Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos... Esta casa será durante alguns anos, até à morte do Pepito, a sede da Tabanca de São Martinho do Porto...
Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos (edição de autor, Bissau, 2006 ). Na realidade, tratou-se de uma edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz, em homenagem à memória, ao talento e ao exmplo cívico do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), que viveu na Guiné-Bissau, de 1949 a 1966, e depois, de 1976 até à data da sua morte.
1. Porque muitos dos nossos leitores mais recentes, nunca ouviram falar sequer do seu nome, aqui vai um pequeno apontamento biográfico sobre o autor deste livro de contos, Artur Augusto Silva (1912-1983) (, que tem 32 referências no nosso blogue).
Para quem quiser ter uma informação mais detalhada e contextualizada, ver aqui a sua biografia, profusamente ilustrada, da autoria do seu filho João Schwarz da Silva, na sua página, Des Gents Intéressants" (em francês e em português).
Artur Augusto Silva
(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930);
(ii) ainda estudante, foi director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";
(iii) na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";
(iv) licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;
(v) em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;
(vi) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura: dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados no livro "O Cativeiro dos Bichos", como o Zé Faneca, pescador da Nazaré;
(vii) em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;
(viii) foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com António Carneiro mas também com Amílcar Cabral (de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes);
(ix) participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau, onde a sua esposa, dra. Clara Schwarz da Silva, foi professora;
(x) visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;
(xi) cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";
(xii) em 26 de agosto de 1966, foi preso pela PIDE, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recordará sempre "com dor e revolta";
(xiii) esteve preso em Caxias, durante 4 meses, sem culpa formada;
(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";
(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".
(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;
(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;
(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.
(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";
(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".
(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;
(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;
(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.
2. Em homenagem ao autor, à sua esposa, Clara Schwarz (1915-2016) (que foi durante anos a decana da Tabanca Grande), e aos filhos de ambos, Iko, já falecido, João Schwarz da Silva (que vive em Paris, e é também nosso grã-tabanqueiro) e Carlos Schwarz da Silva, Bissau, 1949 - Lisboa, 2012), o nosso querido e saudoso Pepito (cofundador e histórico líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), republicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos deste livro de contos, e que deu o título à obra, "o Cativeiro dos Bichos" (pp. 57/63).
Trata-se uma fabulosa fábula (, se nos é permitido o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1966, na Prisão de Caxias, tinha também uma contundente crítica, implícita, ao sistema colonial, à sua política e à sua justiça; recorde-se que na época era governador (e comandante-chefe) da Guiné o General Arnaldo Schulz, o mesmo que o expulsou da sua tão amada terra de adopção, e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do longo braço armado da PIDE, e que se depois se opôs ao seu regresso à Guiné: em ofício da subedelegação da PIDE de Bissau, de 19/12/1966, é transmitida ao Diretor-Geral da PIDE a opinião do Governador de que "aquele Senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo" (sic).
A propósito das "fábulas guineenses", veja-se também a série que temos estado a reproduzir, a partir do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", da autoria de J. Carlos M. Fortunato ("Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.], s/l, Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017, 102 pp, ISBN 978-989-8661-68-5 (*`*)
Recorde-se que na cultura dos mais diversos povos as fábulas (, contos populares,) são também uma forma, indireta, de denunciar e criticar os abusos do poder dos mais fortes. Muitas delas, incluindo as fábulas guineenses, encerram lições segundo as quais os animais mais fortes, como o leão ou o "lobo" (hiena), podem ser vencidos pela "audácia", "coragem", "inteligência" e "cooperação" dos mais fracos.
O Cativeiro dos Bichos (pp. 57-63)
por Artur Augusto Silva (*)
A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.
Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.
Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.
Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !
As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.
Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.
Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares,
Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.
A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.
Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.
Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.
A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.
Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.
Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.
Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.
Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.
Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.
Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.
O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.
As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.
O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.
Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.
A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.
Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.
Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.
Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. – Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...
Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.
Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.
Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.
Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.
Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam.
Notas do edtor:
(*) Vd. poste de 20 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)
Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.
Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.
Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !
As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.
Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.
Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares,
desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.
Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.
A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.
Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.
Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.
A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.
Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.
Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.
Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.
Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.
Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.
Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.
O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.
As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.
O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.
Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.
A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.
Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.
Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.
Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. – Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...
Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.
Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.
Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.
Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.
Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam.
Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.
Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.
Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.
Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.
O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".
Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.
Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".
Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.
A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.
Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.
É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.
Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.
(Prisão de Caxias, 1966) (***)
Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.
Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.
Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.
O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".
Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.
Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".
Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.
A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.
Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.
É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.
Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.
(Prisão de Caxias, 1966) (***)
[Revisão / fixação de texto, incluindo negritos, para efeitos de publicação deste poste: LG, com a devida vénia ]
Arbitrariamente detido pelo PIDE em 26 de agosto de 1966, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, acusado de "exercer actividades contra a segurança do Estado" (sic), esteve preso em Caxias 4 meses, sem culpa fomada. Foi solto em 26 de dezembro, sem julgamento, por ordem do subdiretor da PIDE, José Barreto Sacchetti. Repare-se no primeiro documento acima, a assinatura, perfeitamente legível, do agente da PIDE que deteve o advogado Artur Augusto Silva: Benedito Pereira André (que em 1974 era chefe de brigada; terá morrido recentemente, aos 89 anos).
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(*) Vd. poste de 20 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)
(**) Vd. poste de 30 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22950: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XI: Conto - O casamento do lebrão