Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
A luz elétrica que havia só à noite era produzida por um gerador. Um dos mecânicos, o
Amadora, era o responsável pelo seu bom funcionamento e digamos que sempre se portou à
altura em termos de competência. O mesmo não se pode dizer quanto à permanência no seu
local de trabalho. É que quando havia flagelações ao quartel e era preciso parar o gerador, o
Amadora, por vezes, não estava lá. E então ouvia-se o pessoal a gritar por ele, chamando-lhe
filho desta e filho daquela e berrando “Ó Amadora apaga a merda da luz”.
A casa do gerador
Abrigo/dormitório do 2.º Pelotão
A macaca sarita nossa mascote
21 - O BEZERRO
No decorrer duma operação em que participaram os comandos, foram, por eles mortas
algumas vacas, tendo restado um bezerro, que a nossa malta trouxe para Nova Sintra. Foi
colocado a pastar junto ao arame farpado, para crescer e engordar. Já imaginávamos uma
refeição com bife e batata frita, mas o azar bateu-nos à porta. O bezerro desaparecera e só
foi descoberto uns dias depois, dentro de um poço seco, que havia junto da vedação. O
bezerro tinha morrido e lá se foram os bifes.
Autêntica pega de caras
A pocilga
O galinheiro
22 - OS CÃES E A RAIVA
Quando estou no gabinete de comando a apresentar os mapas do depósito de géneros e da
cantina, ao capitão Loureiro, para análise e eventual aprovação, entrou no gabinete o cabo
cripto e entregou uma mensagem ao capitão. Este leu-a, deu-ma a ler e como se tratava de
uma mensagem urgente, para tratamento imediato, disse-me: rapaz Silva vai buscar a tua
G3 e anda ter comigo.
A mensagem dizia para abater todos os cães existentes no aquartelamento, devido a um
surto de raiva. Retorqui dizendo: Mas meu capitão, vamos andar aos tiros dentro do quartel? Não será melhor avisar toda a gente? - Não pode ser - disse ele - porque senão eles vão
escondê-los dentro dos abrigos e debaixo das camas. Tiro neste e tiro naquele lá se foram
seis cães. Quem os atingiu foi o capitão com a sua Kalashnikov, tempos antes apreendida ao
PAIGC.
Duas das vítimas
Abrigo/dormitório novo
Abrigo/dormitório desmantelado
23 - AS BOTAS TROCADAS
No decorrer de uma operação e numa paragem para descanso, o furriel Lima, das Transmissões, queixou-se fortemente de dores nos pés e que quase não podia caminhar.
Alguém a seu lado, atento ao que ele dizia, reparou que o Lima tinha as botas calçadas ao
contrário. Ele tirou-as, lavou os pés, provavelmente na água da bolanha, o enfermeiro tratou
as bolhas, desinfetou e depois lá seguiram na direção do objetivo.
Regresso de uma operação
Regresso ao sair da bolanha
Dia de Páscoa 1969
24 - AS ABELHAS
Noutra operação no decorrer da mesma, houve a habitual paragem para descansar e comer a
ração de combate. O pessoal aproveitou para tirar a camisa do camuflado e refrescar-se um
pouco.
Alguém tocou nos ramos de uma árvore, tendo provocado a fuga dum enxame de abelhas,
que foram atacar vários troncos humanos esbranquiçados e descamisados. Os mais graves
foram o Alferes Maranhão e o Furriel enfermeiro Bettencourt, que foram evacuados para o
Hospital Militar, em Bissau, onde permaneceram vários dias internados.
25 - AS ROLAS
Havia dois dias no ano, creio que no mês de Junho, em que as rolas faziam a migração,
talvez do sul para norte. Nos ramos das árvores na periferia do quartel, poisavam às
centenas e então era um ver se te avias a deitá-las abaixo, mesmo com a G3. Boas arrozadas
se fizeram.
Crachá da Companhia de Transportes 2345. Angola, c. 1968. (Divisa: "omnia per omnia portans", levando tudo através de tudo)
Miniguião da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72)
Alguns dos crachás (badges, em inglês) de unidades e subunidades de cavalaria que passarm pelo TO da Guiné (Fonte: www.agbmorais.com, com a devida vénia)
1, Respondendo ao pedido do nosso leitor cor cav ref António Belo Morais (*):
(i) Paulo Cordeiro Salgado
Vivam, Todos.
Gostaria de ser prestável ao Sr. Coronel António Morais. Infelizmente, não tenho o crachá da nossa companhia (a CCAV 2721), eu que até fui o comandante interino! Pasme-se, pois.
Vou perguntar a dois ou três camaradas com quem converso frequentemente se têm este material identificador.
Pelo blog Luis Graça & Camaradas da Guiné, do qual sou leitor assíduo, soube da sua colecção. Não sei se procura outros crachás além do de cavalaria que menciona mas, se não o tiver e estiver interessado, terei todo o gosto em enviar-lhe um crachá da Companhia de Transportes 2345, pela qual tive uma curta passagem em 1968, em Angola.
Os melhores cumprimentos, João Rodrigues Lobo (ex-alferes miliciano)
(iv) José Carvalho
Parece-me provável que o Coronel Bela Morais tenha curiosidade em saber se algum camarada lhe disponibiliza o almejado crachá que procura e, não sendo eu quem o possa oferecer (pois não pertenci a essa unidade), transmito somente um grande abraço para um amigo de infância que não revejo há perto de 60 anos.
Tó Guilherme, sou o Zé Júlio, e convivemos muitos anos no Baleal. Tenho esporadicamente tido noticias tuas através do teu irmão J.M.
Na Tabanca Grande sou o José Carvalho e, no livro Baleal Memórias e Famílias do teu irmão (**), pertenço à família Faria Pimentel.
Guião da CCAV 2721, "Infernais avante", Olossato e Nhacra, 1970/72. Mobilizada pelo RC 4 - Santa Margarida, tece dois cmdts, Cap Cav Francisco Vasco Gonçalves Moura Borges, e Cap Cav Mário António Batista Tomé. Chegou ao CTIG em 11abr70 e regressou à metrópole em 28fev72.
Imagem: Cortesia de João Moreira
1. Através do Formulário de Contacto do Blogger recebemos a seguinte mensagem:
Data - 21 abril 2025 11:30
Bom dia, sou militar de cavalaria reformado, e estou a juntar os crachás das unidades que estiveram no ultramar, para mais tarde oferecer ao museu militar.
Por isso, gostaria de saber se é possível arranjar um exemplar do crachá da CCav 2721 que não tenho.
OIá, camarada. Obrigado pelo contacto. Da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72) temos mais de 110 referências no nosso blogue. E dois representantes, o ex-alf mil cav Paulo Salgado e o fur mil cav João Moreira.
Fica aqui o seu pedido. Só temos uma imagem do guião da CCAV 2721. Mas pode ser que acha que haja mais colecionadores, e nomeadamente de crachás (e emblemas de braço) de unidades e subunidades que serviram no CTIG. Se não vir inconveniente, aqui fica também o seu endereço de email para troca de informação.
Por outro lado, descobrimos na Net a sua página (em português e inglês): www.agbmorais.com Ficamos a saber:
(...) O meu nome é António Bela Morais, sou Coronel de Cavalaria do Exército Português. Eu servi o Exército desde Janeiro de 1970 até Junho de 1991, e posteriormente a Guarda Nacional Republicana até Fevereiro de 2001.
Sou coleccionador de Crachás e Emblemas de Braço das Unidades de Policia a Cavalo e das Forças Armadas Portuguesas.
Tenho para troca vários exemplares que constam da minha lista de repetidos. (...) Parabéns pela sua bela coleção. E oxalá possa ainda aumentá-la e enriquecê-la. Disponha do nosso blogue. Saudações, Luís Graça. __________________
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Março de 2024:
Queridos amigos,
É impressionante vermos que o Google e outros motores de busca guardam um número já bastante apreciável de trabalho sobre lançados e pombeiros. Num feliz acaso das minhas compras na Feira da Ladra encontrei estas atas de colóquio onde o professor universitário brasileiro Carlos Alberto Zerón apresentou um trabalho onde disseca analogias e dissemelhanças entre pombeiros e tangomaus, influentes intermediários no tráfico de escravos em África, parece-me um trabalho muitíssimo bem elaborado, embora tenha dificuldade em entender a omissão de referências aos estudos de António Carreira, Jean Boulègue, Silva Horta e Eduardo Costa Dias sobre estes luso-africanos de origem cabo-verdiana, mas também judeus e foragidos.
Um abraço do
Mário
Lançados ou tangomaus e pombeiros, no tráfico de escravos, o que os distingue
Mário Beja Santos
A investigação sobre os lançados ou tangomaus e pombeiros, imagens de importância primordial nas relações luso-africanas soma uma enorme quantidade de textos que qualquer um de nós pode encontrar em qualquer motor de busca, inclusivamente documentos universitários publicados em vários continentes. Mas pela primeira vez encontrei um trabalho que permite apreciar o que em lugares e espaços diferenciados de África distingue um lançado de um pombeiro. Trata-se do trabalho de um professor universitário brasileiro, Carlos Alberto Zerón, apresentado no II Colóquio Internacional sobre mediadores culturais, séculos XV a XVIII, que se realizou em Lagos, em outubro de 1997. Estranho o facto de Zerón pôr muita ênfase num trabalho publicado por Maria da Graça Garcia Nolasco da Silva, intitulado Subsídios para o estudo dos lançados da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, n.º 25, 1970, e nunca fazer a referência aos trabalhos de António Carreira, merecedores de crédito.
Por decisão da Coroa, que não queria ser prejudicada nos seus réditos, os cabo-verdianos tinham limitações no seu comércio, estavam proibidos de se internarem pelos rios, mas a verdade é que muitos desobedeceram, foram figuras privilegiadas no comércio ilícito em toda a zona dos Rios da Guiné. Eram, sobretudo, judeus foragidos, refugiados políticos, cooperando com traficantes originários de outros países, sobretudo ingleses, franceses e holandeses. O tangomau atua nos Rios da Guiné. O pombeiro é um mercador ambulante que atua sobretudo na região angolana, eram mulatos ou negros, antigos escravos libertos que funcionavam como emissários dos comerciantes europeus, que atuavam nestes paradeiros africanos ou no continente americano. O que se sabe de ambos os tipos de agentes comerciais é através de relatos indiretos, caso das relações de missionários ou das relações de viagens. Zerón, neste seu trabalho, pretende identificar as características essenciais destes dois grupos socioeconómicos, que também aparecem referenciados nos tratados jurídicos escritos pelos teólogos no decorrer do século XVI.
No caso dos tangomaus, a primeira regulamentação do trato da Guiné, de 1470, refere-os, segue-se um alvará de 1508 onde é abordado a punição deles considerando-os como infratores ao regime de monopólio real. No caso dos pombeiros, temos os relatos de viajantes, de administradores da Coroa e da correspondência dos missionários, existe esta informação desde os primórdios da ocupação portuguesa na região do Congo e Angola. Como escreve Zerón: “através destes escritos vemos a conquista militar de Angola, efetiva a partir de 1574/1575, ganha evidência uma dupla estratégia de captação de escravos: aos prisioneiros feitos durante a guerra de conquista somavam-se os escravos negociados diretamente junto dos inúmeros mercados localizados no interior do país. Neste último caso, eram os próprios comerciantes portugueses, ou seus escravos, ditos pombeiros que realizavam a operação. Ambas as práticas foram inicialmente toleradas, sem que a administração real fosse além de um controlo alfandegários nos portos de desembarque. Mas um aumento significativo na demanda pela mão de obra escrava nesta mesma época (a década de 1570 corresponde ao início da expansão da cultura canavieira no Brasil, por exemplo) correspondeu a uma série de abusos que desorganizavam o mercado africano e colocavam em risco a estabilidade do fluxo do comércio negreiro.”
E daí terem iniciado as interdições das atividades dos pombeiros.
Revelou-se impossível a aplicação na região do Congo e de Angola de um modelo centralizador e monopolista. Quem eram os pombeiros? Eram escravos de negociantes e feitores, viviam próximos dos portugueses implantados juntos à costa africana, guarda-se documentação importante sobre esta atividade dos pombeiros, caso da descrição que nos deixou o físico holandês Olfert Dapper na sua Descrição dos Países Africanos, uma edição de Amesterdão de 1668: “Alguns senhores ensinam a ler, a escrever e a calcular e outras coisas que possam ser úteis ao comércio a esses escravos comumente chamados pombeiros a partir deste local de comércio Pombo. Esses pombeiros têm ainda a seu serviço, sob seu comando, outros escravos, às vezes até ao número de 100 ou 150, os quais transportam as mercadorias sob suas cabeças pelo interior do país.”
O que têm estes agentes em comum? Antes que os conquistadores e os comerciantes portugueses ousem instalar-se ou desenvolver as suas atividades mercantis no interior do continente africano, são os tangomaus e os pombeiros que perfazem a intermediação comercial entre os europeus e os africanos. A despeito das fórmulas diferenciadas empregadas pela Coroa para tentar controlar o tráfico negreiro no Golfo da Guiné e nas regiões do Congo, Angola e Benguela, dá-se conta que a primeira operação de troca é efetuada quase exclusivamente por agentes intermediários marginais às sociedades europeia e africana. Temos registos da presença de pombeiros e tangomaus ativos juntos dos mercados africanos até ao século XVIII e mesmo até ao início do século XIX. Zerón lembra que há relatos detalhados sobre os tangomaus dos dois clássicos da literatura de viagens da autoria de André Álvares de Almada e André Donelha, bem como na Relação do jesuíta Fernão Guerreiro.
Repudiados tanto pela Coroa como pelos missionários, os tangomaus eram verdadeiros intermediários, mesmo que fossem encarados como apátridas, fossem eles judeus, homiziados ou degredados, valiam-se dos seus expedientes e da sua autonomia para mediar entre os negociantes estrangeiros e as tribos aborígenes. Uns com influência e até ligados às famílias dos régulos, outros levando uma existência miserável. Adotavam hábitos alimentares aborígenes e ritos gentílicos, praticavam frequentemente a poligamia, pagariam tributos aos chefes com quem negociavam. Ao contrário dos pombeiros, os tangomaus eram frequentemente donos dos seus bens, comerciavam principalmente escravos, mas também outras mercadorias (panos, algodão, cera, marfim, ouro, coiros) A sua vida religiosa era sincrética, um misto de cristianismo e vários animismos, havendo mesmo uma descrição de 1606 do jesuíta Baltasar Barreira que informa que há uma aldeia de 100 portugueses que seguem a lei de Moisés.
O pombeiro é um ser desqualificado e marginalizado pela sociedade portuguesa, dotados da capacidade de dotar várias línguas, como já se referiu eram escravos de confiança, operavam de maneira semelhante aos tangomaus, mesmo com uma autonomia significativamente menor já que não possuíam a propriedade das mercadorias negociadas nem participavam dos lucros obtidos. Quando em missão, os pombeiros partiam por um longo tempo com outros escravos que lhe eram subordinados, levavam as mercadorias dos seus senhores para trocá-las por escravos e também por marfim. Outra analogia que encontramos entre tangomaus e pombeiros era o interesse pela sua intermediação, apoiada pelas duas partes interessadas, os pequenos fornecedores e os comerciantes europeus buscavam quebrar o controlo monopolista imposto pelos grandes potentados locais.
Zerón, no termo da sua exposição questiona se esta intermediação dos pombeiros e dos tangomaus no comércio de escravos era ou não uma mediação cultural. Dá-nos uma síntese da moldura do pensamento na tradição jurídica antiga e medieval e depois na idade moderna quanto à legitimação do tráfico de escravos, mas estes pensadores da era dos Descobrimentos e depois consideravam que a intermediação destes agentes comerciais marginais estava desvinculada dos valores da sociedade cristã ocidental, não lhe atribuíam qualquer consideração para além de serem mediadores em negócios, eram discriminados pela sua aculturação e pela sua condição marginal social. E Zerón termina dizendo que pombeiros e tangomaus foram mais “atravessadores” que “mediadores culturais”.
Negociantes de escravos em Gorée, Senegal, século XVIII
Mercado de escravos no Recife, desenho de Zacharias Wagner
“Os Rios da Guiné” em History of the Upper Guinea Coast, 1545-1800, por Walter Rodney, New York University Press, 1970
A Nita (1947-2023) vinha à frente, do lado direito.
Foto: LG
Madalena, Vila Nova de Gaia, 5 de abril de 2015.
A "Nita", Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (1947-2023)
faz as honras à casa....
... e lê os "versinhos ao compasso da Madalena"
Vídeos: L.G. (2015). Alojados em You Tube > Luís Graça
1. Uma seleção dos meus versos dedicados ao "compasso pascal": há 50 anos que venho ao Norte, nesta data, ao Porto, à Madalena (V. N. Gaia), a Candoz (Paredes de Viadores, Marco de Canaveses). Nesta e noutras datas festivas, como o Natal, o Carnaval, etc., ou trabalhos coletivos da quinta, como a vindima...
De há 20 anos a esta parte, deu-me para escrever um versos ou umas prosas poéticas por ocasião do Natal e da Páscoa... São versos singelos, ao gosto popular, para serem lidos na ocasião (neste caso, aquando da visita pascal).
Na pandemia de Covid-19, a família falhou a vinda ao Norte pela Páscoa por razões óbvias: daí não ter havido nem versos nem compasso em 2020 e 2021...
Em 2023 morreu a nossa querida "Nita" (1947-2023), e a partir daí não mais abrimos a casa de Candoz ao compasso... É um sinal de luto carregado na cultura das gentes de Entre Douro e Minho. Daí também não haver versos em 2024 e 2025...
Em Paredes de Viadores, devido â dispersão geográfica das habitações, a visita pascal (compasso) reparte-se por dois dias: no domingo de Páscoa, e no dia seguinte, segunda . Em Candoz, é sempre à segunda...
Hoje o pároco já não preside, como antigamente, à visita pascal. Essa função é agora exercida por um leigo, que transporta a cruz, sendo acompanhado por outros membros da comunidade paroquial. Geralmente, um dos mais novos, vem munido de uma sineta cujo toque faz anunciar a chegada do compasso.
O compasso é isso mesmo: a visita, ao redor da freguesia, em cortejo, a todas as casas das famílias cristãs, que sinalizam, com urzes e pétalas de flores, o caminho que leva à casa, nas zonas rurais, ou com colchas (brancas) o andar da família que quer receber o compasso, nas vilas e cidades.
Em termos religiosos e sociais, a função principal do compasso é: (i) anunciar a ressurreição de Cristo; (ii) partilhar a alegria da Páscoa entre família, amigos e outros convidados; e (iii) benzer a casa e os presentes (que em geral representam duas ou mais gerações).
O cortejo vai andando de casa em casa. O mordomo que transporta o crucifixo, entrega-o em geral ao "homem (ou mulher) da casa" que faz uma ronda, dando a beijar a imagem de Cristo... (por razões de higiene pública, depois da pandemia, o beijo tende a tornar-se simulado).
Depois de uma breve oração, segue-se a oferta de alguns doces e bebidas ao compasso e aos demais presentes. No Norte, as famílias fazem também ofertas em dinheiro (que reverte para o padre; o peditório para o foguetório é feito uns tempos antes: 20 minutos de fogo pode custar 20 a 30 mil euros).
Os do compasso têm de ser polidos, comedidos e frugais: se bebessem em todas as casas, estavam "feitos"!... (mas antigamente era assim, nalguns sítios: o compasso recolhia à igreja, já bêbado que nem um cacho!).
À saída do compasso, a caminho da próxima casa, é frequente deitar-se um ou mais foguetes, pagos pelo dono da casa que acabou de ser visitada. No final do dia, "juntam-se as cruzes" (no caso das freguesias grandes) e, em muitas partes, há fogo de artifício (em geral muito vistoso, aqui no Marco de Canaveses e em Baião).
Parte do dinheiro recolhido é para gastar em fogo. Por razões de segurança, o uso de fogo de artifício tradicional (com foguetes de cana), não estando proibido, está sujeito a uma estrita regulamentação.
Resta-me fazer aqui uma recolha dos versos que publiquei no blogue da família, "A Nossa Quinta de Candoz". Aqui vão, com votos, para todos os nossos amigos e camaradas da Guiné, de uma feliz e santa Páscoa de 2025. LG
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Viva o compasso pascal Desta linda freguesia, Fizeram-nos muito mal Estes dois anos de pandemia.
Faltam beijos e abraços, Mas lá iremos ao normal, Hoje damos mais uns passos, Viva o compasso pascal!
É uma antiga tradição Que nos enche de alegria, E reforça a união Desta linda freguesia.
Andámos todos com medo E com máscara facial, Duas Páscoas sem folguedo Fizeram-nos muito mal.
Sem compasso nem foguetório, Sem convívio nem folia, Nem sequer houve peditório Nestes dois anos de pandemia.
(...) Quinta de Candoz, 18 de abril de 2022
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Mais um ano, mais uma visita Deste compasso pascal, É uma festa bem bonita, E que nunca é igual.
E que nunca é igual, Logo vem outro, se falta algum, Renova-se o pessoal, Que aqui somos todos por um.
Que aqui somos todos por um, Na alegria ou na tristeza, Na fartura ou no jejum, Cabendo todos à mesa.
Cabendo todos à mesa, Onde não falta o anho assado, Nesta casa portuguesa, Onde honramos o passado.
Onde honramos o passado, O presente e o futuro, Se alguém está adoentado, Tem aqui um porto seguro.
Tem aqui um porto seguro, Damos valor à amizade, Às vezes o rosto é duro, Mas o resto é humildade.
Mas o resto é humildade, Viva o compasso pascal, E a nossa fraternidade!... Boa Páscoa, pessoal!
Boa Páscoa, pessoal, Boa saúde e longa vida, À Ti Nitas, em especial, Que nos é muito querida!
Quinta de Candoz, segunda feira de Páscoa,
22 de abril de 2019
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Já lá vem, em festa, p’la estrada fora, O compasso pascal da freguesia, Chega à nossa casa mesmo na hora, E a todos saúda com alegria.
Mais do que a tradição, é a certeza
De que a Páscoa é também renascimento,
E há sempre mais um lugar à mesa, Para nosso geral contentamento.
Se não for preenchido, é o dos ausentes, E, em especial, dos nossos mortos queridos; Aos que vieram e estão aqui presentes,
Saibam que nós ficamos muito honrados. E, aos do compasso, diremos, reconhecidos: Tenham um dia feliz, mesmo… estoirados!
Quinta de Candoz, 2 de abril de 2018
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Aleluia, Cristo ressuscitou!, Apregoa o compasso pascal, Que hoje nesta casa nos visitou, E a todos nos juntou neste local.
É uma das ruas da Madalena, Que tem nome do nosso primeiro rei, E eu, quando não posso vir, tenho pena, Porque a Páscoa é aqui, isso eu sei.
Lá vai o compasso pela rua fora, Sem freima, com prazer e devoção, Com ordem, em festiva procissão.
À frente vai a cruz e uma senhora, E outra porta se abre, ali na hora… Até p’ró ano… e viva a tradição!
Madalena, V. N. Gaia, domingo de Páscoa,
16 de abril de 2017
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Olha o compasso pascal, Visitando a freguesia, Nesta casa, é bom sinal, Traz-nos a fé e a alegria.
Traz-nos a fé e a alegria, Que todos bem precisamos, É a Santa Páscoa o dia Em que as forças renovamos.
Em que as forças renovamos, Como seres humanos e cristãos, Boas festas desejamos, Pais, filhos, amigos, irmãos.
Pais, filhos, amigos, irmãos, Vizinhos da Madalena, Mais os de longe que aqui estão, E quem não veio vai ter pena.
E quem não veio vai ter pena, De neste ano faltar, Mas fez esta cantilena, Para com vós partilhar.
Para com vós partilhar As coisas boas do Norte, E a amizade reforçar Com um abraço bem forte.
Lisboa e Madalena, V. N. Gaia, domingo de Páscoa, 27 de março de 2016, 10h30
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Vem em abril este ano O nosso pascal compasso, Vem o sicrano e o beltrano, A todos damos um abraço.
É já forte a tradição, Desta gente aqui do Norte, Abre a porta, pede a bênção, A todos deseja sorte.
É um povo hospitaleiro, Que sabe receber e dar, Se na fé é o primeiro, Não fica atrás no folgar.
Obrigados, nossos vizinhos, Pela visita pascal, E aceitem com carinhos … As amêndoas deste casal.
(...) Madalena, 5 de abril de 2015
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Páscoa em março, fome ou mortaço, Diz o povo… Mas em Candoz, Não há Páscoa sem compasso, E não há gente como… nós!
Viva o compasso pascal Que nos vem visitar, Franqueando nosso portal, Santas bênçãos nos quer dar.
Páscoa é festa com mensagem: Triunfa a vida sobre a morte; Segue o compasso a viagem E a todos deseja…sorte.
Viva o compasso pascal Que nos faz esta visita, Vem por bem, não vem por mal, Mas traz um saco prá… guita!
Sem guita não há foguetes, Que é coisa que o povo adora, Sem ovos não há omeletes, Sem folar não me vou… embora!
Páscoa é festa da nossa vida, É tradição cá do Norte, Não há gente tão querida, Alegre e de altivo… porte.
É casa de boa gente, É povo abençoado, Que gosta de dar ao dente E se pela por anho… assado!
Parabéns às cozinheiras Desta bíblica iguaria, Elas são também obreiras Desta nossa… alegria.
A todos, muito obrigados: Sem uma farta e grande mesa, Sem amigos e convidados, Páscoa seria… tristeza!
Ainda bem que a chuva não era tão intensa como se previa, caso contrário, entraria pela parte corroída da janela, caindo no emaranhado de fios estendidos no chão por detrás dos computadores. O Senhor David bulia desacertadamente com o rato na sua mão direita e tamborilava com os dedos da mão esquerda sobre o joelho nu. O Senhor David usava aquele pijama de calção florido, oferecido um dia pela sua última amante num hotel da Gran Via. Muitos livros do lado direito e do lado esquerdo, por cima e por baixo, inúmeras fotografias nas estantes, fotografias dos filhos, dos netos, sobrinhos e também de algumas namoradas que o tempo eclipsou.
O Senhor David tinha um cancro, não se sabia bem onde, mas que não se manifestava, ou então estaria por detrás das diversas maleitas mais ou menos indefinidas que o não deixavam dormir nem beber o copito, metabolito essencial a um certo equilíbrio necessário para que os amigos não deixassem de dizer: Estás com um aspecto porreiro. Afastou-se do computador, foi ao quarto de banho ver a face interna das pálpebras que estava vermelhinha. O suficiente para sentir os efeitos de um suavíssimo sopro de uns restos de testosterona a que o cérebro respondeu com discretos estímulos espásticos. Como lhe tinham dito que a sua esperança de vida não iria além de seis meses, no que ele procurava não acreditar, olhou para todos aqueles rolos de papel higiénico, as bisnagas de creme de barbear e de pasta de dentes, achou que eram demais e pensou em matar-se. Para desanuviar, saiu de casa, pegou no carro, subiu a rampa, desceu a colina e seguiu até à margem do rio onde parou, como era seu hábito. Manteve-se dentro do carro, com os olhos fitos nos corvos marinhos de asas abertas a secarem ao sol, ouvindo baixinho o adagietto, o quarto andamento da 5.ª Sinfonia de Mahler, e adormeceu.
E teve um sonho. Ao seu lado, sentou-se uma jovem de rubros lábios e mamas erectas segredando-lhe ao ouvido que era a sua fada. Como o Senhor David não acreditava em fadas, e a audição já não era de confiar, a palavra fada fez com que os neurónios lhe trocassem a vogal e criassem ali uma atmosfera erótica. Dizia a bela mulher que viera ali com a missão de lhe fazer crer que a velhice não era um deserto e inóspito país, nem o homem morria antes de o mundo morrer ao seu redor. Por outras palavras, ainda haveria lugar para um afecto quentinho.
Acordou com umas pancadinhas no vidro e viu uns restos de mulher perdidos num montão de sacos à cabeça e pendurados nas mãos. No centro de gravidade daquele difícil equilíbrio, mal se enxergavam dois olhos negros, sem brilho, cavados no fundo de dois ninhos de rugas. O Senhor David abriu o vidro e ouviu uma voz gasta pedindo uma moedinha. Enquanto procurava no bolso a moeda do costume, a pedinte viu um livro no banco do carro e perguntou se ele gostava de ler. Ele acenou com a cabeça a dizer que sim e ouviu um suspiro. Olhou para a mulher e viu nos olhos negros e fundos uma faísca de brilho.
- Gosta de ler?
- Em tempos, quando era viva, lia muito e sempre gostei de ler.
- Mas ainda não morreu!
- O Senhor acha que isto é vida? A gente pode morrer muito antes de fechar os olhos.
Estas palavras trouxeram à memória do Senhor David um texto de Sonia Zagehtto, em que ela pergunta quem morre primeiro, se o homem ou o mundo ao seu redor. E qual a verdadeira morte, se o último suspiro, se o instante em que ninguém percebe a nossa falta, se o dia em que ninguém pergunta por nós, ou quando a casa grande e confortável se torna um território de esquecimento.
O Senhor David achou que a pedinte tinha razão e percebeu que a morte pode começar nessa casa sem ninguém, nessa solidão em que os dias se tornam vazios e as noites demasiado silenciosas, nessa idade em que o ser humano se torna invisível.
De qualquer forma, a ideia de antecipar o encontro com o nosso destino final não era boa. O prazer de um copito à revelia e o facto de ter 50% a seu favor na vontade de tornar real a fada do sonho impediam-no de antecipar o silêncio absoluto. Além disso, o mundo em seu redor, se bem que feio e injusto, ainda não tinha morrido de todo. Ainda dava sinais de vida, mostrando aqui e ali coisas lindas e boas que, de alguma forma, ainda interagiam com ele. Coisas lindas como aquele sorriso de felicidade e espanto, aberto no rosto carcomido da mulher dos sacos, quando o Senhor David foi à mala do carro e lhe ofereceu dois dos seus livros, com dedicatória e tudo.
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Estou na Eslovénia neste momento, onde o dia de Páscoa é dia festivo mais importante do ano, muito mais que o Natal que aqui passa quase despercebido.
Já tentei o telefone, mas ninguém apanhou .. vou tentar outra vez. Mas entretanto pode ser que leiam este ...
Primeiro: um abraço de Boas Festas de Páscoa para todos. (*)
E segundo: Gostava de os ver no encontro convívio do pessoal que esteve na Guiné , especialmente da nossa zona, que se vai encontrar no restaurante Caravelas de Ouro em Algés no dia 29 de Maio. Eu, o Luís Graça o Rui Chamusco e outros vamos lá estar.
Sei que o nosso querido "Mafra"! (Manuel Calhandar Leitão) (**) gostava de um convívio especialmente para pessoal da CCaç 1439, mas não vejo grandes possibilidades. Em Portugal já somos bem poucos, e quase todos com razões suficientes para não se deslocarem com facilidade. Mas pelo menos nós três : eu, o António Figueiredo e o Leitão ("Mafra"), e que somos os três que fazendo parte da CCaç 1439 estamos na Tabanca Grande, com um pouco de esforço podemo-nos lá encontrar….
E aproveitamos para dar um abraçø ao Figueiredo que faz anos no dia 26, certo? Nós logo a seguir voltamos a Nova Iorque. ..
Oxalá vocês recebam este. Geralmente são as vossas horas queridas, (Sra Emília e Sra Felismina) que apanham o telefone. E é sempre um prazer ouvi-las! Vou continuar a tentar o telefone, na esperança de que suceda um milagre… como dizia o outro :” eu não acredito em milagres, mas que acontecem, lá nisso acredito!” . E para "teimoso casmurro" , creio que poucos como eu.
1. Cartão pascal enviado hoje,às 11:46, pelo nosso amigo Manuel Rei Vilar, líder do projeto Kasumai, presidente da direção da Associação Anghilau, membro da nossa Tabanca Grande desde 13 de julho de 2020.
Recorde-se que ele é o irmão, mais velho do Luis Rei Vilar, cap cav, comandante da CCAV 2538 / BCAV 2876 (Susana, 1969/71), foi morto em combate em 18/2/1970, no decurso da Op Selva Viva.
Foto nº 1 > Vilma Kracun Crisóstomo e João Crisóstomo, na Parada alusiva ao Dia de Portugal em Mineola, NY, 10 de junho de 2018: Fonte: www.lusoamericano.com~
Foto nº 2 > A Vilma, nascida em 1947: aqui com a irmã mais nova
Foto nº 3 > A primitiva casa de família
Foto nº 4 > O Castelo de Brestanica
Foto nº 5 > Em Paris, aprendendo piano
Foto nº 6 > Vilma (á direita) com a Jacinta, irmã do João e, no meio a cunhada dele (primeiro casamento).
1. Mensagem de João Crisóstomo, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, casado com a Vilma Kracun Crisóstomo, nossa grã-tabanqueira nº 900 (*):
Data - terça, 4/03/2025, 18:40 Assunto - Vilma
Caro Luís Graça
Aqui estão algumas fotos que poderão ser aproveitadas ( ou não, que a qualidade deixa muito a desejar). E um texto que poderás aproveitar ou não. Segue, que pelo menos tu e a Alice gostarão o de ler.
Fotos têm sempre mais valor se a elas pudermos associar alguma coisa de interesse. E isto aplica-se bem ao caso da Vilma. A única razão para eu enviar a foto nº 2 é que esta é a única que tenho de quando ela era ainda menina e moça.
Bandeira da Eslovénia (com três cores: branco, azul e vermelho)
A Vilma, nascida em 1947, na Eslovénia (ainda então Federação da Jugoslávia, 1945-1991), é a mais velha das duas, sendo a outra criança a sua irmã mais nova, nascida em 1955.
Estas fotos referem-se sobretudo à Vilma, antes de eu a conhecer. A última foi tirada no dia em que nos reencontramos, já depois de eu a ter convencido a vir comigo para os Estados Unidos (foto nº 1).
Nem sei como hei-de começar, pelo que vou escrever conforme as lembranças do que ela me contou me vierem.
O castelo nesta foto nº 4 é o Grad Rajhenburg, ou "Brestanica Castel", que tem muito a ver com a Vilma e sua família. Está situado num monte nas margens do Rio Sava, como se pode ver na foto, onde se vê ao fundo, mesmo junto ao rio, ao longo do rio, o caminho de ferro que serve e atravessa a Eslovénia e alguns outros dos países que formavam a Jugoslávia antes do seu desmembramento.
Um dia, logo na primeira vez que fui à Eslovénia, ao olhar de longe para aquele imponente castelo, que como todos os outros na Eslovénia é muito diferente dos nossos, pois mais parece uma mansão fortificada, eu mesmo de longe, notei que o castelo tinha sido recentemente restaurado, o que ela confirmou acrescentando que as janelas do castelo ainda tinham as mesmas cores com que o pai dela tinha reparado e pintado. Fiquei curioso e pedi-lhe que me contasse essa história de ter sido o pai dela que tinha reparado e pintado aquelas janelas.
Depois dos alemães terem invadido a Eslovénia, contou-me ela, eles fizeram deste castelo um ponto de receção e redistribuição de prisioneiros de todas as espécies: uns prisioneiros eram “aproveitados’ como trabalhadores forçados em projectos relacionados com a guerra e outros eram levados para os campos de concentração dos quais geralmente não chegavam mais a sair.
O pai da Vilma foi prisioneiro neste castelo. Não o foi porque fosse político ou judeu, mas simplesmente porque, para um indivíduo desonesto e sem consciência que devia dinheiro ao seu pai, acusar o pai dela de ser antinazi foi o meio mais fácil de não ter de pagar o que lhe devia.
Valeu ao pai dela o facto de ser muito trabalhador e artista exímio de muitas profissões. Os seus muitos e variados talentos foram logo descobertos pelos alemães nazis que o começaram a aproveitar para tudo, desde trabalhos de alvenaria, carpintaria, pintura, limpezas, ajudante de cozinha e tudo o que fosse preciso fazer.
O pai da Vilma logo compreendeu que o seu destino e o continuar naquele castelo/prisão dependiam de ele ser considerado preciso ou não. E porque era de natureza bonacheirão pouco a pouco cativou a boa vontade de toda a gente. Quando ia haver uma chamada para fazerem a escolha de quem saia ou ficava, havia sempre alguém que o avisava com antecedência e por vezes eram os próprios alemães que o escondiam, e nesse dia era dado como “desaparecido”. Para reaparecer no dia seguinte, explicando a sua ausência a um trabalho pessoal que um militar mais alto em hierarquia lhe mandou fazer. E de que ninguém se arriscava a duvidar. E assim, dadas as suas habilidades de que todos abusavam, mas que ninguém queria perder, ele conseguiu nunca chegar a ser escolhido para "outros destinos’.
Foi durante uma visita ao castelo que deparei com uma foto que já me era familiar, mas que eu não esperava encontrar em lugar proeminente dentro do castelo. É uma foto da antiga casa da Vilma (foto nº 3), antes de lhes terem dado, nos tempos do Presidente Tito, a casa que ainda agora é a sua casa.
Os seus pais quando vieram para Brestanica encontraram esta casa vazia que logo arrendaram e mais tarde compraram. Anos mais tarde a cidade resolveu limpar e alargar o Rio Sava, o maior rio da Eslovénia, um dos afluentes do rio Danúbio. Isto exigiu a demolição de várias casas entre elas a sua casa, nas margens deste rio, que teve de ser expropriada e demolida. E foi nesta altura que lhes deram então a casa onde ainda agora habitam.
A razão que leva esta foto a estar no museu é a sua história e usos que teve, antes do pai dela aí se instalar: devido à sua situação esta casa tinha servido de uma espécie de grande azenha: as águas do rio foram desviadas para passar nesta casa, onde estavam turbinas que forneciam a energia eléctrica para o castelo e para os monges trapistas, situados atras do castelo, e que possuíam grandes extensões de cultivo agrícola, especialmente de uvas e frutas.
A Vilma ficou traumatizada com as histórias que lhe contaram sobre os tempos em que os nazis ocuparam a sua terra natal. E quando na "high-school” (liceu) lhe foi dado a escolher entre Françês e Alemão como uma segunda língua ela, ao contrário da maioria, recusou-se a aprender alemão.
Quando houve uma oportunidade resolveu ir para Paris, onde trabalhava como “nanny” ao mesmo tempo que frequentava a Sorbonne. Houve uma senhora amiga que descobriu que a Vilma tinha dotes para piano e começou a ajudá-la e a encorajar a Vilma nesse sentido. O piano na foto (nº 5), que ela de entusiasmada comprou, foi tirada nesta altura. Problemas de saúde obrigaram-na a desistir, embora ainda hoje ela goste de assistir a concertos de piano e sinta pena de não ser ela a dedilhar o teclado em vez de ser simples espectadora.
Foi em Paris, frequentando a "Alliance Française”, que a Vilma encontrou e se fez amiga duma portuguesa, que também frequentava a Alliance. Pelas datas eu devia estar a frequentar também a Alliance, onde vim a conhecer esta portuguesa com quem eu viria a casar em Londres, mas nunca ouvi falar da Vilma. Foi em Londres que a vim a conhecer pois foi esta portuguesa, minha futura esposa, que a ajudou a encontrar um trabalho de "Au Pair Girl" (ou "nanny") em Londres onde podia, repetindo o que fez em Paris, trabalhar e aprender a falar inglês. E foi em Londres que eu vim a conhecer a Vilma.
Graça à amizade que nutriam encontravam-se frequentemente e eu, fazendo companhia à minha namorada, encontrava-a de vez em quando. A sua companhia era agradável, mas nada mais do que isso, exceto que a minha esposa a convidou a ser a sua madrinha de casamento.
Passados alguns meses de casados, nós decidimos ir para o Brasil. O apartamento onde vivíamos passou a ser o apartamento para a minha irmã mais nova, que eu tinha convencido a vir também para Londres para aperfeiçoar o inglês, para a irmã de minha esposa que tinha feito o mesmo e para a Vilma. A foto (com as três jovens) (nº 6) foi tirada nessa altura, -- já eu e a minha esposa estávamos a viver no Rio de Janeiro.
Passados dois anos decidiram ir cada uma para sua terra e foi nesta altura que a minha esposa perdeu contacto com a Vilma. Começamos a procurá-la e, mesmo depois de eu e minha esposa nos termos separado, eu continuei a procurá-la. Para mim era até uma razão de me manter em contacto com outros amigos que a conheciam de Londres.
Ela tinha voltado para Paris, onde tirou curso e trabalhou como enfermeira (foto nº 7), primeiro num hospital e depois em regime particular, com o seu próprio escritório, juntamente com outra enfermeira. Teve pena de ter perdido a sua agenda com os endereços dos seus amigos, mas a vida de muito trabalho e a companhia da sua irmã mais velha que depois da morte do marido tinha vindo para Paris viver com ela, não lhe permitiam muito tempo para pensar neles.
Entretanto eu continuava procurando velhos amigos/as cujo contacto tinha perdido. Lembro três que reencontrei ao fim de 17 anos, 23 anos e 11 anos sem saber nada deles.
O caso da Vilma foi mais difícil: demorou quarenta anos. Quando me disseram do seu paradeiro aproveitei a minha ida a Paris para visitar um amigo também reencontrado ao fim de 23 anos e que estava muito doente e de quem eu tinha receio que não recuperasse mais, para lhe telefonar. Marcamos um encontro na casa desse meu amigo. E o inesperado aconteceu: amor à segunda vista. O resto já foi contado, creio, que esta abençoada Tabanca não nos deixou mais (**). E agora acaba de dar as boas-vindas à minha Vilma como Tabanqueira de pleno direito.
Bem hajam todos. É um prazer e grande honra para nós.(***)