segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (252): O Hospital Real de Todos os Santos (1504-1770): da ostentação da caridade do príncipe ao génio organizativo - Parte I

 




Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço (3) e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (2), ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito (1). O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira, com a frente virada para poente (para o que é hoje a praça do Rossio). Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa.

O Paço dos Estaus (ou Palácio da Inquisição) ardeu em 1834. No mesmo sítio, irá constrruir-se, dez anos depois, o Teatro Nacional Dona Maria I.



Museu de Lisboa > Hospital Real de Todos-os-Santos > Mestre "P.M.P."> MC.AZU.0074 > Inícios do Séc. XVIII > Dimensões: Altura: 1, 140 m x Comprimento: 3,430 m > Material: cerâmica. Vd, aqui zoom.
@ José Avelar/Museu de Lisboa









"Painel de azulejos de oficina de Lisboa, da 1ª metade do século XVIII, existente no Museu da Cidade, Lisboa, onde no primeiro plano aparecem tipos populares a comercializarem bens de consumo e, no lado esquerdo é representado o Chafariz de Neptuno, equiparado ao dedicado a Apolo, existente no Terreiro do Paço. 

"O Hospital Real de Todos-os-Santos tinha fachada virada para o Rossio e fora mandado erigir por D. João II em 1492, mas a sua construção só terminou no reinado de D. Manuel I, nos primeiros anos do século seguinte. Edifício de vanguarda na época, acolheu os primeiros internamentos em 1502, com regimento e estatuto de Escola de Medicina e o número de enfermarias foi crescendo ao longo do tempo: 3 (1504), 16 (1520) e 25 (1715). 

"O Hospital Real de Todos-os-Santos foi desactivado na sequência do Terramoto de 1755, ocorrido a 1 de Novembro desse ano, o qual foi responsável pela destruição quase completa da cidade de Lisboa e foi substituído depois pelo Hospital Real de São José, no que restou do colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus. (Rui Carita)
Data: circa 1740".


Foto (e legenda): Fonte: Museu de Lisboa | Wikimedia Commons (com a devida vénia...)


Índice:

Parte I

1. O hospital monumental renascentista: A ostentação da caridade

2. "Couza tam grande, e de tão grande maneo"

3. O movimento de concentração hospitalar

Parte II

4. O génio organizativo ou o esboço de uma diferenciação técnica e profissional na assistência hospitalar

4.1. O Provedor

4.2. O Almoxarife

4.3. O Hospitaleiro e o Vedor

4.4. Físico, Cirurgião, Boticário, Enfermeiro, Barbeiro-Sangrador e Cristaleira

5. Diferenciação Socioeconómica do Pessoal Hospitalar

Referências bibliográficas


Originalmente publicado na revista Dirigir. ISSN 0871-7354 . Lisboa : IEFP, Agosto de 1994, p. 26-31. Disponível na antiga página pessoal do autor, Saúde e Trabalho > Textos > 59. Graça L- (2000) - O Hospital Real de Todos os Santos. Parte I.


 O Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade  do príncipe ao génio organizativo

Parte I


1. O hospital monumental renascentista: 
A ostentação da caridade


Se o leitor do nosso blogue passar um dia destes por Lisboa, convido-o a visitar o excelente Museu da Cidade, polo Palácio Pimenta, ao Campo Grande. Aí poderá ter uma ideia da Lisboa pré-pombalina, através de uma magnífica maqueta da urbe e, inclusive, admirar a maqueta do antigo Hospital Real de Todos os Santos (abreviadamente, HRTS), para além de dois ou três admiráveis conjuntos de azulejos onde está representado o HRTS.

Embora a maqueta do HRTS seja uma reconstituição, feita na década de 1950, o que salta à vista é a sua arquitectura - a arquitectura monumental renascentista, reflectindo a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.

Assistia-se então, no início do século XVI, a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel decisivo nesse movimento.

Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade da sua administração durante mais de 400 anos. até ao período de 1974/76 (no caso do Hospital de São José e seus anexos, até 1836). Estima-se que o número de pequenos hospitais e outros estabelecimentos do género chegasse às cinco centenas, totalizando cerca de 2500 camas.

A política de fusão e concentração dos hospitais, seguida por de D. João II e D. Manuel II, tem de ser entendida no contexto do longo e sinuoso processo de luta secular do poder régio e, depois, do Estado contra a Igreja. 

Essa luta - muitas vezes cínica e surda - acentuar-se-á com o Marquês de Pombal e culminará com a legislação liberal de Mouzinho da Silveira (1832) e Joaquim António de Aguiar (1834), completada depois com a da República (1910), tendo-se traduzido na secularização da maior parte do fabuloso património fundiário da Igreja (os chamados bens de mão-morta, que estavam fora do mercado imobiliário, não podendo ser alienados) e na drástica redução dos privilégios do clero.

É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc.,  em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei. 

O Hospital Real de Todos os Santos   é disso um exemplo paradigmático.

Como diz Correia (1984), no prefácio à primeira edição do respectivo regulamento (feita em 1946, por iniciativa de um laboratório farmacêutico, e reproduzida pelos Hospitais Civis de Lisboa, em 1984), "nunca em Portugal houvera hospital tamanho e, pela sua grandiosidade, ganhou fama de ser um dos maiores do mundo", ombreando com os outros grandes hospitais quatrocentistas e quinhentistas da Cristandade, tanto em Itália (Florença, Siena, Roma) como em Espanha (Santiago de Compostela, Toledo).

Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a economia mercantil, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).

Por outro lado, e como já acima referimos, a arquitectura do hospital renascentista exprime a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade. Uma e outra são possíveis, no nosso caso, devido à enorme acumulação de riquezas, resultantes do comércio ultramarino, e nomeadamente da exploração comercial do ouro da Mina e da pimenta da Índia.

O HRTS estava localizado na cerca do Mosteiro de S. Domingos, onde é hoje a Praça da Figueira. A sua construção foi iniciada em 1492, a 15 de maio, com o lançamento da primeira pedra, juntamente com algumas moedas de ouro, na presença do próprio D. João II,  depois da indispensável (mas morosa) autorização papal (Bula de Sisto IV, 1479, e Breve de Inocêncio VIII, 1942) para reunir o património dos diversos estabelecimentos (mais de quatros dezenas!), existentes na cidade de Lisboa, "cujos proventos não excedessem trezentos florins de ouro" (Goodolphim, 1908, cit. por Basto, 1934. 46).

O hospital só será concluído doze anos depois, em 1504, sendo por isso anterior ao de Santiago de Compostela (1499-1515), mandado fundar pelos Reis Católicos Isabel e Fernando. Na construção do edifício, ou pelo menos da igreja e da sua fachada manuelina,  terá havido a intervenção do  "mestre de obras do reino", Diogo Boitaca (c. 1460-1527), arquiteto de origem francesa, consideradio uma das referências do estilo manuelino.

De 1504 data também o seu notável regulamento (Regimento), outorgado por D. Manuel I (1469-1521), como testamenteiro de seu primo, cunhado e antecessor, D. João II.

É, sem dúvida, um documento de grande interesse histórico, na medida em que nos permite:

(i) ter hoje uma visão global da organização e do funcionamento do hospital renascentista;

(ii) bem como reconstituir a representação dos diferentes cargos ou funções (ou papéis socioprofissionais, como diríamos hoje), do director (provedor) ao médico (físico), ou, pelo menos, dos papéis prescritos pelo outorgante;

(iii) é, sobretudo, é a expressão mais acabada da vontade do poder político de intervir no domínio da assistência, pondo em causa o papel até então hegemónico da Igreja e respondendo, ao mesmo tempo, às necessidades de uma população em que, à subnutrição e à peste endémica, se vêm pôr novos problemas de saúde, novas doenças (até então desconhecidas)  como resultado da concentração urbana e da mobilidade espacial, decorrentes da expansão marítima.

Acrescente-se que D. Manuel I seguiu a mesma política diplomática do seu antecessor, tendo nomeadamente conseguido por bula de Alexandre VI, de Outubro de 1501, a faculdade de incorporar as rendas dos pequenos hospitais de cada terra numa único hospital. O mesmo papa concedera-lhe semelhante autorização (Breve,  de 23 de Agosto de 1499) para proceder à concentração dos hospitais de Coimbra, Évora e Santarém (Basto, 1934. 168).

Voltando ao citado Regimento, deverá dizer-se que ele não é inteiramente original, tendo sido inspirado, pelo menos, parcialmente, nos estatutos dos hospitais italianos (Santa Maria Nova, de Florença, e Santa Maria, de Siena).

Outros documentos notáveis dessa época chegariam, de resto, até aos nossos dias, como por exemplo o Compromisso do Hospital Termal das Caldas da Rainha (1512), considerado o mais antigo estabelecimento do género em todo o mundo. Num caso e noutro, dois homens da Igreja terão participado na sua elaboração: o cónego Estêvão Martins e o Cardeal Alpedrinha, respetivamente. O cónego será, de resto, o primeiro provedor do HRTS, por nomeação régia (Correia, 1984. 10-11).





Maqueta do Hospital Real de Todos os Santos. Maqueta dos anos 50. Fonte: Museu de Lsboa,com a devida vénia. Fotograma de vídeo. Ver aqui um documentário de 5' 18'' sobre o Hospital, da autoria do Museu de Lisboa

Deve-se a Irisalva Moita (Benguela, 1924-Lisboa, 2009), arqueóloga,  olissipógrafa, criadora do Museu da Cidade de Lisboa, no Palácio Pimenta,a primeira intervenção arqueológica de uma vasta área das ruínas do HRST, aquando da construção do metro, em 1960/61. Quatro décadas depois, em 1999/2001, na sequência de um projeto de reabilitação e requalificação urbana da Praça da Figueira, foi feita uma intervenção de fundo, uma das maiores (e exemplares) levadas a cabo em Lisboa.


2. "Couza tam grande, 
e de tão grande maneo"


Passava-se, entretanto (e isso é que é um facto assinalável para a época) dos estabelecimentos de meia dúzia de camas no máximo, e sem qualquer estrutura organizativa (simples hospícios, portanto), para os grandes hospitais de 100 e mais camas, de arquitectura monumental (o esprital solemne), com uma diferenciação hierárquica e funcional já perfeitamente definida, com um órgão de gestão que era nomeado pela (e responsável perante a) tutela régia, distinto da direção técnica, e dotado, além disso, de mecanismos de controlo patrimonial, contabilístico e financeiro.

Segundo o Capítulo III do Regimento do HRTS,  a área de influência do estabelecimento cobria:

  •  a população residente ou em trânsito na cidade de Lisboa e região limítrofe num raio de dez léguas - na época, cerca de 45 km. no máximo -, desde que fosse "pobre (...) q manifestamente (fosse) sabido, e conhecido q não (tivesse) remedio para se curar, nem remediar em outra parte", 
  • além de todos os doentes do mar, "posto q de mais longe adoecessem, q das ditas dez legoas".


Ficavam excluídos, em qualquer dos casos, todos os indivíduos portadores de doenças crónicas ou enfermidades incuráveis, incluindo as vítimas de epidemias para os quais será criado em 1520 a Casa da Saúde, no vale de Alcântara, ou seja, fora de portas, como convinha numa época dominada pelo ter
ror da peste.

Ainda de acordo com as indicações do próprio regimento bem como de diversos documentos literários e iconográficos do período que vai da sua construção ao terramoto de 1755, o HRTS era uma das mais importantes obras do equipamento urbano da cidade; tinha dois pisos, situando-se a sua área coberta no que é hoje a Praça da Figueira (vd. iamgem da maqueta acima :

  • a frontaria estava voltada para o Rossio e deveria medir cerca de 100 metros;
  • o corpo do edifício estendia-se para norte, com uma arcaria contrafortada que encostava ao Convento de S. Domingos;
  • a meio, sobrelevada e com uma escadaria de acesso, erigia-se a igreja, de fachada manuelina, com uma imponente escadaria de 21 degraus;
  • a planta do edifício era em cruz, com a torre da igreja ao centro;
  • no piso superior, três grandes enfermarias (a de S. Vicente, a de Santa Clara e a de S. Cosme) constituíam os braços da cruz, dispostas em volta do altar-mor;
  • esta estrutura cruciforme permitia aos doentes internados acompanhar diariamente os ofícios religiosos (e nomeadamente as duas missas, uma das quais celebrada por alma do fundador);
  • no piso térreo, situavam-se os alojamentos do pessoal residente (cerca de meia centena de funcionários, incluindo o provedor);
  • no piso inferior, ficaria ainda muito provavelmente a albergaria (ou casa dos pedintes andantes, com cerca de quarenta camas para ambos o sexos) e os demais anexos do hospital, incluindo a casa dos expostos, o refeitório, a botica, a casa da fazenda (ou secretaria), a cozinha e o forno;
  • no seu vasto logradouro, encontravam-se as demais instalações e equipamentos necessários ao funcionamento do hospital: os lavadouros, as latrinas, as atafonas (ou moinhos), o pombal, a capoeira, a arrecadação da lenha e a horta;
  • o hospital tinha ainda claustros com poços de água potável e cemitério privativo.

À semelhança do hospital árabe e bizantino, os doentes eram repartidos por secções em função da sexo e até da patologia: das três grandes enfermarias, uma era destinada a mulheres e as outras duas a homens, sendo uma de medicina e a outra de cirurgia.

O regulamento faz ainda referência à casa das boubas, uma casa apartada onde eram tratados os doentes com morbo gálico (isto é, gaulês ou francês), designação que englobava então todas as doenças sexualmente transmissíveis (e nomeadamente, a sífilis) mas possivelmente também outras do foro dermatológico.

Estas unidades de enfermagem para internamento de doentes do morbo gálico seriam das mais antigas que se conhece, o que é tanto mais interessante quanto, na época, "o mal de boubas era tido como doença vergonhosa e inconfessável, e os seus portadores reputados merecedores do castigo de Deus e não da piedade dos homens" (Basto, 1936. 343).

Segundo diversas fontes dos séculos XVI e seguintes, compulsadas e citadas por Lemos (1991), o número de efetivos do pessoal do HRTS foi aumentando, tal como o número de doentes a que ele recorriam, a começar pelos doentes portadores de sífilis (morbo gálico). Assim, ao tempo do andaluz Ruy Diaz d'Ysla, e ainda no reinado de D. Manuel I, havia já dois físicos e dois cirurgiões além de um "mestre que curava o morbo serpentino" e que era o próprio Ruy Diaz (cit. por Lemos, 1991, Vol. I. 133).

Haveria ainda uma casa de doidos (segundo documentos posteriores ao regulamento de 1504), além de um banco de urgência e de instalações privativas para pessoas nobres

Competia ainda ao hospital receber todas as crianças abandonadas da cidade (expostos), que depois eram entregues, até aos três anos, ao cuidado de amas externas. No reinado de D. João III o número anual de expostos já andaria pela centena e meia.

Entre doentes, crianças, peregrinos e mendigos, calcula-se que o hospital teria inicialmente capacidade para alojar mais de 250 pessoas (incluindo o pessoal residente, em número superior a meia centena) . Fala-se mesmo em 400 camas. O movimento anual de doentes rondaria então entre os 2500 e os 3000, sendo já porém insuficiente a sua capacidade hoteleira nos finais do Séc. XVI (Correia, 1984; Neto, 1981). À época do terramoto, o hospitak chegaria a fornece mil refeições diárias.

Apesar dos sucessivos incêndios que o destruíram total ou parcialmente (em 1601, 1750 e 1755), o HRTS foi-se alargando em termos de instalações e equipamentos, sendo referenciada, por volta de meados do Séc. XVIII, a existência de doze enfermarias, cada uma das quais com o nome do seu santo patrono, além da "casa das feridas e convalescentes, casa da anatomia, enfermaria de mulheres feridas e doidas, casa de doidos, casa dos mortos, casa dos banhos ou das tinas" bem como das casas dos cirurgiões do banco (Correia, 1948. 12). Pelo número de enfermarias existentes, calcula-se que, por volta de 1750, o hospital tivesse já mais de meio milhar de camas. Será completamente desativado em 1775, vinte anos depois do terramoto.

Embora no regimento original não se faça nenhuma referência a qualquer sala de operações, bloco operatório ou equivalente, sabe-se que o HRTS foi a primeira 'grande' escola de anatomia e cirurgia da qual se destacaria, entre outros, o nome de Manuel Constâncio (1725-1817).

A administração deste hospital foi da responsabilidade régia até 1530 (ou até 1557, segundo outras fontes). Os provedores eram recrutados entre gente da casa real ou da confiança, pessoal e política, do rei. De 1530 (ou apenas de 1557) a 1564 a sua gestão esteve entregue aos padres da Congregação de S. João Evangelista (ou Lóios), para, finalmente, por carta régia de 1564, passar para as mãos da Misericórdia de Lisboa.

Durante dois séculos, até destruição do HRTS pelo terceiro (e último incêndio, na sequência do terramoto de 1755), a figura do provedor passa a ser designada por enfermeiro-mor (provavelmente uma corruptela do termo irmão-maior). Essa designação chegará até 1974.

No Quadro 1, em anexo, faz-se uma tentativa de reconstituição do seu hipotético quadro do pessoal inicial, de acordo com as disposições do Capº I do regimento ("Titolo de quantos oficiaes ha no esptall e seus mantymentos que ham daver") (Graça, 1994).

"A superioridade e cura das couzas da Igreja" são explicitamente apresentadas pelo outorgante como razões primordiais, pelo menos, no plano político e ideológico,  para dar toda a ênfase, logo no Capº II, ao serviço religioso, cometido a dois capelães residentes e seus "dous moços" (Regimento do HRTS, 1984).

Não se estranhará, por isso, que logo à cabeça do regulamento sejam minuciosamente discriminadas as funções de capelania, a primeira das quais é a de "menistrar a todos os pobres enfermos sãos, e doentes, (...) todos os sacramentos (...) e todas e quaesquer outras couzas necessárias à saúde das almas" (p. 25).

Cuidar das almas e, acessoriamente, cuidar dos corpos dos doentes pobres, é (e continuará) a ser a missão do hospital quinhentista. Aliás, no Capº III (Título do proveador, do esprital, e o regimento e maneira em q hade servir o dito seu officio), é claramente patente a motivação intrinsecamente religiosa (e, naturalmente, política) do poder régio ao fundar o hospital e criar a figura do percursor do hodierno director e/ou  presidente do conselho de administração dos nossos hospitais.

A fundação deste hospital é, sobretudo, uma pia causa. No intróito do regimento, o seu fundador, como príncipe cristão, é descrito como tendo sido "movido com boa intenção, por q os Pobres, e pessoas Miseraveis tivessem algum mais certo Recolhimento, e Remedio de suas necessidades em esta cidade do q nella para elles até então havia".

Daí o pedido de autorização ao papa (quando D. João ainda era príncipe) para que na cidade de Lisboa, "a Principal destes Regnos, e de grande Povo", fosse edificado um "Esprital solemne" que, além do mais, agregaria o património dos pequenos estabelecimentos existentes (cerca de quatro dezenas de hospitais, grande parte deles ligados às confrarias de ofícios e cada um com o seu santo padroeiro). E daí, também, a feliz e sábia designação que foi encontrada, a contento de todos: Hospital Real de Todos os Santos.

Nessa época, Lisboa passa dos 60 mil habitantes (em 1422) para os 85 mil em (1528), atingindo os 100 mil em 1551, dos quais 7 mil seriam estrangeiros residentes ou de passagem (Ferreira, 1981. 464).

Dando resposta às crescentes necessidades de saúde da população, o HRTS conheceu um crescimento exponencial ao longo dos seus 270 anos de existência, não obstante os vários grandes incêndios (que foram seguidos de reconstruções e ampliações): o número de enfermarias / serviços passou de 5 (em 1505), 9 (c. 1550), 19 (c. 1620), 22 (1715), 21 (1755-1758) e 22 (1759-1775) (Pacheco, 2008). 

Aquando do grande incêndio de 1750, no HRTS estariam internados 723 doentes, muito mais do que a capacidade instalada. Vinte e tal anos depois, em outubro de  1774, alguns meses antes da transferència de doentes e serviços para o "novo" Hospital Real de São José, o número de doentes internados em 17 enfermarias seria de  843  (um média de c. de 50 doentes por enfermaria, o que nos parece excessivo) (Alberto et al, 2021).


3. O movimento de concentração hospitalar


Um outro grande hospital da época era o hospital termal das Caldas da Rainha, como já atrás referimos, construído por iniciativa e a expensas da Rainha D. Leonor, mulher de Dom João II e irmã de Dom Manuel I, com início das obras em 1485 e conclusão por volta de 1497. 

Tinha cerca de 120 camas (80 para doentes de ambos os sexos; 20 para o pessoal religioso e pessoas honradas; e mais 20 para peregrinos e pessoal de apoio), além de médico privativo, consulta médica obrigatório, farmácia (botica) e estatuto próprio (Correia, 1981).

De entre os oficiais que deviam reger e governar o novo estabelecimento assistencial, doado pela rainha D. Leonor, destaque-se a figura do almoxarife. Notável é, de facto,  o painel de 13 por 12 azulejos (incompleto, pintado a azul e branco, e datado de 1667-68), que ainda hoje pode ser observado na copa do edifício, e que constitui um exemplar único no nosso país e um documento interessante para a historiografia e museologia hospitalares: "a tábua do almoxarife";

Trata-se de um curioso algoritmo então usado para calcular a quantidade de carne a fornecer aos enfermos, conforme o seu número: "Taboa do (ca)rneiro q se da aos enf(erm)os ao iantar tres quartas a ca hum de resam".

Entretanto, o movimento de concentração dos pequenos hospitais e estabelecimentos similares estende-se a outras cidades e vilas (Évora, Santarém, Estremoz, Beja, Braga, etc.) nas primeiras décadas do Séc. XVI, e inclusive aos territórios de além-mar. O Hospital Real de Goa, por exemplo, irá desempenhar um importante papel na assistência aos milhares de portugueses, soldados, aventureiros, mercadores, missionários e funcionários régios, que aportam à Índia e demais terras do Oriente.

A sua fundação deve-se à iniciativa de Afonso de Albuquerque em 1510, depois da conquista de Malaca (Ferreira, 1990. 121). Em 1520, o seu secretário, António da Fonseca Ormuz, publica o regimento do hospital. A designação de Hospital Real de Goa (ou d’El-Rey) só aparecerá, contudo, mais tarde, em 1542, ano em que passa a ser administrado pela Misericórdia que, além disso, mantinha em Goa, o Hospital dos Pobres.

Em 1565, o orçamento deste hospital era de 1300$000 réis. A sua administração terá sido disputada pela Misericórdia e pela Companhia de Jesus, a avaliar por dois documentos de 1584 e 1591, citados por Ferreira (1990.122). De qualquer modo, nos finais do Séc. XVI, as dificuldades que enfrentava eram muitos, sendo nomeadamente manifesta a sua incapacidade para dar resposta ao número crescente de doentes e a sua insuficiência de meios financeiros. 

Nessa época o vencimento anual do físico era de 57$600 réis, o do cirurgião 43$200 e o da cristaleira 12$000, traduzindo uma clara diferenciação socioprofissional dos praticantes da arte médica.


Quadro 1 - Quadro do pessoal do HRTS, respectivo estatuto remuneratório e perfil psicoprofissional

CategoriaUnidadeTotalRemune-ração em géneroPerfil
Pessoal dirigente     
Provedor130$00030$000A"Pessoa honrada e bom saber, e zelloso de todo o bem caridozo"
Almoxarife112$00012$000A"Homem de bem, e de fiança, e bemcriado"
Escrivão112$00012$000A 
Protonotário1??  
Hospitaleiro112$00012$000A+B"Zelloso de todo bem, caridozo, e de boa tenção, e maneo, e de muita fiança"
Hospitaleira1??A+B"Muito diligente, e destra no serviço"
Vedor18$0008$000A+B"Pessoa de bem, e caridoza, e de bom zello e saber"

Sub-total

7 74$000  
Pessoal de capelania     
1º Capelão16$3006$300A+B 
2º Capelão16$0006$000A+B 
Ajudante22$0004$000A+B 

Sub-total

4 16$300  
Pessoal médico e paramédico     
Físico118$00018$000A 
Cirurgião interno112$00012$000A 
Cirurgião externo16$0006$000  
Ajudante  de cirurgião22$0004$000A+B 
Boticário

1

15$00015$000A"Homem q saiba muy bem o officio, e tenha a pratica delle, muy prestes, e despachado"
Ajudante de boticário33$0009$000A+B 
Enfermeiro- mor   (ou chefe)46$00024$000A+B"Homem caridozo, e de boa condição, e sem escandalo"
Enfermeiro pequeno (ou auxiliar)72$00014$000A+B 
Enfermeira-mor (ou chefe)13$0003$000A+B 
Enfermeira  auxiliar12$0002$000A+B 
Barbeiro- sangrador13$0003$000  
Cristaleira13$0003$000A+B 

Total

25 113$000  
Pessoal operário e auxiliar     
Despenseiro16$0006$000A+B 
Cozinheiro16$0006$000A+B 
Ajudante de cozinheiro33$0009$000A+B 
Porteiro14$0004$000A+B 
Costureira14$0004$000A+B 
Lavadeira14$0004$000A+B 
Ajudante de lavadeira1(a)(a)A+B+C 
Atafoneiro1(b)(b)  
Amassadeira1(b)(b)  
Forneira1(b)(b)  
Outros (eventuais)43$00012$000A+B 

Sub-total

16 45$000  
Total geral52 248$300  

Observações: (a) Escravas; (b) Salário ou soldada; A=Alojamento; B=Alimentação; C=Vestuário


(Continua)

© Luís Graça (1994). Última revisão: 10/8/2024

Observ.: Importante,  para a revisão que estou a fazer,  o trabalho recente de Alberto, E. M., Banha da Silva, R., & Teixeira, A. (2021). All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Misericórdia.
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Nota do editor:

Último posto da série > 14 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25638: Manuscrito(s) (Luís Graça) (251): Pequenas histórias da História com H grande (I): Thomaz de Mello Breyner (1866-1933): diário de um médico da corte na "Belle Époque" (1905/07), que de manhã via as meretrizes no Hospital do Desterro e à tarde a clientela rica no seu consultório privado da rua do Ouro

domingo, 11 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25832: (De) Caras (218): Maurício Saraiva, cofundador e instrutor dos Comandos do CTIG, cmdt do Gr Cmds Fantasmas - Parte I: O "capitão Manilha", por Virgínio Briote (ex-alf mil cav, CCAV 489, Cuntima; e ex-alf mil 'cmd', Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67)


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > 1964 > Alf mil Saraiva em Angola, em 1963, aquando da frequência  do curso de Cmds;



Emblema de braço do Grupo Fantasmas, que pertenceu ao alferes  mil 'comando ' Maurício Saraiva.  




Guiné > Bissau > Comandos  do CTIG > Gr Cmds "Os Fantasmas" > 1964 > O alf mil 'cmd' Maurício Saraiva (1939-2002) desfilando à frente dos seus homens, junto ao palácio do Governador.


Fotos (e  legendas): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. É um dos muitos, e belíssimos, textos do Virgínio Briote,  publicados no blogue, ao longo dos nossos 20 anos de existência. 

Virgínio Briote: (i) nosso coeditor jubilado; (ii) ex-alf mil cav,  CCAV 489 (Cuntima) e ex-9alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67); (iii)  frequentou a Academia Militar (1962/64);  (iv) autor do blogue, desativado (a partir de 2009), Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas (recuperado pelo Arquivo.pt em 25/9/2009).

O "capitão Manilha", como não é difícil de adivinhar, é o cap 'cmd' Maurício Saraiva (1939-2002) (*), contemporâneo do Rui Alexandrino Ferreira (**), ambos nascidos em Angola e colegas do Liceu Diogo Cão, em Sá da Bandeira [hoje cidade do Lubango, capital da província da Huíla].

O Maurício Saraiva, enquanto combatente, foi uma figura lendária mas não menos controversa. Faleceu com o posto de cor inf. Em 1970 foi agraciado com a Torre e Espada.  

Foi contemporâneo e camarada de armas, na Guiné, de alguns dos membros da Tabanca Grande: Mário Dias, João Parreira, Luís Rainha, António Pinto, José  Álvaro Carvalho,  Virgínio Briote, Júlio Costa Abreu, Marcelino da Mata, etc...

Aqui ficam alguns apontamentos para o retrato (sempre incompleto e parcial) de um grande combatente, visto por outros combatentes do seu tempo (Virgínio Briote, António Pinto, Amadu Djaló, Rui Alexandrino Ferreira, entre outros) (***). 

Nalguns dos seus textos memorialísticos, o Virgínio Briote (pseudónimo: Gil) usou nomes fictícios ou incompletos:

Manilha= Maurício Saraiva; 
Marcolino= Marcelino da Mata; 
Joáo Uva = João Parreira; 
Mirandela= Vasssalo Miranda;
Varela = Nuno Varela Rubim; 
Mamadu= Abdulai Djaló; 
Mássimo = Cássimo,  etc.

Sobre o percurso do Maurício Saraiva como 'comando' vd. os postes do Virgínio  Briote sobre o historial dos Comandos do CTIG (P25362 e 25366). (*****)

 


O Capitão Manilha, 

por Virgínio Briote 

(Excerto de um dos primeiros postes do blogue, da série; 
"Brá, SPM 0418", do Virgínio Briote) (****)


Grupos em sentido na parada. Porta fechada! A que horas estava marcada a instrução dos grupos? Às 21? E que horas têm? 21h02? Às 21h00, 1 ou 2 minutos depois são outras horas, ou não? Um minuto, meu capitão, desabafa um! Uns bardamerdas, é o que vocês são, os gajos fazem o que querem de vocês!

Não faço parte desta peça, meu capitão, o meu grupo estava pronto às 5 para as nove, protesta-lhe nos olhos outro! O capitão, a fisgá-lo de lado, ainda mamam da mamã, o que me calhou, porra! Já não me lembro de mamar, outra vez o outro.

Manilha pára, vira-se de frente, olha-o de baixo para cima, dispara, ouça lá seu alferesinho de merda, você acha que não sou capaz de o pôr daqui para fora ao murro e pontapé? Vamos, meu capitão, avança o tal, preparado para tudo.

Manilha tira a boina, passa a mão pelo cabelo, três a olharem para o lado, o outro à espera. Esta, suas meninas, esta, martela o capitão, com a mão virada para o tal, é a única, a única resposta que um comando pode dar! Todos à minha frente, 20 flexões para todos, grupos incluídos.

O capitão Manilha, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a medalha de valor militar em ouro, mais duas cruzes de guerra, tinha metido o chico , estava em Lisboa na Academia Militar. Aproveitara as férias, viera a Bissau dar-lhes instrução operacional, e saíra com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos na Guiné.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o alferes Justo dos Camaleões, os irmãos R. Dias, o Mirandela e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de lés a lés. Ficou famoso pela forma como encarava a guerra, como se fosse uma brincadeira de garotos. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram problemas.

Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobije, os Fantasmas detetaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.

No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.
 
(...) Claro que, fosse para onde fosse, o Manilha trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando o capitão Manilha entrou em Brá apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Varela, o sargento M. Dias, os furriéis Mirandela, Moita, Matos, Fabião, o João Uva, o cabo Marcolino, os soldados, Mássimo, Camará, Mamadú... Dos novos conhecia alguns, e aos outros tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria se lhes entregaria o crachá.

Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino  à baila. O Nino, estão a olhar para mim? O Nino, que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino , ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido, porra!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambi, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras grossas, faziam tanto barulho no camuflado que até sentiu medo que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente.

Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que…assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado não via nada, nem pirilampos, nada, só ouvia o barulho da água a bater-lhe. E agora, o que faço?

Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem? Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, a corta mato, sempre em frente, até á estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobios cada vez mais próximos, uma mão, o Mássimo, o Manilha atrás. Então e os outros? O Manilha, danado, a bufar, e os outros? Mássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Varela e o Vidraças, os dois sentados, costas com costas. Nabos, a dormir na forma, ah?

No outro sábado o Manilha encontrou-os todos sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é? Um a dizer vou até Bissau espairecer, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o Duque, o outro, sei lá? Ele arranjava um melhor! Que se preparassem. Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar.

Foram para leste, Nova Lamego, Canquelifá. Chegaram o Sol a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados. Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com a lona corrida. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Manilha, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca.

O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passa, o Manilha a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva. Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Manilha desalmado a gritar, como gostava de começar o dia! Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados, a pisgarem-se. Depois, um deles passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater na árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar ! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?

Nunca souberam donde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o Manilha, finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o Manilha. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Manilha lá à frente, na esgalha.

Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar! É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana!

Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora! Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem! Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado! Fumas no fim do fogo! O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas deles em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o Manilha a provocá-los.

Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, pouca coisa para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra! 20 flexões aí já, o Manilha oportuno como sempre! (...)

Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar! (...)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos e itálicos / Título: LG]
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Notas do editor:





(*****) Vd. postes de;

9 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25362: Trabalho sobre a formação dos Comandos na Guiné, publicado na Revista da Associação de Comandos, MAMA SUME - Parte I (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)

Guiné 61/74 - P25831: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (30): "Impunidade e justiça"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Impunidade e justiça

Ele não morreu nem matou ninguém. Do mal, o menos. Atrás de mim, ele esbracejava como um possesso. Mesmo sem nada ouvir, não tenho dificuldade em traduzir as palavras que esses gestos significavam:
- Anda para a frente, lesma, mexe-te filho da puta, ó velho do caralho!

O carro vinha mesmo em cima do meu, ameaçando, já não digo abalroar-me, mas tocar-me. Seguia pela marginal do Douro, do Freixo a Entre-os-Rios, estrada com muitas curvas e quase sempre com traço contínuo. Sessenta, setenta era a velocidade do meu carro, velocidade legal e perfeitamente adequada ao trajeto.

Acima desse limite, tornava-se não só ilegal como perigosa. O gajo queria passar sem mal nem morte e só não o fazia, mesmo nas curvas e no risco contínuo, porque a fila de carros em sentido contrário tornava a manobra impossível. Então, o bode expiatório do seu desespero era eu. Atirava-me com gestos obscenos e gritos que eu não ouvia perfeitamente condizentes com o fácies de atrasado mental que eu conseguia enxergar pelo retrovisor.

Da minha parte, em nada alterei a minha postura e a minha marcha. Até que a estrada se desfez, por momentos, das curvas, mantendo, no entanto, o risco contínuo. Vi logo que o animal aproveitaria aquele momento, a despeito de um carro que surgira de repente ao fim da reta. E como já conheço estas diárias aberrações mentais que infestam as nossas estradas de Norte a Sul, vi logo que ele ia esboçar o gesto de travagem brusca à minha frente. Claro que tomei as devidas precauções.

Ele não morreu nem matou ninguém, mas uns quilómetros à frente, ali para os lados de Gramido, afocinhou na valeta encolhendo a frente do carro até meio capot. Reconheci a pobre viatura e reconheci o gajo a olhar com ar de lorpa para o carro vermelho. Vi que não havia vítimas. Apesar de o ter observado somente através do retrovisor e de ele me ter parecido um néscio e um atrasado mental, a sua figura, fora do carro, era a de um gajo vulgar e normal. Para tristeza minha.

Como são os sentimentos humanos! Como pude eu sentir tão grande satisfação ao vê-lo estampado! Penso que esta minha pequena perversão não existiria se houvesse vítimas, mesmo que a única vítima fosse a própria alimária. Mas quando vi que era só chapa, soltou-se-me uma destas espontâneas e fundas gargalhadas que não sabemos de onde vêm, mas vêm certamente do eterno conflito entre a impunidade e a justiça, quando esta sai vencedora.

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Nota do editor

Último post da série de 4 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25807: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (29): "Um bramido de raiva"

Guiné 61/74 - P25830: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VI: dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, e carne e ovos de tartaruga



Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT. Foi a maior ou uma das maiores operações realizadas no TO da Guiné, durante toda a guerra (1963/74). 

Segundo o Mário Dias, que foi um dos comandos do grupo do alferes 'cmd' Saraiva, as baixas de um lado e doutro teriam sido  as seguinte: das NT, 8 Mortos, 15 feridos; do PAIGC: 76,  mortos (confirmados), 29 feridos, 9 prisioneiros... 

Segundo outras fontes (CECA, 2014), as NT terão sofrido  9 mortos, 47 feridos, e 193 evacuados por doença....Por sua vez, o lN teve 76 mortos,  15 feridos  e 9 evacuados por doença  ("Obs: O número de mortos e feridos do ln poderão ter sido em maior número devido ao bombardeamento da Artilharia e da Força Aérea."

Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, 2014), pág. 216/217.
 
Na batalha do Como, constou que tinha morrido  o comandante do PAIGC Pansau Na Isna (que daria nome a umas artérias de Bissau em 1975)... mas não é verdade. Morrerá mais tarde, dizem em Nhacra, em 1970. Teria nascido em 1938.


Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto à esquerda: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita


1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não podemos precisar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QCCTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964); 

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda, de que  o Zé Álvaro era diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).


Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho, estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à Bateria de Artilharia de Campanha (BAC). 

Este Pel At participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos agora na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964).


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (**)

Parte VI:  dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: 
farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, 
e carne e ovos de tartaruga



O comandante do destacamento de fuzileiros informou pela rádio que o seu pelotão de reconhecimento tinha tido uma emboscada 500m à direita da referência n.º 1.

Disse para o sargento :

− Carregar! 

E para os apontadores.

− Alça 5500 jardas. Direcção 110º!

A direção inicial foi de 100º para a referência nº 1, após leitura no mapa, e feita com uma bússola apontada pelo para o centro da culatra de cada um dos obuses. Cada apontador movia o respectivo obus com uma manivela da direcção após receber a ordem. A direção final foi introduzida pelo mesmo processo, como correção da primeira, sem haver agora a necessidade de recorrer ao mapa.

Por cada obus uma granada, já sem a proteção da espoleta, foi retirada do depósito e entregue ao municiador que rapidamente a introduziu no tubo através da culatra e até que a cinta de cobre que nela sobressaía no terço inferior do seu comprimento, impedisse o seu encaixe no tubo. 

Em seguida o operador do soquete (redondo com um tubo com uma aplicação de madeira na extremidade de diâmetro pouco menor ao da granada ) introduziu este na culatra com força deu uma pancada na base da granada para que a cinta de cobre se encaixasse nas estrias do tubo, imprimindo-lhe após o disparo, um movimento de rotação que lhe ia estabilizar o percurso e retirar pela força centrifuga, a proteção do mecanismo de rebentamento accionado pela espoleta ao embater no alvo. 

Depois o 2.º municiador ao qual tinha sido entregue um cartuxo de latão com dois sacos de explosivo introduziu-o na culatra e o operador fechou-a rapidamente e disse:

 
− Pronto!

Os apontadores disseram :

− Pontaria corrigida.

O sargento conferiu as pontarias e disse :

− Obuses prontos.

Dava então a ordem de fogo tendo o cuidado de deixar a boca bem aberta para que a deslocação do ar originada pelo rebentamento que se seguia ao disparo, efectuado pelos apontadores acionando as correspondentes alavancas, não lhe viesse a rebentar os ouvidos, como por descuido lhe veio a acontecer mais tarde numa outra operação. Todo o pessoal foi bem instruído para tal e procedia da mesma forma.

Toda esta operação era rápida de forma a que as tropas apoiadas pudessem contar com granadas de treze quilos de grande poder explosivo e destrutivo, próximo dos locais indicados pelo rádio, em cerca de 2 ou 3 minutos.

A 6 kms ouviram-se os rebentamentos dos projecteis e depois rajadas de tiros em várias direcções. O inimigo julgava que estava a ser atacado pela aviação, por ser a velocidade das granadas superior à do som e só se ouvirem os respectivos disparos após o seu rebentamento.

Durante os cerca de 2 meses em que o alf mil art José Álvaro Carvalho participou nesta operação, acabou por não prescindir das barracas em rama de palmeira entrelaçada, bem melhores do que as tendas de lona do exército, por deixarem passar a pouca brisa que havia lá fora e deste modo atenuarem o calor elevado que sempre se fazia sentir, mais ou menos sufocante.

Quando acordava de manhã e o mar não estava longe, dava dois ou três mergulhos e como deixara de fazer a barba e lavar os dentes era esta a sua higiene diária. Mas por vezes se a maré estava vazia, a pouca elevação do terreno e a elevada amplitude desta, afastavam o mar para um longínquo horizonte que se podia medir por 2 ou 3 quilómetros e a higiene diária ficava adiada por algumas horas. 

Nestes dias, o seu pessoal da cozinha percorria a areia molhada à procura de moluscos, geralmente grandes búzios, para variar a dieta das conservas com arroz de que já todos estavam fartos, e, nesses dias, havia rancho melhorado. Reparou que o cozinheiro cortava uma parte de cada búzio e a deitava fora, alegando que fazia mal.

Como já disse, de vez em quando, para conversar ou por ser diferente, ia almoçar à messe do batalhão, uma tenda grande onde almoçavam os oficiais.

Certo dia o almoço também foi búzios. Perguntou ao sargento da messe do batalhão se lhe tinham tirado a parte que fazia mal. Disse que não lhe parecia que os búzios tivessem alguma parte que fizesse mal. Nesse dia não almoçou. Nos dias seguintes assistiu a um corrupio constante de oficiais a caminho das latrinas.

Num outro dia, tendo chegado tarde no seguimento duma operação, o sargento disse-lhe:

− Sabe o que é hoje o almoço,  meu alferes ?

− Não faço ideia.

− Bife, omeleta e batatas fritas.

Pensou que tinham apanhado alguma vaca das que com os bombardeamentos vagueavam perdidas pela zona. No dia seguinte ao da chegada àquela praia, o seu pessoal ficou deslumbrado perante a quantidade de vacas e cabras que vagueavam perdidas no mato próximo, por força dos bombardeamentos constantes da marinha, as quais se deixavam apanhar com facilidade. Não resistiram á tentação de apanhar algumas e as encerrar num cercado feito com paus junto do acampamento. Avisou-os de que assim que o primeiro obus disparasse um tiro fugiriam todas aterrorizadas, sendo impossível ter mão nelas o que na realidade aconteceu.

Almoçou efectivamente bife, omeleta e batatas fritas. No fim do almoço o sargento disse-lhe:

− Sabe o que esteve a comer?

− Não.

− Carne de tartaruga e ovos de tartaruga.

Como lhe soube bem,  não o incomodou a noticia.

Quando as tartarugas vinham desovar â praia na maré cheia e se descuidavam com o correr da maré ficando longe da linha de água, iam deixando um rasto na areia molhada que se seguia com facilidade. Para o lado do mar apanhava-se a tartaruga, para o lado de terra o seus ovos. Isto aconteceu com frequência na época do desovar das tartarugas e era um bom petisco.

sábado, 10 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25829: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (29): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 (Francisco Baptista, ex-alf mil inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)

Capa do livro do Francisco Baptista,  "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor,  2019, 388 pp.)


Francisco Baptista 

(i) ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); 

(ii) natural de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Nordeste Transmontano;

(iii)  é autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor, 2019, 388 pp.);

(iv) integra a nossa Tabanca Grande desde 19/8/2013;

(v) tem cerca de 160 referências no nosso blogue;

(v) autor das séries: 

  • Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71); 
  • Brunhoso há 50 anos.

1.  Diversos camaradas já abordaram aqui, ao longo dos vinte anos do blogue, o tema da ida às sortes (ou, seja, a inspeção militar) (*)... Todos passámos por essa "experiência", no ano em que perfazíamos os 20 anos. Alguns ainda guardam memórias vivas  desse "rito de passagem" que, naquele tempo, para a nossa geração, representava verdadeiramente a entrada na vida adulta... 

Deixavam de nos chamar mancebos, rapazolas, gaiatos, canalha, meninos e moços, adolescentes, imberbes, etc., e  passávamos a ser adultos, homens de barba rija (... mesmo que a maioridade, legalmente, fosse aos 21 anos... até 1977!).

E tinha outras consequências, não apenas simbólicas, mas mais práticas,  para a grande maioria de todos nós o ser considerado "apto para todo o serviço militar", num tempo em que estava em vigor o SMO (Serviço Militar Obrigatório) e o país estava em guerra a milhares de quilómetros de casa, em Angola, Guiné e Moçambique... Dali a um ano, no máximo, éramos chamados para fazer a recruta, jurar bandeira, tirar uma especialidade, ser "mobilizado para o ultramar", formar uma unidade (batalhão) ou subunidade (companhia), fazer IAO, embarcar, desembarcar, pegar na G3 e ir para o mato, matar, morrer...

Há muita gente com muito talento para  a escrita no nosso blogue. Há textos que tèm direito a ser relidos como este, do Francisco Baptista, perdido na série "Estórias avulsas" (**). Esperemos que seja mais um incentivo para outros mandaram também, por escrito, para a publicação, agora no píncaro do verão, na série "Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços"... as suas lembrança desse dia da  "ida às sortes"! 



Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 

por Franscisco Baptista


Éramos homens, tínhamos força, confiança, tínhamos sonhos, queríamos conquistar as mulheres, queríamos conquistar o mundo, queríamos ser nós a governar a nossa vida.Éramos capazes de transportar sacos de trigo de 80 quilos ou mais, de ceifar três sucos de trigo como os mais velhos, de varejar as oliveiras e cavar tanto as oliveiras como as vinhas.

Sabíamos lavrar com vacas como com bestas, sabíamos semear o trigo e o centeio, plantar as batatas, as abóboras e as hortaliças.

Estávamos confiantes e preparados para entrar na sociedade dos adultos, era o nosso dia e toda a aldeia de Brunhoso iria ter orgulho nos seus filhos que tinham atingido a maioridade.

Tínhamos 20 anos e tinha chegado o dia das sortes.

Pela manhã fomos todos, a pé, até à vila, eram só cinco quilómetros e nós estávamos habituados a calcorrear os carreiros e caminhos do termo da aldeia. No dia anterior tínhamos ido todos, como a tradição mandava, tomar banho ao ribeiro da Lagariça.

Vestimos as nossas melhores roupas porque o dia era solene e de festa. Éramos quatro nascidos em 1947, o Amílcar, o José Luís, o Ernesto e o Chico (sou eu, pronuncia-se quase tchico por lá).

Outros quatro já tinham emigrado, eram eles, o António Borges e o Adelino para o Brasil, o José Maria e o Manuel da Glória para Angola.

Os meninos mortos de 1947, pois morriam tantos nesse tempo, não eram nomeados, nem chorados, pois eram anjos que tinham ido diretamente para o céu. Importa falar dos vivos e de todos, presentes ou ausentes, porque a tradição estabelecia uma irmandade entre todos os nascidos no mesmo ano.

Os da mesma idade eram os praças.
A razão deste tratamento teria a ver com o facto de todos assentarem praça no mesmo ano. O dia das sortes significava naquelas terras o dia da passagem à idade adulta, o dia da emancipação.

A inspeção não foi muito demorada. Numas instalações que a Câmara Municipal punha à disposição das Forças Armadas, despíamo-nos e íamos passando pelos médicos militares que avaliavam a nossa masculinidade e a nossa saúde.

Ficamos os quatro aptos para o serviço militar o que era sempre motivo de contentamento para o grupo, pois ninguém gostava de ser excluído. Era sinal de saúde e de que passávamos a ser cidadãos capazes de defender a nossa terra.

Ficar excluído era um anátema terrível que marcava um homem pela vida fora.

Ainda recordo tal como ele contava, a história da inspeção do "tio João Passarinho" que ouvi várias vezes, pois ele trabalhou muitos anos à jeira na casa do meu pai e já tinha trabalhado antes na casa dos meus avós paternos.

O tio João Passarinho era um homem valente e trabalhador, que sabia fazer todos os trabalhos do campo melhor do que ninguém. Desde cortar a erva nos lameiros à gadanha para feno, a tirar a cortiça dos sobreiros, ele sabia fazer tudo com destreza. Era todavia um homem franzino e baixo, com um metro e cinquenta de altura ou pouco mais. Viveu até aos oitenta ou mais anos e trabalhou sempre enquanto pôde.

Nunca teve férias nem reforma, como a maioria dos trabalhadores do campo desse tempo. Hoje se fosse vivo já teria mais do que 110 anos pois conheço um filho dele, o Joaquim, muito parecido com ele que apesar da idade avançada continua a trabalhar, já com 85 anos.

O tio João talvez nunca conformado por ter ficado isento do serviço militar, nos anos 20 ou 30 do século passado e porque gostava de efabular, contava que quando foi visto pelo médico militar no dia da inspeção ele lhe disse:

- Aqui está um homem bem constituído, alto, forte, espadaúdo. Temos um marinheiro!

Nunca eu o contrariei quando ele fazia estas afirmações e ouvi-as várias vezes. Tinha muito respeito por ele, desde menino fui criado na companhia assídua dele, era um homem respeitável, bondoso e trabalhador.

Sempre soube que dizia uma grande mentira, bastava olhar para ele, mas ele tinha direito a ter os seus defeitos e essa mentira, como outras em que era pródigo, não prejudicava ninguém.

Comprámos quatro foguetes e muitos rebuçados e regressámos à aldeia. Quando estávamos a um quilómetro, numa colina sobranceira, lançámos o primeiro foguete, os outros foram lançados já na aldeia. 

Demos a volta a todas as ruas a distribuir os rebuçados pelas raparigas, sendo naturalmente mais saudados pelas da nossa idade. Éramos amigos, tínhamos crescido perto uns dos outros, tínhamos entrado na escola ao mesmo tempo, tínhamos sobrevivido aos desejos próprios da adolescência com estoicismo e às restrições que uma moral rígida imposta, através da mãe, do pai, do padre, da professora e do falar do povo nos era imposta.

Por elas, vá lá e pelas outras, tínhamo-nos batido, em dias de festa ou de baile, com os rapazes duma terra vizinha. Muitas vezes os escorraçámos à pedrada, porque elas eram nossas e eles não se podiam atrever a conquistá-las ou a dançar com elas se algum dos nossos não gostasse. Toda a aldeia nos saudava com agrado, éramos os heróis do ano.

Fomos todos almoçar a casa dos meus pais, pois a minha santa mãe quis convidar-nos e fez-nos um almoço melhorado, um almoço de dias de festa.

Há dois anos o José Luís falou-me nesse almoço que eu já não recordava. Dos quatro que fomos à inspeção, o Amílcar e o Ernesto foram mobilizados para Angola, eu pra Guiné, o José Luís como foi sempre um bocado despistado, deve ter perdido o barco que o levaria para algum lado e fez a tropa por cá.

Quando acabou a tropa eu emigrei para o Porto os outros três para França. Dos outros, o António Borges, que nunca mais vi desde a adolescência continua no Brasil, o Adelino continua por lá também tendo-o visto nas duas vezes que ele visitou a aldeia. O José Maria e o Manuel da Glória regressaram de Angola com a descolonização, tendo o primeiro infelizmente morrido o ano passado de doença em Lisboa onde se tinha estabelecido com um negócio de padaria-confeitaria.

Ao Manuel da Glória nunca mais o voltei a ver, disseram-me que morará na Beira Alta ou Beira Baixa.

As "raparigas" da nossa idade, que eram dez, somente uma mora na aldeia depois de ter vivido cerca de 30 anos em França.

Só uma delas foi além da quarta classe tal como eu. Pertencia a uma família numerosa, com poucos recursos, mas era uma pessoa muito inteligente e, sendo sobrinha bastarda da professora, que pertencia a uma das três casas grandes da terra, terá sido provavelmente ela que a encaminhou para um convento de freiras. Na maioridade deixou o convento, constituiu família e passou a dar aulas no ensino secundário.

Desloco-me com alguma frequência à aldeia para relaxar no contacto com a natureza e sentir o ar mais puro, quente ou frio, conforme a estação, mas sempre agradável. No inverno chego a sentir saudades do ar frio e seco da minha terra. Da varanda da casa, agora quase sempre vazia, avista-se grande parte do casario da aldeia bem como pinheiros, sobreiros e alguns freixos que fazem parte da área agrícola e florestal da terra, e ao longe a paisagem típica dos montes e vales de Trás-Os-Montes que se estende por muitos quilómetros.

Ouço o silêncio duma terra que foi morrendo, que eu por vezes procuro preencher com memórias de há quarenta ou cinquenta anos, e então ouço o barulho próprio de uma casa onde viviam nove pessoas, o palrar das vizinhas, os gritos das brincadeiras dos garotos, o chiar dos carros de bois, os sons dos diferentes animais domésticos e o pregão da minha vizinha, a tia Clementina, a anunciar a sardinha.

Um caudal de memórias como o do Rio Sabor na primavera, que corre num dos limites da área agrícola da freguesia. Recordo estes rapazes e raparigas, conterrâneos da minha idade, e as vidas duras e difíceis que tiveram na aldeia e depois nos caminhos da diáspora.

Dizer que seriam pobres seria uma ofensa para eles, pois por lá os pobres eram os miseráveis que tal como os ciganos andavam a pedir de porta em porta. Os pais deles teriam uma pequena horta, algum campo para semear trigo e talvez algumas oliveiras. O sustento para a família vinha sobretudo das jeiras diárias, em tempo de colheitas para os lavradores. Sei que muitas vezes só comiam pão, batatas e caldo, mas nunca os ouvi queixar-se a mim que pertencia a uma família que sem ser rica era mais abastada.

Mas falar sobre esse mundo antigo e quase feudal é um assunto que dá pano para mangas. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Notas do editor LG:


(*) Excerto de 4 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)


Guiné 61/74 - P25828: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (28): Inspeção militar: "Ir às sortes", Sardoal, julho de 1972 (Luís Manuel Gonçalves, 1952-2019) (Excerto)


Sardoal é uma terra ribatejana que merece a nossa visita. 

Tinha c. 7,1 milhar de habitantes em 1950, hoje tem metade (3,5 mil). 

Perdeu seis filhos na guerra do ultramar / guerra colonial  (2 em cada um dos 3 teatros de operações).





"Ir às sortes", Sardoal, julho de 1972 

por Luís Manuel Gonçalves (1952-2019) 
(Excerto)



(...) A Inspecção Militar foi, durante muitos anos, um acontecimento de grande impacto social no concelho de Sardoal, e todos os anos mobilizava largas dezenas de mancebos para um ritual que marcava os mancebos para o futuro, porque cumprir o serviço militar não era uma rotina, especialmente em tempo de guerra, do que a Guerra Colonial é o exemplo mais recente.

Na forma como se descreve para 1839 ou com formas diferentes,  as “sortes” ou inspecções militares realizavam-se, anualmente, na Vila de Sardoal, nos Paços do Concelho (...)

A última inspecção militar que teve lugar no concelho de Sardoal e nos seus Paços do Concelho ocorreu em julho de 1972 e nela participaram os mancebos nascidos em 1952 (nos quais o autor destas linhas se incluía). 

Estava-se no auge da Guerra Colonial que se arrastava desde 1961 e que exigia contingentes militares cada vez mais numerosos. Só os jovens com graves deficiências físicas ou psíquicas ficavam “livres”, o que significava dizer dispensados de cumprir o serviço militar (em 1972, tanto quanto me lembro, foram apenas dois), podendo ficar “esperados”, voltando à inspecção no ano seguinte. 

Nos “apurados”, a maior parte era para todo o serviço, havendo, no entanto, os apurados para o serviço auxiliar, se portadores de uma deficiência física ligeira, de que a mais frequente eram os “pés chatos”. 

No final da inspecção, os inspeccionados iam à “Loja do Tramela”, também conhecida por “Casa do Pombo” comprar fitas, verdes e vermelhas para os “Apurados”, que prendiam à lapela com um alfinete, havendo de outras cores para as situações de “Livre” ou de “Esperado”, mas já não me recordo quais eram essas cores. 

Recordo-me de ninguém querer ficar “livre” porque, segundo se dizia, era um sinal de menor hombridade e virilidade.

Como já referi, o dia da Inspecção Militar era um dia importante na vida dos jovens rapazes e, de certa forma, marcava a passagem da adolescência para a idade adulta. Nas décadas de 40 e 50 do século XX era o dia em que muitos rapazes estreavam o primeiro fato completo, o “fato da inspecção”, só voltando a estrear outro no dia do casamento. (...)
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Observ.:

(*) "Luís Manuel Gonçalves (Entrevinhas, 1952 — Sardoal, 2019) interessou-se pela história do Sardoal enquanto professor do Externato Rainha Santa Isabel de Sardoal (1975-1980), tendo dedicado ao seu estudo uma parte significativa da sua vida.

Foi também associativista, com destaque para a direção do GETAS – Centro Cultural de Sardoal, entre 1986 e 1992. Foi ainda Vereador a Tempo Inteiro da Câmara Municipal de Sardoal entre janeiro de 1994 e outubro de 1999, seguindo como Vice-Presidente até 2009.#

Autor da página Sardoal com Memória.

Email de contacto do editor da página Memórias Sardoalenses: goncalves.m.tiago@gmail.com"


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25826: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (27): A inspeção militar: "Ir à sortes", Sabugal, 1968 (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1969/71)

Guiné 61/74 - P25827: Os nossos seres, saberes e lazeres (640): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (165): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Não deixa de ser intrigante que um significativo acervo de um artista que a historiografia de arte põe permanentemente em rodapé, só pode ser visitável se o turista souber antecipadamente que esse museu existe. Pedro Cruz estudou em Paris e parecia fadado para altos voos, o que verdadeiramente não aconteceu, teve mesmo que meter as mãos em trabalhos que não eram de ateliê, certamente para garantir sustento. Confesso que admiro o seu traço no desenho, e há qualquer coisa na observação do artista que nos permite quase falar com o retratado, é como se aquele traço dominante chegasse à essência de quem para ele posava. O acervo permite ver uma sucessão de nus, certamente parte fase obrigatória da iniciação em Belas Artes, há imensas paisagens e ramalhetes de flores mas tudo de um academismo mofo, e há aquele desenho que da contemplação nos faz passar ao diálogo com o invisível, a essência do retratado. E gosto a valer do edifício da Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande, quase tanto como da pintura ao gosto popular do altar-mor da igreja.

Um abraço do
Mário


Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (165):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior – 4


Mário Beja Santos

A vila de Pedrógão Grande tem um acervo digno de visita: a igreja matriz, já referida, o Centro de Interpretação Turística que aproveitou o que terá sido uma bela casa senhorial, a ponte filipina, classificada como monumento nacional e que foi, até 1964, a única ligação entre Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno com o distrito de Castelo Branco; há uma casa-museu do Comendador Nunes Corrêa, legou à terra dos seus ancestrais várias coleções de objetos com destaque para um belo quadro de João dos Reis; o folheto turístico não refere o Museu Pedro Cruz que é digno de visita, como também não há uma palavra para as valiosas coleções que podem sem contempladas em Vila Isaura, constituída por vários núcleos, como o do Povo Ratinho, o Maçónico e o inteiramente dedicado à I República; iremos agora falar deste Museu Pedro Cruz e da Misericórdia de Pedrógão Grande, fundada em 1470, possui um apreciável museu de arte sacra.

Para quem estuda as artes plásticas do século XX, Pedro Cruz (1888-1980) é um ilustre desconhecido. Foi aluno de Malhoa, partiu para Paris em 1906, aparece a sua imagem na fotobiografia de Amadeo Souza-Cardoso, foram seguramente conviventes em refeições e estúrdias; ainda foi a Londres, voltou para Portugal, visitou a Suíça e passou um ano em Angola e Moçambique; o Marechal Carmona condecorou-o como Oficial da Ordem de Santiago da Espada; nos anos 1960 e 1970 pinta muitas paisagens e naturezas mortas e uma grande parte dos seus trabalhos estão hoje em coleções privadas nos EUA, está representado em museus de Lisboa, Porto, Sevilha, Rio de Janeiro e Brighton. O seu museu em Pedrógão Grande foi inaugurado em 1982, acolhe 62 dos seus quadros e 63 desenhos, foi uma doação do seu filho, o Almirante Souto Cruz.

Talvez por não ser um nome considerado cimeiro das artes plásticas portuguesas, teve que se dedicar a outros trabalhos para ganhar a vida, a exposição mostra alguns desses labores, como os desenhos que ele fazia em lenços de cachiné. Confesso que me impressiona muito o seu traço em desenho, carvão e sanguínea, linhas bem delineadas, Pedro Cruz seria um excelente observador, os seus retratos deixam transparecer a personalidade do retratado; não poderei dizer o mesmo das suas paisagens e desenhos florais, demasiado formais, mantidos dentro de uma linha puramente académica; e os seus nus, homens e mulheres, permitem perceber a têmpera e o dom artístico que ele possuía. É o que aqui se procura mostrar numa seleção de imagens dos seus trabalhos que mais me impressionaram.
Busto de Pedro Cruz
Pedro Cruz – também fez parte da Fábrica Carpe, de tecidos e estampagens de Cachiné – lenços de cabeça – 1935

Este Museu Pedro Cruz, como já se referiu faz parte de um conjunto de três museus que estão à responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande. A menina que nos acompanha sugeriu a visita da igreja e do museu da Santa Casa, o tempo está péssimo, parece uma boa sugestão, pomo-nos a caminho. Numa das ruas do centro histórico encontro Nuno Soares, funcionário da biblioteca municipal, onde doei um acervo em memória de uma filha. Falamos disto e daquilo, é nisto que ele me recorda que a população do concelho se tem vindo a transfigurar, 44% dos recenseados são estrangeiros, uma boa parte dos serviços públicos teria colapsado sem gente oriunda do Brasil e das antigas colónias africanas. E vou pelo caminho a meditar como temos a desfaçatez de andar a injuriar os imigrantes que se prestam a pôr em funcionamento o que os aborígenes não querem fazer. E assim chegamos à Misericórdia.
Aprecio imenso esta fase transacional entre o maneirismo e o barroco ao gosto popular, veja-se este quadro do retábulo à direita, S. José a apreciar a situação, os louvores que vêm dos anjinhos do céu, como foi possível termos enquistado a ideia de que aquela noite em Belém permitia apresentar o menino nu já com o corpinho desenvolvido. As colunas são de capitel coríntio, estão aqui três cenas fundamentais da mensagem cristã: o anúncio da vinda do Messias, o nascimento e a morte que prepara a ressurreição.
Gostei tanto da imagem que agora lhe dou destaque, o pintor deve ter tido um esforço enorme em martelo a ovelhinha, pôs o burro e a vaca a diferentes níveis, e gosto muito daquele olhar cândido da mãe a olhar o seu Filho.
Banco do século XV para uso dos irmãos da Misericórdia
A antiguidade desta confraria fala mais alto, fizeram bem, em intervenções posteriores, não alterar a forma do edifício primitivo, ele embebe-se no corpo da igreja, guarda uma severidade rústica impressionante
Fachada da igreja da Misericórdia de Pedrógão Grande

Até agora, houvera uma chuva mansinha, desta vez o céu descarregou em força, toca de ir a penates, ler no aconchego até amesendar, e ter esperança de que a informação do IPMA para amanhã se confirme, haja bom tempo para ir ao Moinho das Freiras e muito mais, deu-me uma vontade enorme de voltar às Fragas de S. Simão, são só quatro dias de festejo, não vale a pena meter-me em cavalarias altas e sonhar com idas à Sertã e a Oleiros, há mais marés que marinheiros.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 3 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25805: Os nossos seres, saberes e lazeres (639): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (164): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 3 (Mário Beja Santos)