansa e de S. Domingos de Cacheu; a Leste, a fronteira seguirá o meridiano de 16º de longitude oeste de Paris, desde o paralelo de 12º 40’ de latitude norte; a leste a fronteira seguirá o meridiano de 16º de longitude oeste de Paris, desde o paralelo de 12º 40’ de latitude norte, até ao paralelo de 11º 40’ de latitude norte; ao sul, a fronteira seguirá uma linha que partirá da foz do rio Cajet, situado entre a ilha de Catack (que ficará para Portugal) e a ilha de Tristão (que ficará para a França) e, conservando-se tanto quanto possível, segundo as indicações do terreno, a igual distância do rio Componi (Tabati) e do rio Cacine, depois do braço setentrional do rio Componi (Tabati) e do braço meridional do rio Cacine, esteiro de Cacondo a princípio, e do rio Grande por fim, virá terminar no ponto de interseção do meridiano de 16º de longitude oeste de Paris com o paralelo de 11º 40’ de latitude norte. Ficarão pertencendo a Portugal todas as ilhas compreendidas entre o meridiano do Cabo Roxo, a costa, e um limite meridional formado por uma linha que seguirá o talvegue do rio Cajet e se dirigirá depois para sudoeste…
No artigo segundo, o reino de Portugal reconhece o protetorado da França sob os territórios de Futa-Djalon. Depois o texto da convenção espraia-se sob a região do Congo, as possessões francesas da costa ocidental de África.
Foram constituídas delegações para delimitar as fronteiras, trabalho que se iniciou em 1887, com divergências e interrupções. E escreve-se no Anuário da Guiné de 1948: “Constituída uma nova missão Luso-Francesa foi possível de 1900 a 1905 fixar as fronteiras da Guiné Portuguesa. A missão portuguesa era chefiada por Oliveira Muzanty. Em 1919, o Capitão-Tenente Teixeira Marinho à frente de uma missão geográfica conclui os trabalhos de campo, permitindo o traçado de uma nova carta de Guiné. De 1929 a 1931, uma nova missão luso-francesa fez as rectificações das fronteiras. A representação portuguesa foi confiada ao Major de Artilharia Soares Zilhão que a chefiava e aos adjuntos engenheiros geógrafo Baptista Lopes e topógrafos Morais Soares e Fausto Duarte".
Em resumo, a província da Guiné, depois desta convenção de 1886, confrontava-se ao Norte, Leste e Sul com a África Ocidental Francesa (Senegal ao Norte, e Guiné Francesa a Leste Sul), e a Oeste com o oceano Atlântico.
Após os trabalhos de delimitação de fronteiras, ficou então definida uma linha convencional que partindo do Cabo Roxo corre pela região dos Felupes e Baiotes, mantém-se quase a igual distância dos rios Cacheu e Casamansa até ao marco 145; segue depois por novo rumo, aproximadamente na direção Este e, ao chegar ao marco 133, na vizinhança de Canja, inflete para Nordeste, apoiando no paralelo 12º 40’, até ao marco extremo 58. Ali começa a fronteira Leste, entre as regiões de Pachiche e Pajade que desce pela margem sinuosa do rio Cocoli, e se afasta novamente, contornando o Futa-Djalon até ao paralelo 11º 40’. A fronteira sul estende-se pela região montanhosa abaixo de Dandum, acompanha o rio Cogon, segue para o território compreendido entre esse rio e o Corubal e inflete na direção da foz do rio Cajet. Quanto à fronteira Oeste, ela é a linha da Costa banhada pelo Atlântico, recortada de estuários e canais, salpicada de numerosas ilhas entre as quais as do arquipélago dos Bijagós.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20059: Historiografia da presença portuguesa em África (171): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (2) (Mário Beja Santos)
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Guiné 61/74 - P20079: Parabéns a você (1668): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20076: Parabéns a você (1667): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)
Nota do editor
Último poste da série de 20 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20076: Parabéns a você (1667): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)
terça-feira, 20 de agosto de 2019
Guiné 61/74 - P20078: In Memoriam (346): José Manuel Vitória Cordeiro, ex-1.º Cabo At Art.ª do 3.º Pelotão da CART 2520 (José Nascimento, ex-Fur Mil Art)
1.º Cabo José Manuel Vitória Cordeiro (o Reguila)
3.º Pelotão da CART 2520
1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2019, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) dá notícia do falecimento do 1.º Cabo José Manuel Vitória Cordeiro, "Reguila" do 3. Pelotão da CART 2520.
Camaradas da Tabanca Grande,
Acabo de receber a triste notícia do falecimento dum elemento do 3.º pelotão da CART 2520, trata-se do 1.º Cabo José Manuel Vitória Cordeiro, detentor da alcunha do Reguila a quem há pouco tempo dediquei uma pequena história na nossa Tabanca Grande[1].
Era natural de Muge e desde há longos anos a residir em Mira de Aire, onde também exercia a sua actividade profissional no ramo das mobílias.
Foi um dos grandes símbolos da nossa Companhia, dedicado, amigo do seu amigo, granjeava da amizade e o respeito de todos nós, foi um dos principais impulsionadores dos nossos convívios anuais, inclusive do último, o dos 50 anos da nossa partida para a Guiné e que decorreu em Torres Novas, com a visita às instalações do que foi a nossa unidade mobilizadora, o antigo GACA 2[2].
Descansa em paz Cordeiro, descansa em paz Reguila.
José Nascimento
O "Reguila" em Santa Margarida. É o primeiro à esquerda.
____________Notas do editor:
À família enlutada e aos seus camaradas e amigos da CART 2520, a tertúlia da Tabanca Grande endereça as suas mais sentidas condolências.
[1] - Vd. poste de 30 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20020: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (14): "O Reguila"
[2] - Vd. poste de 29 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19839: Convívios (896): Cinquentenário da partida da CART 2520 para o CTIG, em 24 de Maio de 1969... Comemorado em Torres Novas, a 25 do corrente (José Nascimento)
Último poste da série de 11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20049: In Memoriam (345): Pedro Martinho de Lima Alves Martins, que comandou a CART 6554/73, "Os Intemeratos" (Angola, 1973/75). Era irmão do nosso camarada João Martins. O funeral é amanhã, em São Martinho do Porto, Alcobaça
Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)
Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense, da Lourinhã, no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a direita, é o meu pai, meu velho, meu camarada, Luís Henriques, então com 29 anos...
Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jogador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens... Faria ontem 99 anos, se fosse vivo... Nasceu em 1920 e morreu em 2012, ia completar os 92 anos...
Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica, seu clube de eleição, ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à sua geração para quem o futebol era uma paixão... Aqui ficam os seus nomes: "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, Miranda (Alfaiate), Jorge "Tarofa" (ou Jorge Serralheiro), José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo "Russo", Manuel "Swing", António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias ("Néu"), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o "Gino" (ou Higino), o Mário "Pepe", o Manuel "Ferrador", o António Costa"...
Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica, seu clube de eleição, ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à sua geração para quem o futebol era uma paixão... Aqui ficam os seus nomes: "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, Miranda (Alfaiate), Jorge "Tarofa" (ou Jorge Serralheiro), José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo "Russo", Manuel "Swing", António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias ("Néu"), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o "Gino" (ou Higino), o Mário "Pepe", o Manuel "Ferrador", o António Costa"...
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério de Mindelo > 1943 > Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), com a seguinte legenda: "Justa homenagem àqueles que dormem o sono eterno na terra fria. Companheiros de expedição os quais Deus chamou ao Juízo Final. Pessoal da A[nti] Aérea depois das cerimónias desfila fazendo continência às sepulturas dos companheiros. Oferecido pelo meu amigo Boaventura [Horta, conterrâneo, da Lourinhã,] no dia 17-8-1943, dia em que fiquei livre da junta (hospitalar)."
Luís Henriques (1920-2012), ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, Caldas da Rainha. Esteve 26 meses "desterrado" em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo, Lazareto, de julho de 1941 a setembro de 1943, em missão de soberania. Escrevia vinte e tal cartas por semana, em nome dos muitos camaradas do seu pelotão e da sua companhia que não sabiam ler nem escrever. Eram todos oriundos da Estremadura, Oeste
Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação) (*)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]
71. Sim, descobrirás, mais tarde, os famosos aventais de pau [1], no lendário Bairro Alto da formosa Lisboa onde se ia de camioneta, de excursão, uma vez na vida, no passeio da escola ou da catequese, ou quando se ia fazer, os sortudos!, o exame de admissão ao liceu, ou quando um mancebo, cheio de garbo, tiradas as sortes, de fitinha vermelha na lapela, era chamado para a tropa e jurava bandeira, e ia às meninas, para tirar… os três, antes de partir para defender a pátria, lá longe no ultramar, nas Áfricas, nas Índias, como o teu pai, em Cabo Verde em 1941/43…
72. Ah!, e o respeitinho, que naquele tempo ainda era tão bonito, cada macaco no seu galho, Deus no céu e os santos nos altares, nobreza, clero e povo, os três estados, uns em cima e outros em baixo, mal acamados, o povo a cavar a terra, a enxertar o bacelo, a podar, a sulfatar e a vindimar a vinha do Senhor, e o esplendor do cinismo dos grandes e a ostentação da caridade dos ricos, e a abjeção da arraia miúda, que dar aos pobres, era emprestar a Deus, que Deus, santo banqueiro, haveria de pagar-lhes com língua de palmo, juros e dividendos, ámen!... Deus, dizia o padre franciscano, pregador da Quaresma, sempre foi bom nas contas: "Cá se fazem, cá se pagam, meus irmãos!!...
Como os ricos emprestavam a Deus, dando aos pobres, eram cada vez ricos, como os judeus, pro causa dos juros e dividendos. Eles tinham uma conta-corrente no céu, os felizardos. E era importante que houvesse pobres, para os ricos poderem continuar a emprestar a Deus. Era talvez por isso que os ricos da tua aldeia eram gordos e tinham terras e casas, ou tinham terras e casas e eram gordos. Mas o povo mal os via: viviam em Lisboa.Não te lembras de ver um rico, em carne e osso, na tua aldeia. Só os criados e os feitores dos ricos. Os ricos nunca apareciam, tinham os seus representantes na aldeia. Como Deus, que tinha os seus representantes na terra: o papa em Roma, o padre vigário na tua aldeia, a tua catequista, a "Branca de Neve", a senhora professora, o regedor da freguesia, o cabo de esquadra, e poucos mais mais. O "Brutamontes" e o "Frasco do Veneno", esses, eram os representantes do diabo na terra. Nunca lhes viste a credencial passada pelo diabo, mas a verdade é que eram os sacanas que te endiabravam... Ao longo do tempo, irás conhecer outros "Brutamontes" e outros "Frascos do Veneno", na paz e na guerra...
73. E o garboso comandante dos bombeiros, com o seu capacete de latão e o seu machado de paz, faiscante como a espada do samurai, e o aferidor dos pesos e medidas, o avaliador e o agrimensor, e o juiz do julgado de paz e de guerra, e o pobre do legionário, patético, o senhor Pessoa, de seu nome Fernando, sósia do original, escriturário camarário, que era o chefe da Legião Portuguesa, e que fazia ordem unida com os fedelhos, de espingarda Mauser ao ombro, e que era incapaz de fazer mal a uma mosca, e que, dizem, morreu virgem e chupado como uma carocha!...
Ora nenhum herói da pátria, em tempo de paz ou de guerra, devia morrer virgem, sem reproduzir, ao menos, o ADN do heroísmo. Crescei e multiplicai-vos era então a palavra de ordem. E, pelo menos na tua aldeia, pais e mães faziam o seu trabalho de casa.
Ah!, o senhor capitão Belo, de farda republicana, não menos excelentíssimo presidente do município, pequenitote representante do todo poderoso Estado Novo, que inaugurava o lavadouro e o fontanário e perante quem o povo se desbarretava, sempre atento, venerador e obrigado, o povo, o polvo, temente a Deus e aos grandes deste mundo, o Zé Povinho que só acordava da sua letargia e se agigantava de meio século em meio século.
74. Enfim, havia ainda a charanga no coreto, mas isso era em agosto, na festa da nossa senhora dos Anjos e os foguetes e os meninos, pobretes mas alegretes, e os cães, danados, atrás das canas dos foguetes, alvoraçados, os diabretes, que depois faziam chichi, à noite, na cama, ameaçava-te a tua mãezinha!... (Nunca a trataste por mãezinha, pois não ? Isso eram ternuras citadinas!).
Afinal, eram tantas as emoções!... Mesmo assim... Mesmo se detestasses os domingos à tarde, em que chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Mesmo se nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parasse no relógio, sonolento, da torre sineira da igreja da tua aldeia.
"Experimenta comer um limão à frente do gajo do trombone", ensinava-te o "Brutamontes". "O gajo do trombone começa a salivar e a dar fífias!"...
As coisas, más, que sabia o "Brutamontes”!... Ou essa ensinou-te o "Frasco do Veneno" ?!... A verdade é que os putos da tua aldeia, provocadores, adoravam comer limões à frente da secção de metais da banda filarmónica. Só havia metais, não havia cordas!...
75. Um cão uivava aos domingos à tarde, enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor descansavam o corpo, magoado, os malteses, os ratinhos que vinham em magotes dos minhos, das beiras, dos ribatejos, dos alentejos, fugidos da fome e dos cavalos da GNR. E dormiam, na papel do trigo ou nas folhas de milho, que se guardavam para se fazer os colchões no inverno.
Em boa verdade, tu nunca chegarás a ver a GNR a cavalo, a espadeirar o povo, só mais tarde em fotografia, isso era no Barreiro da CUF, e tu ainda não sabias que existia o Barreiro da CUF, apenas os sacos de adubo da CUF com que a tua mãe faziam os sacos para o pão, e os aventais de cozinha. No tempo em que nãohvaia sacos de plástico, e tudo se reciclava...
Muito menos alguma vez tinhas visto as ceifeiras do Alentejo, só conhecias o celeiro do trigo da Federação Nacional do Trigo, com cereal até ao teto em anos de grande fartura de pão.
Nem sabias da Marinha Grande dos vidreiros ou sequer da Peniche dos pescadores, ali tão perto, as Berlengas à vista e o temível cabo Carvoeiro, o mar da Meia Via, cemitério de corsários, marinheiros, pescadores e outros mareantes.
Sabias lá tu dos operários que estavam em construção, nem muito menos das fábricas de chaminés altas, e dos perigosos comunistas (de que Deus nos livrasse!), inimigos mortais da Nação, metidos a foice e a martelo na fortaleza de Peniche, muda e queda.
76. Tu nunca tinhas saído do perímetro da tua terra, até aos oito anos, idade em que foste de excursão a Lisboa, com a "Branca de Neve" e os "Sete Anões": entrava-se na cidade pela tortuosa e íngreme calçada de Carriche, e pelas vetustas ruas do Lumiar, por meio de quintas, mas só te lembras do Tejo e das velas das fragatas, dos comboios e dos elétricos e do aquário de Vasco da Gama, e dos Jerónimos e do palácio de Belém…
Não te lembras de ir ao Jardim Zoológico, que devia ser muito caro, para os meninos da tua terra, que levavam farnel e tudo!... Lembras-te dos palacetes do Lumiar e das heras a crescer nos muros altos e da patine do tempo. Nunca mais esquecerás essa expressão, a da patine do tempo.
77. E o Tarrafal ? Sabias lá tu onde ficava o Tarrafal [2], o teu pai, expedicionário da II Guerra Mundial, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, nunca te falara do Tarrafal, falava-te do Mindelo, do Monte Cara, do Lazareto, as bias, os tubarões, a morna, a coladera, a baía, o porto grande, a ilha onde até as pedras tinham venéreo, a fome do Joãozinho, a morte do Joãozinho, nosso cabo, bó impedido, Joãozinho, morreu. De fome, da grande fome, da fome milenar, intrínseca, de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, da fome da música e da poesia, da fome de pão de milho, e fome de terra e de céu, de fome de pão de trigo misturado com centeio, de mandioca e de cereal no pilão, e de poesia em crioulo, e de cachupa e de chabéu.
78. Lembras-te do álbum de fotografias do teu pai, o teu único brinquedo de montar e desmontar, que tiveste na infância, lembras-te do Mouzinho de Albuquerque, vapor da nossa orgulhosa marinha mercante, mas sabias lá tu quem era o Xico Vieira Machado, lídimo representante da nação, de visita a Cabo Verde, ministro plenipotenciário, homenzinho atarracado de chapéu colonial, latifundiário da tua terra, patrão do Banco Nacional Ultramarino, banco emissor de patacão da Guiné (, sabê-lo-ás, mais tarde), e que deixou o Joãozinho morrer de fome.
79. Enfim, havia o Império de todos nós, o lusitano império do tamanho da lonjura do Minho a Timor, desmesurado para tão parcas e desvairadas gentes. O último baluarte da civilização ocidental e cristã, lia-se nos títulos de caixa alta dos jornais de Lisboa, que chegavam à província.
Lembras-te, de reler, as cartas apaixonadas que o teu pai escrevia à tua mãe, em papel bíblico, a tinta de cor verde, e belíssima caligrafia, com selo e carimbo do correio de Cabo Verde que ficava lá longe no ultramar dos pretinhos e dos missionários de barbas brancas:
“Maria, minha cachopa,
não me sais do pensamento,
assim que eu sair da tropa,
trataremos do casamento”.
80. Ias para o pequeno rio Grande brincar, o rio Grande da tua aldeia, apanhar as bugalhos dos carvalhos, enquanto o teu pai, o teu ídolo, jogava a ponta esquerda, coitado do sapateiro e campeão das damas, nunca passaria da cepa torta, por jogar à bola e a ponta esquerda num campo pelado, no campo pelado da vida, no campo de jogos da tua terra, ao domingo à tarde, com um cão a uivar na vinha vindimada do Senhor.
Ah!, o rio Grande que só era grande quando galgava as margens e se confundia com o mar, o grande oceano.
(Continua)
____________
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)
17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)
18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)
Texto (inédito):
© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.
(Continuação) (*)
[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]
71. Sim, descobrirás, mais tarde, os famosos aventais de pau [1], no lendário Bairro Alto da formosa Lisboa onde se ia de camioneta, de excursão, uma vez na vida, no passeio da escola ou da catequese, ou quando se ia fazer, os sortudos!, o exame de admissão ao liceu, ou quando um mancebo, cheio de garbo, tiradas as sortes, de fitinha vermelha na lapela, era chamado para a tropa e jurava bandeira, e ia às meninas, para tirar… os três, antes de partir para defender a pátria, lá longe no ultramar, nas Áfricas, nas Índias, como o teu pai, em Cabo Verde em 1941/43…
72. Ah!, e o respeitinho, que naquele tempo ainda era tão bonito, cada macaco no seu galho, Deus no céu e os santos nos altares, nobreza, clero e povo, os três estados, uns em cima e outros em baixo, mal acamados, o povo a cavar a terra, a enxertar o bacelo, a podar, a sulfatar e a vindimar a vinha do Senhor, e o esplendor do cinismo dos grandes e a ostentação da caridade dos ricos, e a abjeção da arraia miúda, que dar aos pobres, era emprestar a Deus, que Deus, santo banqueiro, haveria de pagar-lhes com língua de palmo, juros e dividendos, ámen!... Deus, dizia o padre franciscano, pregador da Quaresma, sempre foi bom nas contas: "Cá se fazem, cá se pagam, meus irmãos!!...
Como os ricos emprestavam a Deus, dando aos pobres, eram cada vez ricos, como os judeus, pro causa dos juros e dividendos. Eles tinham uma conta-corrente no céu, os felizardos. E era importante que houvesse pobres, para os ricos poderem continuar a emprestar a Deus. Era talvez por isso que os ricos da tua aldeia eram gordos e tinham terras e casas, ou tinham terras e casas e eram gordos. Mas o povo mal os via: viviam em Lisboa.Não te lembras de ver um rico, em carne e osso, na tua aldeia. Só os criados e os feitores dos ricos. Os ricos nunca apareciam, tinham os seus representantes na aldeia. Como Deus, que tinha os seus representantes na terra: o papa em Roma, o padre vigário na tua aldeia, a tua catequista, a "Branca de Neve", a senhora professora, o regedor da freguesia, o cabo de esquadra, e poucos mais mais. O "Brutamontes" e o "Frasco do Veneno", esses, eram os representantes do diabo na terra. Nunca lhes viste a credencial passada pelo diabo, mas a verdade é que eram os sacanas que te endiabravam... Ao longo do tempo, irás conhecer outros "Brutamontes" e outros "Frascos do Veneno", na paz e na guerra...
73. E o garboso comandante dos bombeiros, com o seu capacete de latão e o seu machado de paz, faiscante como a espada do samurai, e o aferidor dos pesos e medidas, o avaliador e o agrimensor, e o juiz do julgado de paz e de guerra, e o pobre do legionário, patético, o senhor Pessoa, de seu nome Fernando, sósia do original, escriturário camarário, que era o chefe da Legião Portuguesa, e que fazia ordem unida com os fedelhos, de espingarda Mauser ao ombro, e que era incapaz de fazer mal a uma mosca, e que, dizem, morreu virgem e chupado como uma carocha!...
Ora nenhum herói da pátria, em tempo de paz ou de guerra, devia morrer virgem, sem reproduzir, ao menos, o ADN do heroísmo. Crescei e multiplicai-vos era então a palavra de ordem. E, pelo menos na tua aldeia, pais e mães faziam o seu trabalho de casa.
Ah!, o senhor capitão Belo, de farda republicana, não menos excelentíssimo presidente do município, pequenitote representante do todo poderoso Estado Novo, que inaugurava o lavadouro e o fontanário e perante quem o povo se desbarretava, sempre atento, venerador e obrigado, o povo, o polvo, temente a Deus e aos grandes deste mundo, o Zé Povinho que só acordava da sua letargia e se agigantava de meio século em meio século.
E, quando acordava, esbaforido, qual gigante cego, era para se alvoraçar e escaqueirar a mobília toda das repartições do Estado e queimar os papéis. E bater na mulher e nos filhos, nos criados e nos marginais, nos judeus e nos pretos, nos malhados e nos comunistas.... O povo dormia demais mas tinha mau despertar, agigantava-se como o ogre. Forte com os fracos, fraco com os fortes... Dava uma manguito e voltava a adormecer por mais cinquenta anos...
Havia um judeu na tua terra chamado Jacó. E um papagaio também chamado Jacó. É estranho: não havia pretos de carapinha. Ou havia, e desfrisavam o cabelo ?
74. Enfim, havia ainda a charanga no coreto, mas isso era em agosto, na festa da nossa senhora dos Anjos e os foguetes e os meninos, pobretes mas alegretes, e os cães, danados, atrás das canas dos foguetes, alvoraçados, os diabretes, que depois faziam chichi, à noite, na cama, ameaçava-te a tua mãezinha!... (Nunca a trataste por mãezinha, pois não ? Isso eram ternuras citadinas!).
Afinal, eram tantas as emoções!... Mesmo assim... Mesmo se detestasses os domingos à tarde, em que chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Mesmo se nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parasse no relógio, sonolento, da torre sineira da igreja da tua aldeia.
"Experimenta comer um limão à frente do gajo do trombone", ensinava-te o "Brutamontes". "O gajo do trombone começa a salivar e a dar fífias!"...
As coisas, más, que sabia o "Brutamontes”!... Ou essa ensinou-te o "Frasco do Veneno" ?!... A verdade é que os putos da tua aldeia, provocadores, adoravam comer limões à frente da secção de metais da banda filarmónica. Só havia metais, não havia cordas!...
75. Um cão uivava aos domingos à tarde, enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor descansavam o corpo, magoado, os malteses, os ratinhos que vinham em magotes dos minhos, das beiras, dos ribatejos, dos alentejos, fugidos da fome e dos cavalos da GNR. E dormiam, na papel do trigo ou nas folhas de milho, que se guardavam para se fazer os colchões no inverno.
Em boa verdade, tu nunca chegarás a ver a GNR a cavalo, a espadeirar o povo, só mais tarde em fotografia, isso era no Barreiro da CUF, e tu ainda não sabias que existia o Barreiro da CUF, apenas os sacos de adubo da CUF com que a tua mãe faziam os sacos para o pão, e os aventais de cozinha. No tempo em que nãohvaia sacos de plástico, e tudo se reciclava...
Muito menos alguma vez tinhas visto as ceifeiras do Alentejo, só conhecias o celeiro do trigo da Federação Nacional do Trigo, com cereal até ao teto em anos de grande fartura de pão.
Nem sabias da Marinha Grande dos vidreiros ou sequer da Peniche dos pescadores, ali tão perto, as Berlengas à vista e o temível cabo Carvoeiro, o mar da Meia Via, cemitério de corsários, marinheiros, pescadores e outros mareantes.
Sabias lá tu dos operários que estavam em construção, nem muito menos das fábricas de chaminés altas, e dos perigosos comunistas (de que Deus nos livrasse!), inimigos mortais da Nação, metidos a foice e a martelo na fortaleza de Peniche, muda e queda.
76. Tu nunca tinhas saído do perímetro da tua terra, até aos oito anos, idade em que foste de excursão a Lisboa, com a "Branca de Neve" e os "Sete Anões": entrava-se na cidade pela tortuosa e íngreme calçada de Carriche, e pelas vetustas ruas do Lumiar, por meio de quintas, mas só te lembras do Tejo e das velas das fragatas, dos comboios e dos elétricos e do aquário de Vasco da Gama, e dos Jerónimos e do palácio de Belém…
Não te lembras de ir ao Jardim Zoológico, que devia ser muito caro, para os meninos da tua terra, que levavam farnel e tudo!... Lembras-te dos palacetes do Lumiar e das heras a crescer nos muros altos e da patine do tempo. Nunca mais esquecerás essa expressão, a da patine do tempo.
77. E o Tarrafal ? Sabias lá tu onde ficava o Tarrafal [2], o teu pai, expedicionário da II Guerra Mundial, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, nunca te falara do Tarrafal, falava-te do Mindelo, do Monte Cara, do Lazareto, as bias, os tubarões, a morna, a coladera, a baía, o porto grande, a ilha onde até as pedras tinham venéreo, a fome do Joãozinho, a morte do Joãozinho, nosso cabo, bó impedido, Joãozinho, morreu. De fome, da grande fome, da fome milenar, intrínseca, de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, da fome da música e da poesia, da fome de pão de milho, e fome de terra e de céu, de fome de pão de trigo misturado com centeio, de mandioca e de cereal no pilão, e de poesia em crioulo, e de cachupa e de chabéu.
78. Lembras-te do álbum de fotografias do teu pai, o teu único brinquedo de montar e desmontar, que tiveste na infância, lembras-te do Mouzinho de Albuquerque, vapor da nossa orgulhosa marinha mercante, mas sabias lá tu quem era o Xico Vieira Machado, lídimo representante da nação, de visita a Cabo Verde, ministro plenipotenciário, homenzinho atarracado de chapéu colonial, latifundiário da tua terra, patrão do Banco Nacional Ultramarino, banco emissor de patacão da Guiné (, sabê-lo-ás, mais tarde), e que deixou o Joãozinho morrer de fome.
79. Enfim, havia o Império de todos nós, o lusitano império do tamanho da lonjura do Minho a Timor, desmesurado para tão parcas e desvairadas gentes. O último baluarte da civilização ocidental e cristã, lia-se nos títulos de caixa alta dos jornais de Lisboa, que chegavam à província.
Lembras-te, de reler, as cartas apaixonadas que o teu pai escrevia à tua mãe, em papel bíblico, a tinta de cor verde, e belíssima caligrafia, com selo e carimbo do correio de Cabo Verde que ficava lá longe no ultramar dos pretinhos e dos missionários de barbas brancas:
“Maria, minha cachopa,
não me sais do pensamento,
assim que eu sair da tropa,
trataremos do casamento”.
80. Ias para o pequeno rio Grande brincar, o rio Grande da tua aldeia, apanhar as bugalhos dos carvalhos, enquanto o teu pai, o teu ídolo, jogava a ponta esquerda, coitado do sapateiro e campeão das damas, nunca passaria da cepa torta, por jogar à bola e a ponta esquerda num campo pelado, no campo pelado da vida, no campo de jogos da tua terra, ao domingo à tarde, com um cão a uivar na vinha vindimada do Senhor.
Ah!, o rio Grande que só era grande quando galgava as margens e se confundia com o mar, o grande oceano.
(Continua)
[1] Avental
de pau queria dizer as meias portas onde
as mulheres do Bairro Alto se mostravam…
[2] A
Colónia Penal do Tarrafal, situada no lugar de Chão Bom do concelho do
Tarrafal, na ilha de Santiago (Cabo Verde), foi criada pelo Governo português do
Estado Novo ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26 539, de 23 de Abril de 1936.
Nota do editor:
(*) Últimos postes da série:
11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)
13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)
14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)
15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)
16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)
17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)
18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)
Guiné 61/74 - P20076: Parabéns a você (1667): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20073: Parabéns a você (1666): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)
Nota do editor
Último poste da série de 19 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20073: Parabéns a você (1666): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)
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