sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7810: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (22): Quando choviam... frangos em Fajonquito !

1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P7802 (*):


Caros amigos,

Aconteceu por várias vezes o quartel de Fajonquito ser abastecido de géneros por meio destes lançamentos aéreos [, ou seja, por pára-quedas] . Ficaram-me na memória particularmente a imagem dos frangos, enormes e completamente depenados,  como nunca tinha visto antes. 

Dava muito trabalho a recolha do produto,  pois, às vezes,  o vento afastava os pára-quedas para longe e atenção !!!  A tropa tinha que chegar lesto-lesto ao local caso contrário os djubis [, putos,] já estavam lá a fazer das suas. 

A carga partia-se muitas vezes ao bater no chão e era depois difícil de controlar. A miudagem escondia partes da carga no meio dos arbustos. E aqueles que assim roubavam escondendo o material, muitas vezes, eram depois roubados por outros que se infiltravam entre o momento da recolha e o regresso dos pilantras. Era bastante divertido. 

Quando conseguíamos desenrascar alguns frangos, era um dia de grande festa da rapaziada, nem os ossos ficavam por prova. Afinal os vizinhos ajudam-se mutuamente, no bem e no mal. 

Cherno Baldé

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:


Último poste desta série > 27 de Novembro de 2010 >Guiné 63/74 - P7350: Memórias do Chico, menino e moço (21): Cap Teixeira Pinto e as guerras de pacificação


Guiné 63/74 - P7809: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (66): Na Kontra Ka Kontra: 30.º episódio




1. Trigésimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 17 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


30º EPISÓDIO

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Recordando o que já foi dito. Na noite anterior o Alferes Magalhães, de acordo com ordens superiores, tinha combinado, com o comandante do pelotão de milícia João Sanhá, a ida neste dia a Cantacunda, tabanca em auto-defesa, em operação de reabastecimento de munições. Como sempre, essa conversa teve lugar no local habitual, ambos sentados no “bentem”, grande estrado de querintim, debaixo de um mangueiro bem no centro da tabanca. Não fossem as combinações guerreiras, o local de onde se via o relampejar ao longe e se ouviam os pios de som metálico dos morcegos frutívoros nos mangueiros, pareceria o centro do paraíso.

Neste dia, bem cedo, porque se pretendia regressar a Madina Xaquili para o almoço, segue a coluna. Os cerca de oito quilómetros até Cantacunda são percorridos sem percalços. O itinerário é considerado seguro pois os guerrilheiros do PAIGC só tinham mostrado actividade para Sul, ou seja, para os lados da tabanca abandonada de Padada, do rio Corubal e de Madina do Boé, entretanto abandonada pelas tropas portuguesas e agora “santuário” do PAIGC.


A coluna de reabastecimento à tabanca em auto defesa de Cantacunda.

Em Cantacunda entregaram-se os cunhetes de munições, tiraram-se as fotografias da praxe com o chefe da tabanca, iniciando-se de seguida o regresso a Madina Xaquili .


Na tabanca de Cantacunda a entregar os cunhetes de munições. O Alferes Magalhães sentado no “bentem” entre o Comandante da Milícia João Sanhá e o Chefe da tabanca.

Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um forte rebentamento fez estremecer toda a picada bem como os corpos dos homens da coluna apeada, comandada pelo Alferes Miliciano Magalhães Faria. Uma nuvem em cogumelo, de fumo e pó avermelhado, eleva-se nos ares, e é vista também da tabanca de Madina Xaquili onde o Alferes Magalhães está sediado. Da mesma forma faz estremecer os corações de todos os habitantes da tabanca, em especial das mulheres dos milícias que integravam a coluna.

Visão aterradora a partir de Madina Xaquili, especialmente para as mulheres dos milícias que integravam a coluna.

Um elemento da coluna tinha accionado um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provocou ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros foi o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7808: FAP (61): Passageiro, de classe única, do Nordatlas, em viagem inolvidável de Bissau até Bafatá, via Nova Lamego, com lançamento de géneros por pára-quedas ao longo do percurso (Mário Miguéis)



Força Aérea Portuguesa > s/d > s/l > Um Nordatlas estacionado na pista...Segundo o nosso camarada (ex-Fur Mil Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/73), na Guiné, "o Nordatlas e o Dakota prioritariamente transportavam tropas e carga em volume elevado, também evacuações em que se justificava o seu uso e sempre só em meia dúzia de pistas". 



1. Comentário, bem humorado, do nosso camarigo Mário Miguéis (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, BambadincaSaltinho, 1970/72), ao poste P7802 (*)


Caros amigos/camaradas:

Para além de ter assistido, cá de baixo, a alguns reabastecimentos por pára-quedas a partir de Nordatlas, tive a "sorte" de, pelo menos por duas vezes, assistir ao mesmo tipo de lançamentos, mas do interior das ditas aeronaves. 

Aconteceu em viagens de Bissau para Bafatá - uma delas via Nova Lamego - comigo à boleia, tal como os géneros, que que foram lançados em três pontos distintos em cada uma das viagens. Quem lançava as encomendas pelo "alçapão" eram dois páras, devidamente equipados, não fossem, por acidente, sair amarrados à mercadoria. 

Entretanto, os pôdres Nordatlas voavam em círculo sobre os campos de lançamento - normalmente clareiras em plena mata, mas não muito distantes das bases a reabastecer - , proporcionando aos desgraçados passageiros de classe única um barulho ensurdecedor e enjoo generalizado, com toda a gente a vomitar ou perto disso. (Ainda hei-de escrever qualquer coisinha sobre a maior dor de ouvidos da minha vida). 

Nós, os tesos e desenrascados - leia-se inventivos - portugueses, até uma GMC eramos capazes de fazer voar, a tal obrigassem as circunstâncias.

Um abraço,

Mário Migueis



2. Comentário do Artur Soares [, foto à direita,] ao mesmo poste: 


Luís: na época das chuvas, nós, no XITOLE, também eramos reabastecidos pelo NORDATLAS, sobretudo de frescos e correio, porque nessa época das chuvas, a picada ficava intransitável.
Acontecia algumas vezes, os pára-quedas ficarem pendurados nas  árvores, o que era uma chatice.



Abraço
Artur Soares
(ex-Fur Mil Mec Auto,
CART 3492/BART 3873,
Xitole, 1972/74)

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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 – P7807: FAP (60): O destacamento de Nova Lamego ou Recordando o Tcor José Fernando de Almeida Brito (António Martins de Matos)



1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen Pilav Res), enviou-nos em 16 de Fevereiro a seguinte mensagem:

O destacamento de Nova Lamego
ou
Recordando o Tcor José Fernando de Almeida Brito
É por todos reconhecido que a Guiné tem apenas uma pequena superfície, ainda assim são cerca de 200 quilómetros entre Bissau e Buruntuma, um voo de DO-27 ou AL-III entre estas duas localidades demora cerca de hora e meia, três horas para ir e voltar.
Foi com base nesta evidência que, durante a guerra colonial, a FAP acabou por decidir estabelecer um destacamento em Nova Lamego, duas aeronaves, respectivos pilotos e mecânicos, um meteorologista e um responsável pelos bidões de combustível necessários para as missões.
Pretendia-se com este núcleo dar uma maior prontidão às evacuações de feridos e doentes do Leste da província.
O mais graduado dos militares assumia o pomposo título de “Chefe do Destacamento”, oficialmente passava a ser o representante da FAP no Leste, nada que se deitasse fora, fosse ele Alferes ou Furriel, era como se fosse equiparado a Tenente-coronel.


O destacamento funcionava com um carácter permanente, o pessoal ia rodando e sendo rendido semanalmente.
O trabalho por ali acabava por ser um pouco rotineiro, o Coronel Comandante da Zona Leste tinha à sua disposição 15 horas de voo semanais por cada uma das duas aeronaves, para usar como entendesse na sua área de operações, uma vez gastas essas horas as aeronaves já só faziam evacuações.
E, verdade se diga, não havia muitos locais onde ir, o que normalmente acontecia ao longo da semana era uma saída para norte, visitando Paunca, Pirada, Bajucunda e Canquelifá, uma outra para sul com passagem em Canjadude e Cabuca, eventualmente uma terceira a Piche e Buruntuma.
Para os pilotos a melhor situação era deixar o Coronel alargar-se a gastar rapidamente essas tais 15 horas, como a guerra no Leste era ligeira e poucas evacuações ocorriam, apenas umas parturientes, uns apêndices e um ou outro braço partido, o resto da semana transformava‑se num “dolce fare niente”.


No entanto e aqui que ninguém nos ouve, os destacamentos continham algo de preocupante, já para não dizer de muito perigoso, o pessoal envolvido acabava por ficar totalmente fora do enquadramento normal, apenas entregues aos seus conhecimentos, vontades e loucuras.
Grande parte das histórias malucas sobre aviadores que se contam pela blogosfera ocorreram durante destacamentos, e não foi por acaso que a maior parte dos acidentes que a FAP sofreu na Guiné aconteceram igualmente durante esses períodos.
E deixem-me dizer-vos, fico de cabelos em pé quando oiço alguém contar histórias do A ou do B que voavam de porta aberta ou aos loopings ou com uns whiskies no bucho, ou... estes pilotos não deviam nem podiam ser admirados, deviam antes ser referenciados e punidos, não por arriscarem as suas vidas, mas sim por arriscarem as vidas de outros que, sem possibilidades de escolha, acabavam por ter que confiar neles.
Na minha comissão lembro-me de dois destes acidentes, um em Pirada (11-5-72) e outro em Bafatá (12-8-72), dois pilotos na flor da idade que morreram, dois aviões destruídos por “pardaladas aviadoras” e, custa dize-lo, dois Cabos mecânicos, o José Valoura e o António Madeira, não tinha que ser o seu dia, razões mais que estúpidas para se morrer ao serviço da Pátria.


No sentido de se tentar pôr um travão à indisciplina de voo e controlar o modo como as missões se iam desenrolando, de tempos a tempos o destacamento passava a ser comandado por um piloto mais experiente, do QP, verificação in loco de que tudo estava a decorrer de acordo com as Directivas promulgadas.


A introdução já vai comprida, passemos à história.


Alguém veio ter comigo para me dar um recado, chamavam-me ao gabinete do Tenente Coronel, Comandante do Grupo Operacional, não era habitual os Tenentes irem falar directamente com os Deuses, coisa boa não devia ser.


Apenas um parêntesis para recordar que este Tenente-coronel iria mais tarde ser recordado pelos militares da FAP como um dos seus heróis, abatido por um míssil Strela a 28 de Março de 1973, o seu nome José Fernando de Almeida Brito.
O Tenente-coronel Almeida Brito até é um dos dois únicos pilotos da FAP oficialmente declarado como “morto em combate”, isto segundo o site da Liga dos Combatentes, todos os outros que levaram com antiaéreas, mísseis e correlativos não contam, morreram em “acidentes”.
Eu sei, desculpem-me o desabafo, até porque já falei nisto outras vezes, mas, já agora, fiquem sabendo que não me calo enquanto esta afronta não for reparada.


Homem grande e forte, de poucas falas mas sem papas na língua, foi com ele que aprendi a voar DO-27, usava um fato de voo bem desbotado de tantas lavagens, naquela indumentária já dificilmente se conseguia descortinar o seu nome ou o posto.
Amiúde fazia inspecções às pistas do mato, dava um certo gozo acompanhá-lo, por vezes os menos atentos tomavam-no por um mero “sargento barrigudo”, quando se apercebiam do equívoco já era tarde, não estivesse a pista nas devidas condições e... ia tudo à frente.
Dizia o que tinha a dizer, doesse a quem doesse, pouca gente o viu sorrir, o homem era daqueles que oscilavam entre o sério e o muito sério.
E, para que fique claro, deixou muitas saudades.


Apenas chegado ao seu gabinete, logo me disse de rompante:
- “Ó Matos, venha cá, vai fazer um destacamento a Nova Lamego!
Há por lá uma data de chatices, é verdade que ultimamente só temos mandado Furriéis, aquilo está a precisar de entrar nos eixos, vai por uma semana, parte amanhã”.


E pronto, nem ses nem talvezes, nem okeis que, como já referi, o homem era de poucas palavras, as ordens dele não se discutiam, eram para se cumprir.
Só que não me disse que chatices se teriam passado e eu não podia ir assim no escuro, tinha que saber mais qualquer coisa, ainda fui perguntar aos Furriéis, certamente deveriam saber o que tinha corrido mal, não se descoseram, deveriam estar comprometidos com qualquer coisa.
Finalmente o Cabo que me ia acompanhar no destacamento acabou por me pôr um pouco ao corrente das últimas novidades (os Cabos sabiam sempre tudo), o pessoal do Exército estava em ascendente, já punham e dispunham do avião como muito bem entendiam e, para o cúmulo, um Major acabara de participar de um dos pilotos, só porque o rapazito tinha chegado cinco minutos atrasado à hora estipulada para a partida de um dos voos.


OK, os dados estavam lançados, recapitulando, ter atenção ao que estava estipulado em termos de Directivas, ter atenção aos horários e identificar e não mais perder de vista o tal Major.


Na manhã seguinte lá me preparei para o destacamento, a saída de Bissau seria logo ao início do dia, um DO-27 e o meu Cabo mecânico, verificação junto do Serviço da Carga sobre o que havia a transportar, apenas três passageiros e uns caixotes.
Só que um dos passageiros era... Major!
E não é que o passageiro Major, sem ninguém lhe perguntar nada e completamente a despropósito, resolveu mostrar serviço, entrar pelo bar dos pilotos adentro, a perguntar alto e bom som, quem é que ia com ele para o GABU?
- “Senhor Major, aqui ninguém vai consigo, o senhor é que vai comigo”, toma lá que já almoçaste.
Logo o Cabo a falar-me ao ouvido, “Este Major é um pouco desbundado mas até é porreiro, o mau é um outro…”.
Pronto, ok, tudo bem, mas, pergunta de periquito, afinal quantos Majores havia lá pelo Gabu?
Manga deles, que o mau até era fácil de identificar, andava de bota alta e pingalim.
Ok, já tinha planeado que este Major haveria de ir sentado lá atrás no meio da carga, convidei-o a sentar-se ao meu lado, durante o voo fizemos as pazes.
Viagem sem problemas, quem foi o tonto que disse que na Guiné não havia nevoeiro, o que vale é que o AL-III ia à frente e tinha um modo óptimo de o afastar.


Apenas chegados a Nova Lamego e logo a prioridade maior se revelava, parquear as aeronaves em condições de segurança.
Existiam dois locais perto da pista, ambos protegidos por bidões cheios de terra, era aí que estacionavam o DO-27 e o AL-III, os mecânicos tratavam de os abastecer a fim de no dia seguinte apenas ser necessário uma simples vistoria antes do primeiro voo.
E ali todos ajudavam, se houvesse uma bomba eléctrica de combustível o abastecimento levava 10 minutos, caso contrário algumas horas, só depois dessas tarefas completadas se iniciava a seguinte, a instalação do pessoal.


Ao que parece haveria dois quartos disponíveis algures junto ao pessoal do Exército, só que os da FAP tinham por hábito dormir junto das aeronaves, uns alojamentos situados junto a um abrigo, daqueles construídos com o auxílio de grossos troncos.
Não era grande coisa, dois compartimentos minúsculos, demasiado quentes e a cheirar a Lion-Brand, banho racionado e ao ar livre, funcionando com o auxílio de bidões de água colocados estrategicamente sobre o tecto dos quartos.
Confesso, teria preferido o quarto lá do quartel, mas os “cabos velhos” insistiam que, além de mais operacional, era muito mais agradável o acordar por aquelas paragens.
Com aquela “boca” de ser mais operacional calavam-me, só que os seus olhares cúmplices e sorrisos matreiros, indicavam que deviam de me estar a preparar alguma...
Mesmo assim acabei por ceder e lá nos instalámos.
Aeronaves estacionadas e mochilas nos locais de pernoita, passo seguinte apresentação ao Coronel, saber o que nos estava destinado para o dia seguinte.
Finalmente e com o serviço terminado, o jantar, a comida do quartel era entre o sofrível e o mau, o melhor procedimento era deixarmo-nos levar pelos nossos Cabos, jovens sempre esfomeados, ou não tivessem eles vinte anos, conhecedores exímios das possibilidades de restauração em N Lamego, quase serviço “a la carte”.
Mais tarde e depois de algumas bazucas abaixo e mais uns whiskies, o sono a instalar-se, pesado e fundo, a esperança de não acontecer nenhum ataque durante a noite, que, a haver, “não estou com disposição para me levantar da cama”.


Com a manhã a chegar, logo o mistério que os “velhos” me tinham feito recear, acabava por ser desvendado, alguém me acordava movimentado-me o sexo, acima e abaixo, em ritmo bem compassado.
Subitamente acordado, logo reparei na intrusa, vinda não sei de onde, negra e jovem, eventualmente demasiado jovem, seios erectos e sorriso matreiro.
Acordar destes só em África, de imediato um movimento envolvente no sentido de a tentar agarrar, logo ela rindo e recuando, dizendo com ar malicioso:
“Ná ná, nem qui foras Tinente”.
E assim como tinha aparecido, sumiu-se num instante.
Certamente devia já estar farta de Cabos e Furriéis, para a próxima noite ainda pensei dormir com os galões bem à vista, para ela ver o que era um Tenente de verdade, podia ser que a sorte mudasse...
Não mudou.
E, verdade verdadeira, nunca mais a vi, não devia conhecer os postos da tropa.


Dois dias depois e ao ir saber junto do Coronel quais as missões para o dia seguinte, encontrei finalmente “O Major”, a bota e o pingalim a identificá-lo.
Queria ir a Canjadude e Cabuca e queria sair às 14 horas, frisou, o pingalim a dar toques na bota, “a coisa tá preta”.
“Sim meu Major, para sairmos às 14:00, faça o favor de estar junto à aeronave pelas 13:45.”


No dia seguinte eram 13:30 e já lá estava eu, o Cabo e o avião, os três, alinhados, apreensivos e completamente prontos.
Só que, às 13:45 nada aconteceu...
Até às 13:55 nada aconteceu... disse ao Cabo para pôr o correio dentro do avião e fechar portas.
Às 14:00, não se avistava vivalma, pus o motor em marcha.
Eram 14:05, iniciei a rolagem.
Ao longe, vi aparecer o jeep do Major.
Julgaria ele que eu ia voltar atrás?
Já vos disse, os pilotos de caça reagem em milésimos de segundo...
Passei com o DO-27 bem perto da sua viatura, cheguei à pista e ala que se faz tarde, descolagem em direcção a Canjadude.
E pronto, foi assim que o Major perdeu a oportunidade de ir mostrar as suas botas altas ao pessoal mal vestido lá do mato.
Fui recebido com entusiasmo, levava correio e nada de chatices, todas elas tinha ficado em terra, um cafezito para animar, uns abraços e logo em direcção a Cabuca, a recepção foi semelhante, sorrisos de orelha a orelha.
Descobri entretanto que o Capitão de um destes quartéis (já não me lembro qual) tinha andado comigo no liceu (O Académico), tão pouco me lembro do seu nome, desde sempre usava pêra, capa e batina e cantava o fado de Coimbra.


Quarenta minutos depois da partida e já estava de regresso a N Lamego.
Arrumar e abastecer o avião, o resto da tarde foi de uma tranquilidade absoluta.
À noite o Coronel perguntou-me se a missão tinha corrido bem.
Disse-lhe que sim, o que até era verdade.
O resto do destacamento processou-se sem algo digno de realce.


Com o regresso a Bissau, os respectivos relatórios escritos e entregues, estava pronto a esquecer o destacamento.
Nova chamada para voltar ao gabinete do Tenente Coronel Brito, Comandante do Grupo Operacional.
Mau mau, outra vez?
Coisa boa não deve ser, será que o Major fez outra participação?


Recebeu-me como sempre, com o seu ar sério:
-“Como é que correu o destacamento?
- Bem...
- As Directivas, estão a ser cumpridas?
- Sim senhor...
- E o Major?


Ó diabo, não querem lá ver que o homem sabia da marosca...


- O Major ficou bem...”. Disse a medo.
- “OK, pode ir...”


Como devem saber, os pilotos são todos duros de ouvido, doença profissional, dizem.
Ainda assim, não é que ao sair do gabinete e após fechar a porta, pareceu-me ouvir alguém lá dentro a rir às gargalhadas...
Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P7806: A última missão, de José Moura Calheiros, antigo comandante pára-quedista: apresentação do livro (5): Agradecimentos do autor ao nosso blogue

1. Por lapso, só agora publicamos o agradecimento que o Cor Pára Ref José Moura Calheiros nos dirigiu, no princípio do ano, com referência ao papel do blogue na promoção do seu livro, A Última Missão:

 6/1/2011

Caro Amigo:
 
Pasada a fase as apresentações em Lisboa, Porto e Coimbra e o Natal e ano Novo em casa, chegou a altura de agradecer ao Homem Grande da Tabanca Grande, não apenas a presença no lançamento do livro em Lisboa, mas tambémas excelentes gravações das intervenções - a unica que foi feita,  esqueci-me por completo disso! Ainda bem que se lembrou. E agradecer ainda a publicidade feita ao livro no site da Tabanca Grande.

A única coisa má disto tudo é que continuo sem o conhecer pessoalmente. Tenho uma ideia de termos trocado algumas, poucas palavras no final da cerimónia, mas estava sempre a ser tão assediado pelas pessoas que não estou bem seguro. 

Se necessitar de algo da minha pessoa, estou ao seu inteiro dispor.

Com um forte abraço,
Moura Calheiros

Preço de capa: 27 €

Uma edição
CAMINHOS ROMANOS, Editora
Rua Pedro Escobar, 90 - R/C
4150 - 596 PORTO
Tel./Fax 220 110 532
Telemóvel 936 364 150
e-mail ac.azeredo@hotmail.



2. Comentário de L.G.:

Na realidade, continuamos sem conhecermo-nos pessoalmente... e eu ainda sem ter tido tempo de ler o seu livro: está numa pilha em cima de muitos outros... Como de costume, faço uma primeira leitura em diagonal. E, do que me apercebi, não sei se foi a sua última missão (fica mal a um pára dizer isso...), mas foi seguramente a sua mais nobre missão... Felizmente começam a aparecer algumas notas de leitura, de camaradas nossos. Haveremos de encontrar-nos por aí, nas picadas e bolanhas da cidade e da vida.

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Nota de L. G.:

(*) Último poste da série > 5 de Dezembro de 2010 &gtGuiné 63/74 - P7385: A última missão, de José Moura Calheiros, antigo comandante pára-quedista: apresentação do livro (4): "A História, tal como a ficção, não pode ficar em suspenso sem um epílogo que a justifique e lhe dê um sentido" (António-Pedro de Vasconcelos)

Guiné 63/74 - P7805: Notas de leitura (204) A Última Missão, de José de Moura Calheiros (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Desde o Amadu Djaló e do sargento Talhadas que não lia algo tão arrancado da alma. O coronel Calheiros é despretensioso, não veio à escrita comandado pelos veios literários mas por uma missão onde pesou o estrito sentido do dever: devolver às famílias os corpos de quem morreu em combate.
Um livro a juntar a outros muito bons que a guerra transforma em escrita de valor indiscutível.

Um abraço do
Mário


Uma memória admirável, pessoal e intransmissível:
“A Última Missão”

Beja Santos

O coronel José de Moura Calheiros cumpriu três comissões de serviço, conheceu os três teatros de operações de risco (Angola, Moçambique e Guiné, respectivamente). Na Guiné (1971-1973) foi 2.º Comandante e Oficial de Operações do BCP 12, COP 4 e COP 5 e ainda Comandante do COP 3. Assistiu de perto aos acontecimentos dramáticos de Guidage e nunca os esqueceu. “A Última Missão” é um título feliz para uma vastíssima e ordenada colecção de memórias que entremeiam as notas de viagem de um grupo que voltou a Guidage, em Março de 2008, para acompanhar a exumação de três pára-quedistas BCP 12, 35 anos depois do cerco à martirizada Guidage. Temos aqui, em grande angular, e numa sinceridade sem nenhuma encenação uma longa viagem de memórias à guerra que ele viveu em África ao serviço das tropas pára-quedistas (“A Última Missão”, por José de Moura Calheiros, Caminhos Romanos, 2010).

É um livro de memórias tocante por se sentir que se trata de alguém que se expõe completamente, alguém que se olha ao espelho sem flores de retórica ou à procura da última comenda. A missão é trazer os restos mortais dos soldados Vitoriano, Lourenço e Peixoto, mortos em combate na bolanha de Cufeu, tendo ficado sepultados no interior do aquartelamento. Alguém elaborou um croqui com a localização exacta das campas, dado providencial para o resultado desta última missão.

No acto de embarque, nesse dia 7 de Março de 2008, assalta-lhe à memória a primeira aproximação a África, dá-nos o registo da participação dos pára-quedistas e da sua chegada em Maio de 1963, relata o seu baptismo de fogo, entre outras memórias. A caminho de Bissau, fala-nos do programa “Conservação das Memórias”, criado pela Liga dos Combatentes no sentido de concentrar em alguns cemitérios os restos mortais dos nossos combatentes em África. Assegurado o financiamento para a operação de exumação que decorreu sob o impulso da UPP – União Portuguesa de Pára-quedistas, foram estabelecidos contactos com peritos para se formar a indispensável equipa técnica. Ainda a caminho de Bissau, o coronel Calheiros recorda a sua missão no Norte de Moçambique, entre 1967 e 1969, repertoria momentos de perigo, o sofrimento físico. Refere algo que vi em dois momentos de tormenta, o desespero da sede, militares a molhar os lábios com urina. Dá-nos a descrição de várias operações e é assim que a equipa de missão chega a Bissalanca, onde ficou a aguardar a chegada da equipa técnica.

Dá-nos um registo da sua ida a Bissau e recorda-se da Bissau de 1971, compara o estado da cidade e o viver das populações. De seguida começam os preparativos para a deslocação, a escolha da base para o cumprimento da missão em Guidage. Ponderadas as hipóteses (permanecer em Guidage todo o tempo, aceder a Guidage a partir do Senegal utilizando um hotel de caça próximo ou construir uma base em Farim) optou-se por Farim onde já se tinha alugado duas casas. De novo assistimos ao revolteio da memória, aqueles preparativos do deslocamento para Farim lembraram-lhe as preocupações com as do tempo de guerra em que o kit-bag (saco de bagagem utilizado pelos pára-quedistas) era o albergue com que se podia contar durante o ciclo operacional, a casa ambulante. A coluna segue para Farim, o autor lembra outras colunas, desde a via marítima até à deslocação em Berliet e Unimog, com todas as peripécias imagináveis. Tudo é comparável, buscam-se analogias, pontos de contacto entre o passado da outra missão e esta, apresentada como a derradeira. É um dos aspectos mais atractivos desta prosa eficiente, conduzida pelo olhar, sem sinuosidades nem piruetas líricas. É o que é, o que a recordação consente, como se vivia nas instalações do BCP 12 e que agora está à disposição da missão e assim se vai progredir até Farim, pelo caminho recordam-se minas e emboscadas, a travessia nos rios, assim se chega ao cais de Farim, na margem esquerda do rio Cacheu. Está constituída a equipa, militares, um jornalista e vários peritos indispensáveis para a exumação. A casa de Farim vai detonar memórias sobre o modo de viver dos pára-quedistas, há a nostalgia da base de operações e o repouso físico e psicológico que permitia, ali se jogava às cartas, escrevia os aerogramas, mas também se jogava à bola e até se praticavam os jogos tradicionais que se trazia das aldeias.

Iniciam-se os contactos com agentes de Farim, surgem antigos militares que combateram à sombra da bandeira portuguesa e antigos militares do PAIGC. São relatos humanos, muito humanos, quem escreve está aberto a ouvir e a perguntar, é alguém que toma notas do movimento das ruas e dos usos e costumes. Esse alguém recorda a sua chegada a Bissau, em 1971, a memória põe-no de novo à varanda e então passam em desfile os jovens combatentes, desde os jovens contestatários àqueles que trazem curiosidade e o sentido do dever. Será porventura um dos quadros de memórias mais preciosos e singelos que o autor nos oferece, esse e o das gentes de Farim, desvelando, a propósito, o drama (talvez insolúvel) das pensões de sangue, de invalidez e de reforma daqueles guineenses que combateram ao lado dos portugueses, acreditando ser portugueses. Em torno deste drama (que eu próprio verifiquei em 1991 e 2010) há propostas para desbloquear a situação, todas elas são altamente sensíveis e cheias de riscos se não forem praticadas com o máximo de equanimidade. No seguimento desta dura prova que é mostrar a chaga destes antigos camaradas que continuam a não entender a perda de direitos, o coronel Calheiros debruça-se sobre as famílias dos militares, o seu sofrimento à distância e aqui detém-se sobre aqueles três jovens ainda sepultados em Guidage.

É um relato que impressiona pela ausência de jactância, pelo ânimo da camaradagem e pela franqueza do desnudamento da alma. Já estamos a caminho de Guidage. A última missão, na sua plena acepção, vai agora começar.

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7797: Notas de leitura (203) Estudos Sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7804: Memórias de Mansabá (20): Jornal Bajudo da CCAÇ 1421 (Ernesto Duarte)

1. Em mensagem do dia 8 de Fevereiro de 2011, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67), enviou-nos estas páginas referentes a um exemplar do Jornal Bajudo, publicado pela sua Companhia. 

Pelo material enviado fica-se a saber que se tratou de um períódico com grande tiragem, que abarcava vários temas de interesse para a população (militar e civil) local, oferecendo rubricas variadas, tais como: crónicas, turismo, anúncios, poesia, notícias sobre o jet set local, etc.


MEMÓRIAS DE MANSABÁ (20)


JORNAL BAJUDO, EDIÇÃO DA CCAÇ 1421


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OBS: - do editor

- Imagens editadas por Carlos Vinhal.
- O editor não é responsável pela não apresentação completa dos textos nas páginas apresentadas
- Para uma leitura mais cómoda, clicar nas imagens para as ampliar
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7800: Memórias de Mansabá (8): Operação Vaca (Ernesto Duarte)

Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 15 de Fevereiro de 2011:

Meus caros amigos e camaradas,


Junto remeto uns textos da minha lavra relativos às causas da guerra civil bissau-guineense de 1998-99, uma vez que aí me encontrava em missão de soberania, desempenhando, na altura, as funções de embaixador de Portugal. Fui, pois, uma testemunha privilegiada do conflito armado, mas os meus juízos e apreciações, porque subjectivos, poderão não coincidir com os de quem me lê.


O meu amigo, camarada e companheiro de estudos (fomos para a tropa juntos e formámo-nos juntos), Mário Beja Santos, fez recentemente uma recensão sobre o livro de Mário Matos e Lemos,  "Política Cultural Portuguesa em África - O caso da Guiné-Bissau"**. O referenciado foi meu colaborador durante alguns meses, tendo abandonado aquele país, exactamente uma semana antes da eclosão do conflito. Com uma estada de 11 anos em Bissau, Matos e Lemos é, sem dúvida alguma, um profundo conhecedor do dossiê.


Sobre a matéria, concordo, genericamente com a análise do Mário Beja Santos e pretendo complementá-la com a minha visão sobre as causas (próximas e remotas) do conflito, a fim de elucidar melhor o problema. Os textos que envio vão integrar um capítulo de um livro de memórias sobre a guerra civil da minha autoria que está em curso de publicação.


Como se diz na Guiné-Bissau,
Mantenhas


Francisco Henriques da Silva
(Alf Mil da CCaç 2402 - Có, Mansabá e Olossato, 1968-1970;
ex-embaixador na Guiné-Bissau, 1997 a 1999)



Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 1/3

Subsistem poucas dúvidas sobre as causas próximas do conflito civil armado da Guiné-Bissau, outro tanto não se poderá dizer das causas remotas da guerra, muito embora para os que conhecem bem aquele território e as suas gentes não seja muito difícil descortinar as razões profundas que levaram àquela situação de conflitualidade.

As causas próximas: do tráfico de armas para Casamansa à destituição de Mané

As causas próximas do conflito tiveram que ver,

Em primeiro lugar, com problemas do foro castrense, ou seja as substituições das chefias militares e a situação das Forças Armadas, em geral. Como, entre outros, refere Roberto Cordeiro de Sousa “o acontecimento que desencadeou o início da guerra civil foi a tentativa de prisão de Ansumane Mané na madrugada de domingo, dia 7 de Junho de 1998.” Trata-se do verdadeiro detonador da conflagração.

Por seu turno, António Duarte Silva salienta que “factores ligados à instituição militar terão constituído as causas próximas da rebelião, sobretudo a insatisfação crescente dos ‘Combatentes da Liberdade da Pátria’ (ou seja, dos ex-guerrilheiros das ‘Forças Armadas de Libertação Nacional’) e as denúncias e ameaças a propósito do tráfico de armas em favor dos guerrilheiros independentistas na área do Casamansa, cujo inquérito parlamentar estava em vias de conclusão (e que, datado de 8 de Junho, ilibava o brigadeiro Ansumane Mané concluindo com múltiplas acusações, do PR ao Ministro da Defesa, entre outros, e várias recomendações de instauração de procedimentos judiciais).”

 O dr. Huco Monteiro, que foi Ministro da Educação do Governo de Unidade Nacional e um dos braços direitos do então Primeiro-ministro, Francisco Fadul, apontou-me que se visava “a despartidarização real da sociedade castrense, a clarificação da sua missão e o ajustamento da sua estrutura, a dignificação e a valorização da função dos militares graças, nomeadamente, à regulamentação da vida e da carreira dos mesmos por textos claros e republicanos”.
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[1] Sousa, Roberto Cordeiro de, “DANÇA DE CADEIRA: Golpes de Estado entre Autoritarismo e a Democracia guineense” in www.didinho.org, p. 10


[2] Silva, António Duarte, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”,  Edições Almedina, Coimbra, 2010, p. 213.
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Em segundo lugar, com o envolvimento de sectores do aparelho de Estado e da sociedade militar e civil guineense na questão de Casamansa, com revelações de impacto quase diárias junto da opinião pública.
Em terceiro lugar, com o agravamento da situação social dos combatentes da Liberdade da Pátria que se agudizava, pelo menos em termos psicológicos, nos meses e semanas que precederam o levantamento de 7 de Junho de 1998 (tratava-se, essencialmente, de um problema social, porém, com óbvias repercussões nas áreas política e militar e, a um tempo, uma causa próxima e remota da insurreição).

Finalmente, com questões do estrito foro político que tinham que ver com as exacções, com os abusos, com o clientelismo, com a corrupção generalizada que geravam desde há muito um sentimento de mal estar e de revolta genuína junto da população. Para além disso, a acentuada personalização do poder em “Nino” Vieira e na sua clique (ou mesmo, o enquistamento num e noutra), num país política, social e economicamente bloqueado.

Esta problemática é visível nas semanas que antecedem o 7 de Junho, maxime no discurso que Nino Vieira pronuncia, na véspera da revolta militar, na Chapa de Bissau, junto ao mercado de Bandim, em que recusa, em absoluto e a qualquer título, abandonar o Poder. Sem esquecermos, igualmente, as vicissitudes do VI Congresso do PAIGC, cujas feridas estavam abertas. Para António Duarte Silva: “... também contribuíram para converter a inicial rebelião numa "guerra de Bissau" quer a conjuntura de crise económico-financeira e social (por exemplo, nos sectores da saúde, educação e administração pública), quer a crise interna no PAIGC, patente no recente e muito contestado VI Congresso.”


As causas remotas do conflito

Como causas remotas poderíamos indicar principalmente os referidos bloqueamentos políticos, económicos e sociais da República da Guiné-Bissau incapaz de encontrar um rumo próprio, a nenhum dos níveis mencionados, quase 25 anos após a declaração unilateral da independência em 24 de Setembro de 1973 em Madina do Boé e cerca de 9 anos depois da queda do muro de Berlim. Problemas estruturais a que o Poder político não sabia dar resposta. Para além disso, mereceria especial referência o problema da identidade nacional da Guiné-Bissau, que se esboçava, factor que não podia ser subestimado no contexto da guerra civil entrecruzando-se em permanência com aqueles bloqueamentos, nem tão-pouco poderia ser subavaliado a nível sub-regional e regional.

Estas causas profundas e remotas do conflito merecem ser analisadas ainda que sumariamente.
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[3] Ibidem.
[4] Leonardo Cardoso confirma estas asserções: “... o conflito político-militar que formalmente começou a 7 de Junho de 1998 com o levantamento de um grupo de homens armados não deve ser visto senão como consequência de um longo período de crise política, económica e social.”, vd. “A Tragédia de Junho de 1998
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 Bloqueamento político, porque

- subsistiam “traços duradouros deixados pelo processo de acesso à independência, no termo de onze anos de luta de libertação nacional, conduzida por um partido armado ...o PAIGC

- os efeitos perversos do sistema de hegemonia política do PAIGC fundado sobre a legitimidade histórica decorrente da sua exemplar guerra de libertação nacional;

- a insuficiente despolitização [leia-se, despartidarização, no sentido que lhe dá Huco Monteiro] das Forças Armadas que, na origem, eram o braço armado do PAIGC;

- a incompleta conversão do PAIGC em partido civil liberto das suas antigas ‘correias de transmissão’ institucionais nas Forças Armadas;

- A difícil adaptação do antigo partido único ao novo contexto político caracterizado pelo pluralismo...”

Para alem destes factores de bloqueamento relativos aos pilares Partido-Forças Armadas e à interconexão entre eles, o verdadeiro Poder estava concentrado num só homem – João Bernardo Vieira -, numa camarilha que ascendeu a esse mesmo poder – ou a parte dele – por meras concessões do Príncipe, num só partido (o PAIGC), dominado pela mesma pessoa e pelo seu pequeno grupo (situação perfeitamente perceptível, por exemplo, em Maio de 1998, no rescaldo do VI Congresso do PAIGC ), acusando já de forma pronunciada a erosão de uma extrema longevidade no exercício do Poder e as consequentes insuficiências na distribuição de favores e prebendas; num regime de fachada democrática, apenas “para inglês ver” que, ao passar os testes impostos pelo exterior, beneficiaria do respectivo apoio e, porque não dizê-lo, do respectivo silêncio.

De eleições alegadamente falseadas (as presidenciais de 1995), à mais do que deficiente – e jamais conscientemente assumida - separação de poderes, passando por todo o tipo de violações de direitos humanos e de abusos de poder e, last but not least, um regime onde campeava a má governação e a corrupção generalizadas.

Era este a traços muito largos o esboço político da Guiné-Bissau de “Kabi.”
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Factos e Comentários”, in Soronda, Revista de Estudos Guineenses, INEP, Bissau, Dezembro, 2000, p. 127.


[5] Koudawo, Fafali, “La guerre des Mandjua – crise de gouvernance et implosion d’un modele de résorprtion de crises”,  in Soronda, Revista de Estudos Guineenses, INEP, Bissau, Dezembro, 2000 – pp. 153-154 


[6] O partido, porém, não era monolítico. A contestação no seio do PAIGC entre o PR e presidente do partido e o Secretário-nacional, Manuel Saturnino Costa,  iria ter dois episódios marcantes, antes da eclosão do conflito armado: em primeiro lugar, a demissão do Governo liderado pelo último, por iniciativa do Chefe do Estado, em Junho de 1997, por alegada incompetência, numa manobra constitucionalmente duvidosa e que gerou várias tensões no seio do PAIGC; em segundo lugar, a vitória “esmagadora”(?) de “Nino” Vieira no VI Congresso do partido “apagando” (?) os focos de discórdia interna de que Saturnino Costa, entre outros (Hélder Proença e Malan Bacai Sanhá), era um dos chefes de fila . 


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7439: (Ex)citações (120): Destruição e incêndio do Mercado Central de Bissau (Francisco Henriques da Silva)

(**) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7802: Álbum fotográfico de Amaral Bernardo (Alf Mil Med, CCS/BCAÇ 2930, Catió, Cacine, Bedanda, Guileje, Gadamel, Tite, Bolama, 1970/72) (1): O reabastecimento de Bedanda, no tempo das chuvas, através do Nordatlas, com lançamento de pára-quedas






Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Reabastecimento do aquartelamento e povoação através do Nordatlas e do lançamento  de géneros por pára-quedas,  durante a época das chuvas. Fotos do Álbum de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)... Esteve em 1971 em Bedanda (*), onde foi rendido em Dezembro de 1971 pelo Mário Bravo.

Fotos: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.


"Estive em Bedanda, durante 13 meses, sob o comando do capitão de cavalaria Ayala Botto [, CCAÇ 6]. Um grande comandante, um verdadeiro oficial de cavalaria... que nos derretia com mimos: ovos liofilizados e outras delícias, que vinham de Lisboa, de uma fábrica da família...
 
"Estive primeiro em Cacine, que era deslumbrante... Percorri todo o sul, acabando em Bolama, depois de passar por Bedanda, Gadamael, Guileje, Tite... A CÇAÇ 6 tinha fulas e um pelotão de balantas... Em Bedanda, os tipos do PAIGC apareciam nas minhas consultas, nas calmas, disfarçados com a população...
 
"Bedanda, no tempo das chuvas, era inacessível por terra, transformava-se numa ilha. Ficava entre dois rios, o Cumbijã, a oeste e o seu afluente, o Ungariol, a leste e a norte... Era abasteciada  pelos fuzileiros e pela força aérea...
 
"Em 2005 falei com o Nino sobre os ataques a Bedanda, quando ele era o comandante da região sul... Havia malta na tabanca que lhe fazia sinais de luz (com uma lanterna) para orientação do tiro... À terceira, eles acertavam todas...
 
"Os melhores abrigos, à prova do 120, eram os de Guileje... Mas o Spínola proibiu a construção de mais bunkers, queria que o pessoal fosse todo para as valas... Foram tempos muitos duros, tive uma [grande] actividade como médico... e eu próprio cheguei a desejar secretamente ser ferido para poder ser evacuado dali" (Amaral Bernardo, membro da nossa Tabanca Grande, desde Fevereiro de 2007).


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Nota de L.G.:
 
(*) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 7799: Os nossos médicos (22): Um pedido de desculpas por uma falsa informação a (e um firme repúdio pelas insinuações de) o ex-Cap Art Morais da Silva, comandante da CCAÇ 2769 (Amaral Bernardo)

Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio




1. Vigésimo oitavo nono da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 16 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


29º EPISÓDIO

Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.

Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.

Há dias já se tinha feito um ensaio dessa situação mas agora era a sério. Fora dos abrigos só se encontram os três graduados. Passaram-se uns minutos sem mais nada acontecer. Teria sido abatido um sentinela? Ou apenas o disparo de um deles? A quem? Os três interrogavam-se.

- João, é preciso mandar um grupo de homens ver o que passou com os sentinelas.

Para alívio de todos tão depressa foram como vieram. Aconteceu que um dos sentinelas viu ao seu alcance um porco do mato e, contrariamente a todas as regras, não perdeu a oportunidade de o abater. Claro que não se podia deixar passar este acto sem uma punição, embora pequena dada a pouca formação militar de todos os milícias. De acordo com o João, o milícia em questão integraria a próxima operação apesar de ter participado na anterior e, principalmente, teria que dividir o animal com a tropa metropolitana.

Dado o sinal para acabar a situação de alarme toda a tabanca voltou aos seus afazeres. O Furriel aproveita e vai deitar-se um pouco, tendo o nosso Alferes pedido ao João para mandar chamar o Samba, pois queria falar com ele. Queria resolver a situação da Asmau rapidamente.

Sentados os dois à mesa das refeições foi rápida a conversa. O Alferes disse que já tinha falado com o Adramane e que iam resolver já o assunto. Para abreviar e não haver constrangimentos de discurso pode dizer-se que o Samba deu ao Alferes o equivalente a meia vaca para ficar com a Asmau. Foi um montante muito inferior ao que tinha dispendido, mas o Alferes Magalhães resolve o seu problema e o Samba também.

Passam uns dias e o nosso Alferes, agora mais liberto, dedica-se além dos patrulhamentos, a colher mais informações sobre os hábitos de todos os habitantes da tabanca. Passa a andar mais com o João vendo o evoluir das suas lavras. Ao princípio achava um pouco estranho que os milícias trabalhassem para ele aparentemente de forma gratuita mas agora já sabe que era uma ancestral prerrogativa de qualquer chefe. Os chefes de tabanca e os régulos chegavam a ter lavras longe da sua morança mas perto das moranças dos súbditos, que tinham que as trabalhar para proveito do seu chefe. Aqui, com o Chefe da Milícia passava-se procedimento semelhante. Não será de esquecer que esses mesmos chefes asseguravam o bem estar dos homens que para ele trabalhavam, distribuindo -lhes os excedentes das produções.

Tinha visto a sementeira da mancarra e acompanha agora o crescimento das plantas. Assiste ao aconchegar de terra às mesmas. Repara nas plantações de mandioca com largos sulcos, para melhor drenarem as águas da chuva e também para protegerem as raízes, não ficando fora da terra nem ensopadas em água, quando chove muito. Fica a saber, contrariamente ao conhecimento que tinha, que a raiz da mandioca se pode comer crua, pois vê comê-la aos africanos. Acha muita piada às enxadas de madeira que usam para trabalhar a terra: Autênticas preciosidades da pré-história. Acaba por comprar algumas para levar para a Metrópole quando regressar de vez. Vê que o João guarda a mancarra descascada, destinada a semente, em grandes garrafões de vidro.

Uma das enxadas com que trabalhavam a terra.

Repara nas cabaças de recolher o vinho de palma com forma de grandes peras e sobretudo nos funis feitos com folhas de palmeira, para lá em cima da árvore conduzirem a seiva da incisão para a cabaça.

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio